Reflexões sobre o poder, "O evangelho mdo Cristo redivivo", e os morros do Rio de Janeiro
William Blake, o pintor e poeta místico inglês, perguntava em seu poema Jerusalém:
Teriam esses pés, em tempos antigos, andado sobre as verdes montanhas da Inglaterra?
E o Sagrado Cordeiro de Deus, teria sido visto nas aprazíveis pastagens inglesas?
E teria o Divino Semblante
brilhado sobre nossas colinas ensolaradas?
E teria sido Jerusalem erguida aqui em meio a estes negros e satânicos moinhos?
Conhecedor de seu mundo, Blake se insurgia bravamente contra o fato de sua terra em nada se assemelhar à terra santa:
Tragam meu arco de ouro flamejante!
Tragam minhas flechas do desejo!
Tragam minha lança: Oh sombras revelem-se!
Tragam minha Carruagem de Fogo!
Equipado de tão assombrosas armas, o poeta proclamava:
Não findarei os embates mentais; nem minha espada descansará em minha mão
Até que tenhamos erigido Jerusalém nas verdes e aprazíveis terras da Inglaterra.
Assim, o ímpeto fervoroso de Blake nos revela o caminho para um mundo santificado, construído a ferro e a fogo, e com braço forte.
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Muito tempo depois o ditador João Figueiredo pareceu imbuído do mesmo espírito quando proclamou:
É para abrir mesmo. Quem quiser que não abra, eu prendo e arrebento!
Não pretendia o ditador instituir a santidade, seu objetivo um tanto mais modesto era apenas propiciar liberdade!
* * *
Atualmente, a polícia carioca executa um processo de “pacificação” nos morros do Rio de Janeiro. A denominação cínica já era usada pelos anglo-americanos para se referir ao extermínio dos nativos americanos. Provavelmente tenha sido usada anteriormente para se referir ao genocídio de outros povos pelos ingleses.
A pacificação de um morro é iniciada com a incursão de um carro blindado ocupado por um batalhão de policiais portando armas de guerra. O morador do morro é antes de tudo um suspeito.
Além dos bandidos executados pelas forças policiais, muitos moradores sucumbem ao tiroteio pesado, mas, afinal, o que estavam fazendo ali, naquela zona suspeita.
Conforme era de conhecimento de Aderson, policial personagem do romance:
(...) todos sabiam quem era bandido e quem não era. Ninguém tinha a menor dúvida de que bandido era bandido desde que nascia, e era fácil reconhecer um deles, bastando olhar para a cara, ou ver onde tinha nascido e crescido.
Também sabia que, para um policial:
(...) era imperioso impor a autoridade, demonstrar quem manda, quem está no poder.
Que outro resultado poderá ter a “pacificação”, feita a bala de metralhadora, que não a renovação de ódios tão antigos quanto a escravidão, e tantas vezes reavivados pelas feridas das armas?
As incursões policiais aos morros não se destinam a levar justiça às populações, trata-se de mostrar quem manda.
A população local, ignorante, mas não obtusa, aprende a mensagem: é preciso ter força, é preciso resistir, violência é poder. Dessa maneira, o poder e a violência se replicam. Tendo aprendido a lição, a população se arma e revida. O que os bandidos querem é o mesmo que a polícia, aprenderam com ela; o que querem é mandar!
Assim, nos morros do Rio de Janeiro, poder e ódio se realimentam ao longo dos séculos. Até quando se renovarão os ódios? Até quando o poder público se empenhará apenas em punir e massacrar?
Nos morros do Rio pune-se a pobreza, pune-se a miséria. O crime brutal é ter nascido pobre.