O JOVEM JESUS QUE OS E VANGELHOS OCU LTARAM-CAP 16
ﬠ
O filho de Maria tem cerca de seis anos quando Judas, chamado o Galileu, inicia uma revolta contra o domínio romano. Essa briga está bem documentada na história dos judeus e não se precisa de muita imaginação para ver o que ela significa num contexto desses.
Judas Galileu, nesses dias em que o menino ainda nem começou a aprender a ler, é um jovem fariseu ai pelos seus trinta e dois anos, se tanto, mas já membro do Sinédrio e tido como um respeitado líder pelo povo de Jeová. Flávio Josefo, cronista que viveu cerca de duas ou três gerações depois desses dias, nos deixou um relato bem detalhado dessa aventura. É certo que ele não tinha em boa conta o fariseu guerreiro, pois a crônica que escreveu a respeito das suas lutas é uma severa crítica ao que ele definiu como uma enorme irresponsabilidade e uma burrice sem limites. Pois segundo a sua visão das coisas, foi esse Judas quem iniciou o movimento que iria terminar nos rochedos de Massada, com a destruição do Templo e a morte de mais da metade da população da Judéia.
Mas Josefo era um judeu helenizado e sua vontade de agradar os romanos falava mais alto que a sua devoção à pátria. Por isso, seu testemunho não é menos suspeito do que todos os demais cronistas que tentaram reportar os fatos dos quais nos ocupamos aqui. Tomemo-lo como referência, mas não com reverência, e assim não cometeremos injustiças com os demais repórteres, que com seus escritos, contribuíram para dar à história do filho de Maria a magnitude que ela assumiu.
Dito isso, voltemos a Judas Galileu. A esta altura, o leitor que ousou nos seguir até esta curva do caminho, onde a nossa a nossa própria visão dos fatos começa efetivamente a tomar um rumo, poderá inferir que estamos falando daquele mesmo jovem que, segundo a perspectiva que estamos desenhando aqui, trouxe à menina Maria, não a notícia da concepção milagrosa, mas a própria experiência em si. Sim, por que em nossa visão, foi ele mesmo o anjo da história, ainda que não se chamasse Gabriel, mas sim Judas; e não fosse efetivamente um alto emissário das cortes celestes, desses que, como Hermes, Osíris ou Prometeu, são enviados à terra para cumprir missões de grande relevância para o destino da humanidade, e sim um simples rapaz com intenções menos nobres e mais profanas do que aquelas que lhe foram atribuídas.
Intenções de Judas, enquanto homem, digamos a bem da verdade, mas que podem também ter sido as de Jeová, como já deixamos explicito, pois quem saberia dizer se não foi a mando Dele que os dois jovens se encontraram?
– Nenhum Senhor além de Deus e nenhum tributo a César ou a qualquer outro governo estrangeiro! Esse é o brado que Judas dá à multidão que se comprime no átrio do Templo. Junto com ele vêm Sadoc, um sacerdote saduceu de certa proeminência entre os judeus, e mais alguns dos membros daquela assembléia, que tiveram coragem suficiente para tomar posição ao lado do jovem fariseu rebelde. Com eles podemos ver também a cabeça encanecida do velho Jacó, seu pai, cujo fervor patriótico já conhecemos. Tempo é, diga-se de passagem, de trazer de volta a esta crônica o ancião de Arimatéia, porquanto não é bom deixar pontas desamarradas numa história dessa natureza. De certo haverá alguém que se lembre dele e perguntará o que foi feito do velho e ladino fariseu, que com engodos e astúcia levara José a casar-se com Maria, contra a vontade dele e talvez mesmo contra as esperanças da moça. Assim, para que não se venha a culpar este cronista dos mesmos defeitos apontados nos relatos dos escribas oficiais desta história, que tantas lacunas nela deixaram para que se as preencha a imaginação, nós o pusemos junto ao seu filho Judas, no átrio do Templo, a apoiar-lhe a revolta.
– Os impostos que os romanos irão exigir de nós de agora em diante – continua Judas em seu discurso –, reduzirão o nosso país a um estado total de servidão. Por isso chegou a hora de lutar pela nossa liberdade. Se vencermos, estaremos criando os alicerces da prosperidade; se perdermos, seremos honrados e glorificados pela posteridade por não termos nos submetido, como covardes, ao domínio estrangeiro!
Esse não é um discurso novo. Dois séculos antes os irmãos Macabeus já o haviam pronunciado, ali mesmo no átrio do antigo Templo, que então era o Templo de Zorobabel, enquanto que este onde agora ele está é o de Herodes. Naquela ocasião, quando Antíoco Epifanes, rei da Síria, a quem estava sujeita a Judéia naquele tempo, ocupou o sagrado edifício para nele instalar estátuas de Zeus Olímpico ao lado do altar do Santo dos Santos, um povo inflamado por uma poderosa oratória atendeu ao apelo dos Macabeus e formou um grande exército para libertar a pátria do domínio sírio. Nesta oportunidade, em que Judas Galileu fala à massa reunida em frente ao Templo de Herodes, as pessoas que ali se aglomeram também respondem com entusiasmo ao seu discurso. Mudam-se os tempos, mas as pessoas parecem continuar as mesmas. E talvez seja realmente assim, porque na Judéia, nestes dias em que o imperador Otávio Augusto manda para lá um magistrado da sua confiança para governá-la, com duas legiões para apoiá-lo nessa tarefa, nada mudou, exceto as datas do calendário e algumas construções que foram acrescidas as já existentes nos dias dos Macabeus. Mas as idéias, os sentimentos, os alicerces da alma dessa nação, que são os seus arquétipos fundamentais, esses ainda são exatamente os mesmos desde os dias de Abraão. E são esses arquétipos que os motivam na vida e na morte, porque Israel, mais que uma nação, é uma crença, moldada em séculos e séculos de devoção. E é para defendê-la que elas correm a pegar suas armas. Lá vem a turba armada de espadas, forcados, enxadas, foices, porretes, ou qualquer outra coisa com a qual possam romper cabeças, posicionando-se em frente aos portões da cidade, em guarda para enfrentar as tropas romanas.
Não é difícil imaginar a carnificina que ocorre nesse dia. Uma imensa mole humana, despreparada, inadequadamente armada, sem estratégias de combate e sem qualquer experiência de guerra, enfrentando duas legiões do maior e mais bem preparado exército que o mundo já vira até aquele momento! Por cima dos milhares de corpos que jazem às portas de Jerusalém, os legionários de Copônius entram marchando na cidade santuário, e mais uma vez a abominação da desolação, expressão repetdamente usada pelos profetas da terra para referir-se a fatos tantas vezes ocorridos nessa cidade, encruzilhada do mundo, é o único nome que se pode dar ao cenário dantesco que se espalha pelas suas ruas estreitas, coalhadas de cadáveres insepultos.
Quem conseguiu escapar fugiu para os montes, onde os soldados romanos não os podiam perseguir; e os que se esconderam nos telhados, lá ficaram até a tribulação passar e uma paz confiável ser negociada; os que viviam no campo, lá permanece-ram e não vieram à cidade por um longo tempo. E como essas coisas aconteceram no inverno, calamitosa foi a situação das mulheres que estavam prenhas e das que amamentavam, pois que a fome, as doenças e todas as desgraças que acompanham uma guerra faz delas e de seus rebentos as principais vítimas.
Entre os tombados nessa terrível batalha iremos encontrar o velho Jacó, morto a estocadas por um legionário, quando tentava se refugiar no interior do Templo. Assim sai de cena o austero fariseu, lutando pelo seu sonho; e dessa forma fazemos justiça a ele, pois tudo que fez, foi com um bom propósito e seria uma rematada injustiça fazê-lo morrer de outro modo. Se não constitui gloriosa morte, pelo menos o faz digno de certa honra. Não viu o seu sonho realizado, mas quem, entre os judeus de todos os tempos, pode realmente se ufanar de ter usufruído de tal privilégio?
Lá está o corpo do velho Jacó, estirado entre as colunas Boaz e Jakin do Templo de Herodes, seu sangue manchando as frias pedras do átrio, como ha um milênio antes o sangue de Hiram Abiff também manchou aquele primeiro santuário. Mas seu filho Judas não foi encontrado entre os caídos na batalha travada nas ruas de Jerusalém. Ele e seus seguidores mais próximos fugiram para as montanhas e dos ignotos e inacessíveis refúgios onde se homiziaram, passaram a mover uma guerra sem quartel contra as tropas romanas e contra todos aqueles que, de algum modo, colaboravam com os invasores. Mais tarde, expulso da Judéia, Judas refugiou-se nas montanhas da Galiléia e tornou-se um temível guerrilheiro, tormento de Herodes Antipas e dos romanos, seus aliados. Talvez por isso, também, lhe tenha vindo o apelido de Galileu. Por doze anos ele lutou contra os algozes da sua pátria e houve quem dissesse que ele era o Messias que havia de vir.
Enquanto Copônius restabelece a paz na Judéia, Iduméia e Samaria, Antipas procura fazer o mesmo nos seus domínios da Galiléia e Peréia. Lotam-se os calabouços, multiplicam-se as cruzes no alto das colinas e nas margens das estradas, diminui-se a população da Palestina. Logo uma calmaria, somente quebrada por um ou outro ataque guerrilheiro a destacamentos militares desgarrados, ou uma refrega aqui, outra ali, se instala nos territórios que vão do deserto do Sinai às montanhas de Abilene. A pax romana, tão louvada nos dias de Augusto, chegara á Palestina e era mantida a ferro e fogo pelas suas legiões.
Assim se passam esses primeiros anos da vida de José em Nazaré, pois esse é o quadro da terra, na altura em que o filho de Maria começa a aprender a ler e toma contato com a literatura sagrada do seu povo. Ela é a cartilha pela qual se ensinam as letras e tudo mais que há de interesse ensinar às crianças na terra dos judeus. No geral, os meninos vão à sinagoga para aprender a ler e a respeitar a tradições dos ancestrais, dos seis aos quatorze anos. Fazem isso todos os dias, pela manhã ou à tarde, e assim, por oito anos, crianças e adolescentes cumprem esse currículo escolar, por conta do qual pode-se dizer que povo mais bem educado que os judeus no conhecimento dos ordenamentos divinos não existe sobre a face da terra. Talvez nesse particular se assente a informação daquele cronista, que disse estar a crescer o filho de Maria em altura e graça perante Deus e os homens. Portanto, nessa, como em outras informações que deu não errou nem inventou, pois é fato comum que as crianças ganham estatura à medida que os anos passam, já que sempre as vemos maiores e mais instruídas a cada vez que as encontramos. E quanto a crescer nas graças de Deus, para isso é preciso que se saibam quais são os seus ordenamentos, coisa que só é possível aprender lendo nas entrelinhas dos livros sagrados que os santos de Israel redigiram em seu Nome. Essa capacidade, em Israel, mais do que em qualquer outra nação, só se adquire por conta de especial treinamento, que em qualquer língua ou religião se chama iniciação, ou por força de uma extraordinária sensibilidade, que às vezes a natureza – ou quem quer que a controle –, a um ou outro privilegiado filho do homem concede como herança.
Não se pode esperar obras prodigiosas de uma criança que mal aprendeu a prover as próprias necessidades sozinha. E isso não iremos exigir do filho de Maria nos seus primeiros dez anos de vida, embora já o tivessem feito outros cronistas. Houve quem o pusesse a executar prodígios extraordinários, tais como fazer estátuas falarem, meninos virarem mulos, passarinhos de barro voarem, surdos-mudos de nascença recuperarem a audição e a voz, paralíticos andarem, mortos reviverem e muitas outras maravilhas que a nenhum mágico ou santo jamais se atribuiu. Convenhamos que já é muito exigir de um menino dessa idade o cumprimento dos seus deveres diários, que consistem na repetição das lições que recebe na sinagoga, a ordenha das cabras pela manhã, a tarefa de ajuntar lenha para o fogo à tarde e a pronúncia diária das orações rituais, que eles teimam em esquecer, e por isso precisam ser constantemente lembrados. Essa é, precisamente, a razão pela qual o deixaremos em paz nesse primeiro decil da vida, não computando em sua personalidade mais do que uma ou outra observação estranha que de repente ele faz na sinagoga, ou algumas perguntas meio abusadas que, segundo diz José, ele lhe faz.
– Por que o Senhor não deixou que Moisés entrasse na terra prometida depois de tudo que ele fez? Não era uma injustiça com quem tanto trabalhou e O serviu tão bem?
– Por que o Senhor deixou que Cain matasse Abel? Não amava Ele mais a Abel do que a Cain?
– Por que o Senhor deixou que os egípcios escravizassem o seu povo para depois ter tanto trabalho para tirá-los do Egito?
– Por que o Senhor disse que amaldiçoaria qualquer um que matasse Cain? Não era ele um assassino?
– De onde apareceu a mulher que Cain desposou, se a família de Adão foi a primeira constituída na terra?
José sabe que as crianças, às vezes, fazem perguntas embaraçosas. Por isso não se importa em procurar respostas para elas. Quando tais questionamentos são feitos, ele apenas olha para o menino e abana a cabeça, como se faz quando alguém diz uma besteira qualquer. Nessa toada, os anos vão passando e o menino cresce sem que nenhum outro fato lhe venha chamar a atenção, a não ser a estranha mania que ele tem de querer consertar coisas quebradas e tratar de animais feridos. Ora é uma velha cadeira sem pernas que ele busca recompor, ora é um gato, ou um cão cheio de berebas que ele acolhe e trata, ou um passarinho de asas quebradas que ele se empenha em curar. E essas obras, ele as faz tão bem que logo vêm os comentários que desde cedo o povo aprendeu a fazer a respeito dele: “ esse menino vai ser um bom rofé”.
Assim se vai a sua infância. E se andarmos no tempo uns quatro anos mais, iremos encontrá-lo já um menino sacudido e bem parrudo, a ajudar o pai adotivo em algumas tarefas da profissão. É ele quem alisa, com uma pedra à guisa de lixa, a superfície das tábuas com as quais serão fabricadas as mesas; ele é quem limpa as ferramentas e as guarda; que provê do necessário abastecimento de água a José e seu meio-irmão Judas, agora um adolescente fortão, beirando os seus quinze anos e mostrando já os primeiros sinais de habilidade na profissão da família. Nada ainda, nestes prenúncios de adolescência, a não ser um alheamento pelas coisas comuns da vida em família, e uma precoce curiosidade por assuntos que não fazem parte do currículo cultural do povo judeu – coisa realmente estranha para um menino de dez anos –, parece denunciar nele qualquer particularidade de caráter. Essas especificidades que dão marca à personalidades extraordinárias ainda não se fazem notar nele neste exato momento, conquanto muitos cronistas afirmassem que espetáculos dignos de grandes reportagens, já nessa idade, ele proporcionava. Houve até quem o fizesse um menino perverso, capaz de rogar pragas e fatais sortilégios sobre as pessoas de quem ele não gostava ou que de alguma forma lhe causasse algum aborrecimento. E que desafiava professores na sinagoga com enigmas indecifráveis e charadas incompreensíveis, deixando-os completamente loucos. Outros há que o viram a voar sobre montanhas, como uma águia, ou a libertar, pelo buraco de uma fechadura, um garoto que fora injustamente encarcerado pelo pai, que não o queria brincando com aquele menino bruxo.
Descontadas todas essas licenciosidades, que citamos somente para que se veja até onde uma história dessas pode chegar, a verdade é que José não esquecera as circunstâncias do nascimento do menino, malgrado o tempo houvesse mitigado suas mágoas e o tivesse levado a reconciliar-se com Maria. Com ela tivera mais três filhos, um menino chamado José e duas meninas, às quais foram dados os nomes de Miriam e Salomé. Assim, a sua família agora era composta de Judas, o filho do seu primeiro casamento, Jesus, o filho de Maria, José, o primogênito de seu casamento com ela, que estava com oito anos, Miriam, uma menina miudinha, completando o seu quinto ano de vida e Salomé, uma garota esperta e birrenta, que acabara de fazer três anos. Destarte, essa é família de José, o carpinteiro, neste exato momento em que o vemos trabalhando em sua carpintaria e experimentando os sentimentos que lhe demos ainda a pouco.
Sabemos que também nesse aspecto, muitas são as divergências entre as informações que temos e as que foram anteriormente divulgadas a respeito da família de José e Maria. Mas como nos demais casos aqui referidos, tudo é inferência, especulação e diz que diz, pois ninguém, a que se saiba, fez recensea-mento digno de crédito a respeito da família que a meiga filha de Joaquim formou com o probo carpinteiro de Belém. O que se sabe, ( e isso damos como certo, porquanto a confirmação de fontes a tal fato dá suporte ), é que o filho de Maria e Judas Galileu não foi o único que as entranhas da sonhadora donzela de Belém geraram. Todos quantos escreveram sobre esse assunto foram unânimes em afirmar que ele não era filho único e hoje há quem sustente que vários dos seus discípulos eram, na verdade, seus irmãos. E que houve inclusive um irmão gêmeo, identificado como sendo aquele Tomé, o Dídimo, que segundo dizem, foi quem morreu na cruz, enganando as autoridades do Sinédrio e os algozes romanos.
Todas essas especulações que foram levantadas nos anos que se seguiram à extraordinária experiência do filho de Maria nunca puderam ser comprovadas, e temos para nós que o fato de ninguém ter feito qualquer registro dela é que deram origem a essas licenciosidades. Do que sabemos a respeito, é que quanto à família do carpinteiro José, somados os três filhos que teve com Maria, mais os dois que ele trouxe do seu casamento anterior, vamos encontrar, em sua casa, no momento em que fazemos este inventário, um casal com cinco filhos, já que Lídia, a filha que o carpinteiro trouxe do primeiro casamento, nesta altura da nossa visão, já constituiu família própria. Casou-se aos dezessete anos com um comerciante de Séforis e já deu a ele dois netos.
Andando um pouco mais na linha do tempo, em direção ao futuro, e para que não se perca o leitor nos meandros dessa abstração – que esse é o grande perigo de quem acompanha uma história como essa –, informaremos que o filho de Maria tem, no exato momento deste registro, cerca de doze anos de idade. É aprendiz de carpintaria e já começa a experimentar as cismas que costumam visitar a alma de um adolescente normal. Também as naturais escaramuças com seu meio-irmão Judas são freqüentes, e estranho seria se elas não ocorressem. Irmãos que não brigam, nessa idade, são raros. Que se reconciliaram mais tarde e se tornaram sócios do mesmo empreendimento, muito mais próximos e fiéis do que o foram na carpintaria, isso parece ser indubitável. Sabemos disso porque muitos cronistas contabilizaram entre os discípulos do filho de Maria dois Judas, um conhecido como Tadeu e outro como Iscariotes. O Iscariotes, segundo as crônicas oficiais, foi aquele que o entregou às autoridades. E este Tadeu, desconfiamos, foi, de fato, seu meio-irmão, o filho que José trouxe do seu casamento anterior.
No mais, só podemos lamentar que em relação à saga do filho de Maria, os cronistas oficiais tenham se ocupado tão pouco da sua família. São tantas as pistas que foram deixadas pelos seus irmãos, que se poderia mesmo recompor uma importante parcela da sua história se tais pisadas fossem devidamente seguidas. Um recenseamento das vidas e das ações de Tiago, chamado o Justo, por exemplo, reconhecido como seu irmão, e Simão, o Zelote, indicado pelos cronistas oficiais como um de seus discípulos, poderia trazer muita luz à questão. Se outros registros, além dos cânones oficiais, não existem para provar a existência e os feitos dos demais seguidores do filho de Maria, destes há muitas informações que foram registradas por historiadores descomprometidos com a sua doutrina. É com base nesses escritos que estamos a desconfiar que dois dos seus discípulos – Simão, o Zelote e Tiago, conhecido o Justo –, citados em todas as crônicas oficiais como parte dos doze que seguiam o filho de Maria, eram os filhos legítimos de Judas Galileu, e portanto, seus irmãos por parte de pai. Flávio Josefo reporta que estes dois mártires foram crucificados durante o governo de Tibério Alexandre, cerca de quinze anos depois do seu famoso meio-irmão, e não é muito difícil imaginar por que. Ligados pelo sangue a dois possíveis Messias – o guerreiro e o profeta –, seus destinos não podiam ser mesmo diferentes.
Quanto a Miriam e Salomé, as irmãs que sua mãe teve do leito com José, estas morreram em idade provecta, cumprindo a missão que lhes cabia na vida e na cultura do país. Pois geraram muitos filhos para os seus maridos, moços de relativos cabedais, que viviam em Séforis um e Caná outro, com quem elas se casa-ram aos dezessete anos a primeira, aos dezesseis a segunda, respectivamente. Aliás, se a informação que temos não é falsa, foi na festa de casamento da sua irmã Salomé que o filho de Maria fez a água tornar-se vinho dos bons, segundo se contou mais tarde e foi essa façanha, digna do mais sábio alquimista, que lhe deu a primeira fama como mago.
Ao reportar ao mundo essas notícias prestamos a devida vênia aos seus irmãos e deixaremos que eles abandonem o palco desta história para não mais voltar, a não ser que seja necessário para acrescentar algum molho, que inadvertidamente o cronista nela se esqueceu de colocar. Apenas como informação para quem gosta de especular, lembraremos que não faz muito tempo foi descoberta em Jerusalém uma tumba contendo uma urna funerária com os enigmáticos dizeres: Ieshua bar Iousef. Os exames realizados nos restos mortais encontrados na urna mostraram que eles pertenciam a um homem de trinta e poucos anos, que morreu de morte violenta nos primeiros anos da nossa era, provavelmente crucificado, porque em suas mãos e pés remanesciam ainda os sinais da fixação na cruz. Em nichos da mesma tumba foram desenterradas várias outras urnas grafadas com os nomes Tiago, Simão e Judas, e duas mulheres nomeadas como Miriam e Mariamne, além do esqueleto de uma criança de colo. Logo não faltou quem dissesse que se tratava dos restos mortais do filho de Maria e de membros da sua família. A possibilidade não é de se desprezar porquanto sabemos que a família dele, por ser pobre e procedente da Galiléia, não teria condições de adquirir e manter uma tumba familiar em Jerusalém. Mas a família de Judas Galileu e José de Arimatéia sim, e isso nos dá asas para boas especulações.
O que, de resto, não tem muita importância para o escopo da nossa crônica, porquanto se sabe que o filho de Maria renunciou ao conceito de família de sangue quando assumiu a sua missão. O que se dá por verdadeiro que ele realmente disse, certa vez que sua mãe e seus irmãos o procuraram, já em plena fama, que sua família era quem fazia a vontade de Deus. Isso significa que ele adotou a humanidade toda como ampliação da sua sensibilidade, ao invés da estreita idéia de um núcleo familiar, o que nos dá bem uma idéia do que se passava na sua alma.
ﬠ
O filho de Maria tem cerca de seis anos quando Judas, chamado o Galileu, inicia uma revolta contra o domínio romano. Essa briga está bem documentada na história dos judeus e não se precisa de muita imaginação para ver o que ela significa num contexto desses.
Judas Galileu, nesses dias em que o menino ainda nem começou a aprender a ler, é um jovem fariseu ai pelos seus trinta e dois anos, se tanto, mas já membro do Sinédrio e tido como um respeitado líder pelo povo de Jeová. Flávio Josefo, cronista que viveu cerca de duas ou três gerações depois desses dias, nos deixou um relato bem detalhado dessa aventura. É certo que ele não tinha em boa conta o fariseu guerreiro, pois a crônica que escreveu a respeito das suas lutas é uma severa crítica ao que ele definiu como uma enorme irresponsabilidade e uma burrice sem limites. Pois segundo a sua visão das coisas, foi esse Judas quem iniciou o movimento que iria terminar nos rochedos de Massada, com a destruição do Templo e a morte de mais da metade da população da Judéia.
Mas Josefo era um judeu helenizado e sua vontade de agradar os romanos falava mais alto que a sua devoção à pátria. Por isso, seu testemunho não é menos suspeito do que todos os demais cronistas que tentaram reportar os fatos dos quais nos ocupamos aqui. Tomemo-lo como referência, mas não com reverência, e assim não cometeremos injustiças com os demais repórteres, que com seus escritos, contribuíram para dar à história do filho de Maria a magnitude que ela assumiu.
Dito isso, voltemos a Judas Galileu. A esta altura, o leitor que ousou nos seguir até esta curva do caminho, onde a nossa a nossa própria visão dos fatos começa efetivamente a tomar um rumo, poderá inferir que estamos falando daquele mesmo jovem que, segundo a perspectiva que estamos desenhando aqui, trouxe à menina Maria, não a notícia da concepção milagrosa, mas a própria experiência em si. Sim, por que em nossa visão, foi ele mesmo o anjo da história, ainda que não se chamasse Gabriel, mas sim Judas; e não fosse efetivamente um alto emissário das cortes celestes, desses que, como Hermes, Osíris ou Prometeu, são enviados à terra para cumprir missões de grande relevância para o destino da humanidade, e sim um simples rapaz com intenções menos nobres e mais profanas do que aquelas que lhe foram atribuídas.
Intenções de Judas, enquanto homem, digamos a bem da verdade, mas que podem também ter sido as de Jeová, como já deixamos explicito, pois quem saberia dizer se não foi a mando Dele que os dois jovens se encontraram?
– Nenhum Senhor além de Deus e nenhum tributo a César ou a qualquer outro governo estrangeiro! Esse é o brado que Judas dá à multidão que se comprime no átrio do Templo. Junto com ele vêm Sadoc, um sacerdote saduceu de certa proeminência entre os judeus, e mais alguns dos membros daquela assembléia, que tiveram coragem suficiente para tomar posição ao lado do jovem fariseu rebelde. Com eles podemos ver também a cabeça encanecida do velho Jacó, seu pai, cujo fervor patriótico já conhecemos. Tempo é, diga-se de passagem, de trazer de volta a esta crônica o ancião de Arimatéia, porquanto não é bom deixar pontas desamarradas numa história dessa natureza. De certo haverá alguém que se lembre dele e perguntará o que foi feito do velho e ladino fariseu, que com engodos e astúcia levara José a casar-se com Maria, contra a vontade dele e talvez mesmo contra as esperanças da moça. Assim, para que não se venha a culpar este cronista dos mesmos defeitos apontados nos relatos dos escribas oficiais desta história, que tantas lacunas nela deixaram para que se as preencha a imaginação, nós o pusemos junto ao seu filho Judas, no átrio do Templo, a apoiar-lhe a revolta.
– Os impostos que os romanos irão exigir de nós de agora em diante – continua Judas em seu discurso –, reduzirão o nosso país a um estado total de servidão. Por isso chegou a hora de lutar pela nossa liberdade. Se vencermos, estaremos criando os alicerces da prosperidade; se perdermos, seremos honrados e glorificados pela posteridade por não termos nos submetido, como covardes, ao domínio estrangeiro!
Esse não é um discurso novo. Dois séculos antes os irmãos Macabeus já o haviam pronunciado, ali mesmo no átrio do antigo Templo, que então era o Templo de Zorobabel, enquanto que este onde agora ele está é o de Herodes. Naquela ocasião, quando Antíoco Epifanes, rei da Síria, a quem estava sujeita a Judéia naquele tempo, ocupou o sagrado edifício para nele instalar estátuas de Zeus Olímpico ao lado do altar do Santo dos Santos, um povo inflamado por uma poderosa oratória atendeu ao apelo dos Macabeus e formou um grande exército para libertar a pátria do domínio sírio. Nesta oportunidade, em que Judas Galileu fala à massa reunida em frente ao Templo de Herodes, as pessoas que ali se aglomeram também respondem com entusiasmo ao seu discurso. Mudam-se os tempos, mas as pessoas parecem continuar as mesmas. E talvez seja realmente assim, porque na Judéia, nestes dias em que o imperador Otávio Augusto manda para lá um magistrado da sua confiança para governá-la, com duas legiões para apoiá-lo nessa tarefa, nada mudou, exceto as datas do calendário e algumas construções que foram acrescidas as já existentes nos dias dos Macabeus. Mas as idéias, os sentimentos, os alicerces da alma dessa nação, que são os seus arquétipos fundamentais, esses ainda são exatamente os mesmos desde os dias de Abraão. E são esses arquétipos que os motivam na vida e na morte, porque Israel, mais que uma nação, é uma crença, moldada em séculos e séculos de devoção. E é para defendê-la que elas correm a pegar suas armas. Lá vem a turba armada de espadas, forcados, enxadas, foices, porretes, ou qualquer outra coisa com a qual possam romper cabeças, posicionando-se em frente aos portões da cidade, em guarda para enfrentar as tropas romanas.
Não é difícil imaginar a carnificina que ocorre nesse dia. Uma imensa mole humana, despreparada, inadequadamente armada, sem estratégias de combate e sem qualquer experiência de guerra, enfrentando duas legiões do maior e mais bem preparado exército que o mundo já vira até aquele momento! Por cima dos milhares de corpos que jazem às portas de Jerusalém, os legionários de Copônius entram marchando na cidade santuário, e mais uma vez a abominação da desolação, expressão repetdamente usada pelos profetas da terra para referir-se a fatos tantas vezes ocorridos nessa cidade, encruzilhada do mundo, é o único nome que se pode dar ao cenário dantesco que se espalha pelas suas ruas estreitas, coalhadas de cadáveres insepultos.
Quem conseguiu escapar fugiu para os montes, onde os soldados romanos não os podiam perseguir; e os que se esconderam nos telhados, lá ficaram até a tribulação passar e uma paz confiável ser negociada; os que viviam no campo, lá permanece-ram e não vieram à cidade por um longo tempo. E como essas coisas aconteceram no inverno, calamitosa foi a situação das mulheres que estavam prenhas e das que amamentavam, pois que a fome, as doenças e todas as desgraças que acompanham uma guerra faz delas e de seus rebentos as principais vítimas.
Entre os tombados nessa terrível batalha iremos encontrar o velho Jacó, morto a estocadas por um legionário, quando tentava se refugiar no interior do Templo. Assim sai de cena o austero fariseu, lutando pelo seu sonho; e dessa forma fazemos justiça a ele, pois tudo que fez, foi com um bom propósito e seria uma rematada injustiça fazê-lo morrer de outro modo. Se não constitui gloriosa morte, pelo menos o faz digno de certa honra. Não viu o seu sonho realizado, mas quem, entre os judeus de todos os tempos, pode realmente se ufanar de ter usufruído de tal privilégio?
Lá está o corpo do velho Jacó, estirado entre as colunas Boaz e Jakin do Templo de Herodes, seu sangue manchando as frias pedras do átrio, como ha um milênio antes o sangue de Hiram Abiff também manchou aquele primeiro santuário. Mas seu filho Judas não foi encontrado entre os caídos na batalha travada nas ruas de Jerusalém. Ele e seus seguidores mais próximos fugiram para as montanhas e dos ignotos e inacessíveis refúgios onde se homiziaram, passaram a mover uma guerra sem quartel contra as tropas romanas e contra todos aqueles que, de algum modo, colaboravam com os invasores. Mais tarde, expulso da Judéia, Judas refugiou-se nas montanhas da Galiléia e tornou-se um temível guerrilheiro, tormento de Herodes Antipas e dos romanos, seus aliados. Talvez por isso, também, lhe tenha vindo o apelido de Galileu. Por doze anos ele lutou contra os algozes da sua pátria e houve quem dissesse que ele era o Messias que havia de vir.
Enquanto Copônius restabelece a paz na Judéia, Iduméia e Samaria, Antipas procura fazer o mesmo nos seus domínios da Galiléia e Peréia. Lotam-se os calabouços, multiplicam-se as cruzes no alto das colinas e nas margens das estradas, diminui-se a população da Palestina. Logo uma calmaria, somente quebrada por um ou outro ataque guerrilheiro a destacamentos militares desgarrados, ou uma refrega aqui, outra ali, se instala nos territórios que vão do deserto do Sinai às montanhas de Abilene. A pax romana, tão louvada nos dias de Augusto, chegara á Palestina e era mantida a ferro e fogo pelas suas legiões.
Assim se passam esses primeiros anos da vida de José em Nazaré, pois esse é o quadro da terra, na altura em que o filho de Maria começa a aprender a ler e toma contato com a literatura sagrada do seu povo. Ela é a cartilha pela qual se ensinam as letras e tudo mais que há de interesse ensinar às crianças na terra dos judeus. No geral, os meninos vão à sinagoga para aprender a ler e a respeitar a tradições dos ancestrais, dos seis aos quatorze anos. Fazem isso todos os dias, pela manhã ou à tarde, e assim, por oito anos, crianças e adolescentes cumprem esse currículo escolar, por conta do qual pode-se dizer que povo mais bem educado que os judeus no conhecimento dos ordenamentos divinos não existe sobre a face da terra. Talvez nesse particular se assente a informação daquele cronista, que disse estar a crescer o filho de Maria em altura e graça perante Deus e os homens. Portanto, nessa, como em outras informações que deu não errou nem inventou, pois é fato comum que as crianças ganham estatura à medida que os anos passam, já que sempre as vemos maiores e mais instruídas a cada vez que as encontramos. E quanto a crescer nas graças de Deus, para isso é preciso que se saibam quais são os seus ordenamentos, coisa que só é possível aprender lendo nas entrelinhas dos livros sagrados que os santos de Israel redigiram em seu Nome. Essa capacidade, em Israel, mais do que em qualquer outra nação, só se adquire por conta de especial treinamento, que em qualquer língua ou religião se chama iniciação, ou por força de uma extraordinária sensibilidade, que às vezes a natureza – ou quem quer que a controle –, a um ou outro privilegiado filho do homem concede como herança.
Não se pode esperar obras prodigiosas de uma criança que mal aprendeu a prover as próprias necessidades sozinha. E isso não iremos exigir do filho de Maria nos seus primeiros dez anos de vida, embora já o tivessem feito outros cronistas. Houve quem o pusesse a executar prodígios extraordinários, tais como fazer estátuas falarem, meninos virarem mulos, passarinhos de barro voarem, surdos-mudos de nascença recuperarem a audição e a voz, paralíticos andarem, mortos reviverem e muitas outras maravilhas que a nenhum mágico ou santo jamais se atribuiu. Convenhamos que já é muito exigir de um menino dessa idade o cumprimento dos seus deveres diários, que consistem na repetição das lições que recebe na sinagoga, a ordenha das cabras pela manhã, a tarefa de ajuntar lenha para o fogo à tarde e a pronúncia diária das orações rituais, que eles teimam em esquecer, e por isso precisam ser constantemente lembrados. Essa é, precisamente, a razão pela qual o deixaremos em paz nesse primeiro decil da vida, não computando em sua personalidade mais do que uma ou outra observação estranha que de repente ele faz na sinagoga, ou algumas perguntas meio abusadas que, segundo diz José, ele lhe faz.
– Por que o Senhor não deixou que Moisés entrasse na terra prometida depois de tudo que ele fez? Não era uma injustiça com quem tanto trabalhou e O serviu tão bem?
– Por que o Senhor deixou que Cain matasse Abel? Não amava Ele mais a Abel do que a Cain?
– Por que o Senhor deixou que os egípcios escravizassem o seu povo para depois ter tanto trabalho para tirá-los do Egito?
– Por que o Senhor disse que amaldiçoaria qualquer um que matasse Cain? Não era ele um assassino?
– De onde apareceu a mulher que Cain desposou, se a família de Adão foi a primeira constituída na terra?
José sabe que as crianças, às vezes, fazem perguntas embaraçosas. Por isso não se importa em procurar respostas para elas. Quando tais questionamentos são feitos, ele apenas olha para o menino e abana a cabeça, como se faz quando alguém diz uma besteira qualquer. Nessa toada, os anos vão passando e o menino cresce sem que nenhum outro fato lhe venha chamar a atenção, a não ser a estranha mania que ele tem de querer consertar coisas quebradas e tratar de animais feridos. Ora é uma velha cadeira sem pernas que ele busca recompor, ora é um gato, ou um cão cheio de berebas que ele acolhe e trata, ou um passarinho de asas quebradas que ele se empenha em curar. E essas obras, ele as faz tão bem que logo vêm os comentários que desde cedo o povo aprendeu a fazer a respeito dele: “ esse menino vai ser um bom rofé”.
Assim se vai a sua infância. E se andarmos no tempo uns quatro anos mais, iremos encontrá-lo já um menino sacudido e bem parrudo, a ajudar o pai adotivo em algumas tarefas da profissão. É ele quem alisa, com uma pedra à guisa de lixa, a superfície das tábuas com as quais serão fabricadas as mesas; ele é quem limpa as ferramentas e as guarda; que provê do necessário abastecimento de água a José e seu meio-irmão Judas, agora um adolescente fortão, beirando os seus quinze anos e mostrando já os primeiros sinais de habilidade na profissão da família. Nada ainda, nestes prenúncios de adolescência, a não ser um alheamento pelas coisas comuns da vida em família, e uma precoce curiosidade por assuntos que não fazem parte do currículo cultural do povo judeu – coisa realmente estranha para um menino de dez anos –, parece denunciar nele qualquer particularidade de caráter. Essas especificidades que dão marca à personalidades extraordinárias ainda não se fazem notar nele neste exato momento, conquanto muitos cronistas afirmassem que espetáculos dignos de grandes reportagens, já nessa idade, ele proporcionava. Houve até quem o fizesse um menino perverso, capaz de rogar pragas e fatais sortilégios sobre as pessoas de quem ele não gostava ou que de alguma forma lhe causasse algum aborrecimento. E que desafiava professores na sinagoga com enigmas indecifráveis e charadas incompreensíveis, deixando-os completamente loucos. Outros há que o viram a voar sobre montanhas, como uma águia, ou a libertar, pelo buraco de uma fechadura, um garoto que fora injustamente encarcerado pelo pai, que não o queria brincando com aquele menino bruxo.
Descontadas todas essas licenciosidades, que citamos somente para que se veja até onde uma história dessas pode chegar, a verdade é que José não esquecera as circunstâncias do nascimento do menino, malgrado o tempo houvesse mitigado suas mágoas e o tivesse levado a reconciliar-se com Maria. Com ela tivera mais três filhos, um menino chamado José e duas meninas, às quais foram dados os nomes de Miriam e Salomé. Assim, a sua família agora era composta de Judas, o filho do seu primeiro casamento, Jesus, o filho de Maria, José, o primogênito de seu casamento com ela, que estava com oito anos, Miriam, uma menina miudinha, completando o seu quinto ano de vida e Salomé, uma garota esperta e birrenta, que acabara de fazer três anos. Destarte, essa é família de José, o carpinteiro, neste exato momento em que o vemos trabalhando em sua carpintaria e experimentando os sentimentos que lhe demos ainda a pouco.
Sabemos que também nesse aspecto, muitas são as divergências entre as informações que temos e as que foram anteriormente divulgadas a respeito da família de José e Maria. Mas como nos demais casos aqui referidos, tudo é inferência, especulação e diz que diz, pois ninguém, a que se saiba, fez recensea-mento digno de crédito a respeito da família que a meiga filha de Joaquim formou com o probo carpinteiro de Belém. O que se sabe, ( e isso damos como certo, porquanto a confirmação de fontes a tal fato dá suporte ), é que o filho de Maria e Judas Galileu não foi o único que as entranhas da sonhadora donzela de Belém geraram. Todos quantos escreveram sobre esse assunto foram unânimes em afirmar que ele não era filho único e hoje há quem sustente que vários dos seus discípulos eram, na verdade, seus irmãos. E que houve inclusive um irmão gêmeo, identificado como sendo aquele Tomé, o Dídimo, que segundo dizem, foi quem morreu na cruz, enganando as autoridades do Sinédrio e os algozes romanos.
Todas essas especulações que foram levantadas nos anos que se seguiram à extraordinária experiência do filho de Maria nunca puderam ser comprovadas, e temos para nós que o fato de ninguém ter feito qualquer registro dela é que deram origem a essas licenciosidades. Do que sabemos a respeito, é que quanto à família do carpinteiro José, somados os três filhos que teve com Maria, mais os dois que ele trouxe do seu casamento anterior, vamos encontrar, em sua casa, no momento em que fazemos este inventário, um casal com cinco filhos, já que Lídia, a filha que o carpinteiro trouxe do primeiro casamento, nesta altura da nossa visão, já constituiu família própria. Casou-se aos dezessete anos com um comerciante de Séforis e já deu a ele dois netos.
Andando um pouco mais na linha do tempo, em direção ao futuro, e para que não se perca o leitor nos meandros dessa abstração – que esse é o grande perigo de quem acompanha uma história como essa –, informaremos que o filho de Maria tem, no exato momento deste registro, cerca de doze anos de idade. É aprendiz de carpintaria e já começa a experimentar as cismas que costumam visitar a alma de um adolescente normal. Também as naturais escaramuças com seu meio-irmão Judas são freqüentes, e estranho seria se elas não ocorressem. Irmãos que não brigam, nessa idade, são raros. Que se reconciliaram mais tarde e se tornaram sócios do mesmo empreendimento, muito mais próximos e fiéis do que o foram na carpintaria, isso parece ser indubitável. Sabemos disso porque muitos cronistas contabilizaram entre os discípulos do filho de Maria dois Judas, um conhecido como Tadeu e outro como Iscariotes. O Iscariotes, segundo as crônicas oficiais, foi aquele que o entregou às autoridades. E este Tadeu, desconfiamos, foi, de fato, seu meio-irmão, o filho que José trouxe do seu casamento anterior.
No mais, só podemos lamentar que em relação à saga do filho de Maria, os cronistas oficiais tenham se ocupado tão pouco da sua família. São tantas as pistas que foram deixadas pelos seus irmãos, que se poderia mesmo recompor uma importante parcela da sua história se tais pisadas fossem devidamente seguidas. Um recenseamento das vidas e das ações de Tiago, chamado o Justo, por exemplo, reconhecido como seu irmão, e Simão, o Zelote, indicado pelos cronistas oficiais como um de seus discípulos, poderia trazer muita luz à questão. Se outros registros, além dos cânones oficiais, não existem para provar a existência e os feitos dos demais seguidores do filho de Maria, destes há muitas informações que foram registradas por historiadores descomprometidos com a sua doutrina. É com base nesses escritos que estamos a desconfiar que dois dos seus discípulos – Simão, o Zelote e Tiago, conhecido o Justo –, citados em todas as crônicas oficiais como parte dos doze que seguiam o filho de Maria, eram os filhos legítimos de Judas Galileu, e portanto, seus irmãos por parte de pai. Flávio Josefo reporta que estes dois mártires foram crucificados durante o governo de Tibério Alexandre, cerca de quinze anos depois do seu famoso meio-irmão, e não é muito difícil imaginar por que. Ligados pelo sangue a dois possíveis Messias – o guerreiro e o profeta –, seus destinos não podiam ser mesmo diferentes.
Quanto a Miriam e Salomé, as irmãs que sua mãe teve do leito com José, estas morreram em idade provecta, cumprindo a missão que lhes cabia na vida e na cultura do país. Pois geraram muitos filhos para os seus maridos, moços de relativos cabedais, que viviam em Séforis um e Caná outro, com quem elas se casa-ram aos dezessete anos a primeira, aos dezesseis a segunda, respectivamente. Aliás, se a informação que temos não é falsa, foi na festa de casamento da sua irmã Salomé que o filho de Maria fez a água tornar-se vinho dos bons, segundo se contou mais tarde e foi essa façanha, digna do mais sábio alquimista, que lhe deu a primeira fama como mago.
Ao reportar ao mundo essas notícias prestamos a devida vênia aos seus irmãos e deixaremos que eles abandonem o palco desta história para não mais voltar, a não ser que seja necessário para acrescentar algum molho, que inadvertidamente o cronista nela se esqueceu de colocar. Apenas como informação para quem gosta de especular, lembraremos que não faz muito tempo foi descoberta em Jerusalém uma tumba contendo uma urna funerária com os enigmáticos dizeres: Ieshua bar Iousef. Os exames realizados nos restos mortais encontrados na urna mostraram que eles pertenciam a um homem de trinta e poucos anos, que morreu de morte violenta nos primeiros anos da nossa era, provavelmente crucificado, porque em suas mãos e pés remanesciam ainda os sinais da fixação na cruz. Em nichos da mesma tumba foram desenterradas várias outras urnas grafadas com os nomes Tiago, Simão e Judas, e duas mulheres nomeadas como Miriam e Mariamne, além do esqueleto de uma criança de colo. Logo não faltou quem dissesse que se tratava dos restos mortais do filho de Maria e de membros da sua família. A possibilidade não é de se desprezar porquanto sabemos que a família dele, por ser pobre e procedente da Galiléia, não teria condições de adquirir e manter uma tumba familiar em Jerusalém. Mas a família de Judas Galileu e José de Arimatéia sim, e isso nos dá asas para boas especulações.
O que, de resto, não tem muita importância para o escopo da nossa crônica, porquanto se sabe que o filho de Maria renunciou ao conceito de família de sangue quando assumiu a sua missão. O que se dá por verdadeiro que ele realmente disse, certa vez que sua mãe e seus irmãos o procuraram, já em plena fama, que sua família era quem fazia a vontade de Deus. Isso significa que ele adotou a humanidade toda como ampliação da sua sensibilidade, ao invés da estreita idéia de um núcleo familiar, o que nos dá bem uma idéia do que se passava na sua alma.