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1
Seja o que for que Jacó e José conversaram, é certo que isso tinha a ver com o filho de Maria. E dava para perceber que, ainda que mal convencido da certeza da sua opção, o atormentado carpinteiro chegou à conclusão que não podia continuar em Belém, e o melhor mesmo seria ir embora para um lugar onde ninguém os conhecesse.
Qualquer que fosse o motivo invocado, uma coisa era certa: aquele menino precisava ser tirado dali, porque de alguma forma a sua vida corria perigo. Fosse o motivo invocado por aquele cronista, que disse que Herodes o procurava para matar, ou o que realmente pensamos que seja, que o astuto fariseu o convenceu com o argumento que o menino precisava ser criado longe dali para evitar que se descobrisse o segredo da sua concepção, não importa, o caso é que alguma coisa precisava ser feita. Deixá-lo ficar em Belém poderia acarretar não poucos aborrecimentos para José, Maria e o próprio menino, sem falar na própria família de Jacó.
Seja como for, o fato é que o carpinteiro acabou por sucumbir à voz da razão. Irá embora para um lugar onde ninguém o conheça. E assim, de um lado, acalmará a consciência de quem tem dificuldade para aceitar que tudo isso tenha sido uma trama urdida por Jeová, com o objetivo de fazer com que o seu Ungido escapasse da ira de um monarca doido, como se Ele fosse um político matreiro e não um Deus que tudo pode, e também a inconsciência de quem precisa do recurso ao sobrenatural para crer que Deus existe e não sabe que elenão tem necessidade de semelhantes estratégias para fazer as coisas acontecerem no mundo. Pois se o que Ele queria era salvaguardar o seu filho de qualquer perigo, não precisaria fazê-lo fugir para terras estranhas, como se não tivesse poder para protegê-lo de um rei moribundo. Bastaria acelerar a doença do velho Herodes e pedir sua alma de volta antes de o menino nascer. Afinal, não são de propriedade Dele todas as almas?
Assim, a hipótese que aventamos para explicar a fuga de José parece ser bem mais lógica. Podemos, inclusive, concordar que o recém nascido filho de Maria precisava mesmo ser protegido e criado longe do perigo. Afinal, se os sacerdotes soubessem da verdade, ninguém estaria isento de culpa naquele caso. E isso talvez fosse ameaça maior do que a possível desconfiança de Herodes – se ela de fato existisse –, de que o filho bastardo de um jovem fariseu poderia ser o propalado Messias das profecias.
Destarte, não é por outra razão, que passados os dias da purificação de Maria, da apresentação do menino na sinagoga e da necessária e tradicional circuncisão a que todos os recém nascidos judeus do sexo masculino devem ser submetidos, José, tendo por certo que ninguém soubesse o que pretendia fazer, nem mesmo o sogro, arruma seus pobres pertences – somente o que consegue levar no lombo dos dois asnos que comprou com o dinheiro obtido com a venda da casa e dos móveis que nela havia –, e eis que iremos encontrá-lo na estrada com sua família, a descer o íngreme caminho, em direção a Jericó, onde chegará após dois dias de cansativa jornada.
Depois de pernoitar no caravançal daquela velha e soturna cidade, no dia seguinte recomeçará a viagem, pegando a via principal que se alonga, no sentido norte, seguindo o curso do Jordão. E eles passam pela aldeia de Arquelais e pela fortaleza de Alexandrium; pelas aldeias samaritanas de Enon e Salim, próximas á fronteira da Galiléia; dois dias depois estará chegando até Citópolis, uma das odiadas cidades de Decápolis, urbes construídas à moda helênica pelos invasores gentios, que em tudo lembravam aos judeus a abjeta servidão a que estavam submetidos. Daí pegará a trilha que se encaminha para oeste, junto à fronteira que separa o território da Samaria da Galiléia. E depois dessa jornada de cinco dias de muitos sustos e não poucos temores, alcançará a aldeia de Nazaré, na baixa Galiléia, na qual pensa se estabelecer com sua nova família.
2
Foi assim que a família de José, o carpinteiro, fugiu de Belém e foi parar em Nazaré. Um dos acreditados cronistas desta história escreveu que ele teria fugido para o Egito, e que tal viagem teria ocorrida por instâncias de um anjo, que lhe aparecera em sonhos e o avisara que Herodes estava a fim de dar cabo do menino. O velho e cruel monarca asmoneu fora avisado por aqueles reis magos que o Messias nascera em Belém de Judá; e as profecias diziam que no tempo certo esse Enviado de Jeová iria apeá-lo do trono, restaurando o antigo reino de Israel, tal como fora nos dias gloriosos de Davi e Salomão. E por conta dessa notícia não faltou quem criasse muitas aventuras para José e sua família no país dos faraós, algumas tão fantasiosas que nem os defensores da origem divina do Filho de Maria ousaram certificar. E quanto a nós, é claro que a esta altura não poderíamos dar crédito a tais versões, porquanto o filho de Maria, segundo nos foi dado ver, não nasceu nas imaginosas circunstâncias referidas pelo repórter que deu tal notícia, nem foi para o Egito que José fugiu, mas para Nazaré da Galiléia mesmo. E seja por essas ou por outras circunstâncias que ele veio a ser conhecido como Nazareno, tanto faz. Afinal que importa se um homem é nomeado pela sua procedência ou por sua prática religiosa, se o que vai fazer diferença em sua vida são as idéias que ele tem e as obras que pratica? Destarte, seja por ter sido criado em Nazaré, ou por que era um nazireu, pessoa consagrada ao serviço do Deus de Israel desde o nascimento – promessa que Maria fez no momento em que soube que estava grávida, em troca do perdão de Jeová e do beneplácito da lei –, o fato é que o menino foi levado para a Galiléia pelas razões que acima reportamos e não por que um preocupado, endoidecido e inseguro monarca intentou se livrar dele antes que a sua vocação messiânica se manifestasse.
Até se poderia admitir que o séqüito de Jacó, formado pelos seus filhos Judas e José tivesse, efetivamente, se encontrado com o rei Herodes após ter visitado o menino, porquanto tinham estatura política e importância social para reivindicar tal encontro. Mas essa entrevista, se tivesse ocorrido, não teria se dado nem em tempo, nem para assunto de tal compostura. De outra forma, passou-nos também pela cabeça que Jacó pudesse ter falado, ainda que privadamente, a Herodes, que seu filho Judas havia gerado um rebento clandestino com uma pastorinha em Belém. E mesmo que tivessem se divertido muito com essa inconfidência, que para o promíscuo monarca não passaria de mais uma travessura, nada obsta que o desconfiado soberano, por conta de algum pressentimento que teve, ou avisado em sonhos por algum, digamos, demônio – porque no caso dele não podemos falar de anjos –, tivesse embestado em sua torta cabeça que o filho ilegítimo daquele jovem fariseu, que estava destinado a ser um grande líder em Israel, poderia ser o propalado Messias. Por que não? Afinal, Judas era oriundo de uma família importante entre os judeus e todos sabiam que suas origens remontavam ao Rei Davi. O Messias, segundo a tradição, seria descendente desse rei. Não importava que a geração tivesse ocorrido de forma clandestina. Não são geralmente, os filhos bastardos que destroem as grandes dinastias? Afinal, Jeová, o Deus dos judeus – segundo pensava Herodes –, era uma divindade incoerente e estranha, que fazia as coisas acontecerem do modo mais bizarro. Bem que ali podia estar a sua Mão. Dessa forma, não custava colocar as barbas de molho e nada deixar por conta do acaso. Por conta dessa visão teria mandado seus soldados a Belém à procura do menino para matá-lo. E como os brutos não souberam diferenciar uns dos outros, resolveram não correr o perigo de deixá-lo escapar por algum engano. Sacrificaram todos os meninos nascidos na aldeia, de dois anos para baixo. Seria, digamos, uma explicação até que plausível para o episódio da matança dos inocentes, porquanto estaríamos trabalhando com possibilidades inscritas na esfera das ações puramente humanas, ainda que estas só coubessem num universo onde a loucura dita as regras. E para a loucura humana não há limite, disso sabemos.
A verdade, porém, como já dissemos acreditar, é bem outra. Naquele momento, pelo menos, o nervoso rei da Palestina estava muito mais preocupado em eliminar os inimigos que existiam em sua própria família do que perseguir um mito que ele pensava já haver destruído há tempos atrás, quando mandara passar a fio de espada a metade da população de Belém. Foi por isso que desistimos de considerar essa possibilidade e ficamos com a informação de que Herodes nunca soube da existência do filho de Maria.
3
Assim, não havendo motivo para tanto, nada indica que a repentina fuga de José tivesse sido motivada por essa imaginosa circunstância. E a visita de um anjo a precedê-la torna-se desnecessária, ainda que sonhos a esse respeito ele possa ter tido, pois que essa coisa de sonhar com miríficas visões e extraordinários eventos eram todos os judeus dados a ter e não apenas José. Também que o Deus de Israel pudesse se valer de tais estratégias para fazer as coisas acontecerem na terra já demos provas de não duvidar. Assim, bem que Ele pode ter se aproveitado dos sonhos de José para inspirar sua migração para a Galiléia, onde o menino poderia ser criado com mais segurança. Tudo é possível nesse caso, e se Jeová o queria guardar para a realização de um determinado trabalho, é bem plausível que assim tivesse procedido. O que não podemos é cair em contradição, aceitando que o filho de Maria tenha nascido em Belém por causa do tal recenseamento, porquanto já testemunhamos que o tal censo não ocorreu no ano em que o menino nasceu, mas cerca de seis anos mais tarde, depois que Roma nomeou um prefeito latino para governar aqueles conturbados territórios. Isso seria uma subversão dos fatos e nem numa versão livre, como esta nossa, se pode aceitar.
Dessa maneira, somos obrigados a discordar da crônica oficial que o levou para o Egito, bem como das motivações que teria levado José a fazer isso. Não estamos aqui a dizer que mentiu o cronista que tal fato relatou. Achamos que apenas se enganou em tempo e motivo, e assim acabou prejudicando a sua informação. Isso é fato corriqueiro em reportagens desse tipo. Quem escreve mais para convencer do que para explicar, pouca preocupação com a verdade histórica precisa ter. Se esse cronista tivesse o cuidado de pesquisar os fatos antes de escrever a sua história, certamente teria atinado com a inverosimilhança das informações que deu, ou seja, que o filho de Maria nasceu em Belém por causa de um decreto de César estabelecendo o tal recenseamento. Mesmo porque, se naquela época, o cruel Herodes ainda reinava sobre toda a Palestina, não havia nenhum motivo para um decreto do imperador romano nesse sentido. A Palestina era governada por Herodes na qualidade de protetorado romano e não havia presença direta de Roma na região. De certo, Herodes pagava algum tipo de tributo a Roma, como todos os monarcas que governavam com o seu beneplácito, mas o seu domínio, nesse tempo, não estava sujeito a esse tipo de apuração. Por conseguinte, não haveria razão plausível para que José submetesse a sua esposa grávida a uma viagem de cento e tantos quilômetros, no lombo de um burrico, não sendo a isso obrigado.
De qualquer modo, a nossa visão é de que a migração de José para a Galiléia nada tem a ver com Herodes, embora se admita que a Mão de Jeová possa ter operado nesse caso e autorizado um de seus emissários a entrar nos sonhos de José, para mandar o confuso carpinteiro carpir a mula de Belém, porque as coisas por ali poderiam ficar ruins para ele. Afinal de contas, anjos, todos os temos dentro de nós, os do bem que nos inspiram as boas escolhas e os do mal, que vivem a murmurar nos nossos ouvidos as malfadadas opções que nos põem a perder. E todas as vezes que nos metemos em alguma confusão eles começam a se digladiar em nossa mente. E a cabeça de José, nesse momento, está mais tumultuada que uma assembléia de deputados discutindo alguma matéria que lhes é desfavorável.
O fato é que da mesma forma que a decisão de receber Maria por esposa fora inspirada por uma voz interior, repentina e em princípio, sem qualquer maturação de plano, ou de arquiteturas mentais longamente trabalhadas, também esta, de mudar para as terras da Galiléia foi decisão de momento. Sequer se dá ele ao trabalho de participá-la a Maria e aos filhos, seja porque, sendo o chefe da família, a soberania das decisões familiares lhe cabe sem maiores satisfações, ou então, decidido que as coisas deviam ser feitas desse modo, de nada adiantaria qualquer oposição da família nesse caso. E para Maria, melhor alternativa que essa não poderia haver. Era a resposta de Jeová às suas preces. Daí que, quando soube da decisão de José, rejubilou-se em seu coração, e mais que depressa se aprontou para a viagem. Em silêncio agradeceu ao Deus de seu povo pela solução encontrada e ainda mais certa ficou que tudo que lhe acontecera não deveria ser computado como fruto de um erro cometido em razão de uma fraqueza de momento. Havia algo mais em tudo isso, além da debilidade própria do caráter humano. Assim, se o Deus de Israel inspirara em seu marido essa idéia salvadora, é por que algum interesse em tudo isso Ele devia ter.
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Seja o que for que Jacó e José conversaram, é certo que isso tinha a ver com o filho de Maria. E dava para perceber que, ainda que mal convencido da certeza da sua opção, o atormentado carpinteiro chegou à conclusão que não podia continuar em Belém, e o melhor mesmo seria ir embora para um lugar onde ninguém os conhecesse.
Qualquer que fosse o motivo invocado, uma coisa era certa: aquele menino precisava ser tirado dali, porque de alguma forma a sua vida corria perigo. Fosse o motivo invocado por aquele cronista, que disse que Herodes o procurava para matar, ou o que realmente pensamos que seja, que o astuto fariseu o convenceu com o argumento que o menino precisava ser criado longe dali para evitar que se descobrisse o segredo da sua concepção, não importa, o caso é que alguma coisa precisava ser feita. Deixá-lo ficar em Belém poderia acarretar não poucos aborrecimentos para José, Maria e o próprio menino, sem falar na própria família de Jacó.
Seja como for, o fato é que o carpinteiro acabou por sucumbir à voz da razão. Irá embora para um lugar onde ninguém o conheça. E assim, de um lado, acalmará a consciência de quem tem dificuldade para aceitar que tudo isso tenha sido uma trama urdida por Jeová, com o objetivo de fazer com que o seu Ungido escapasse da ira de um monarca doido, como se Ele fosse um político matreiro e não um Deus que tudo pode, e também a inconsciência de quem precisa do recurso ao sobrenatural para crer que Deus existe e não sabe que elenão tem necessidade de semelhantes estratégias para fazer as coisas acontecerem no mundo. Pois se o que Ele queria era salvaguardar o seu filho de qualquer perigo, não precisaria fazê-lo fugir para terras estranhas, como se não tivesse poder para protegê-lo de um rei moribundo. Bastaria acelerar a doença do velho Herodes e pedir sua alma de volta antes de o menino nascer. Afinal, não são de propriedade Dele todas as almas?
Assim, a hipótese que aventamos para explicar a fuga de José parece ser bem mais lógica. Podemos, inclusive, concordar que o recém nascido filho de Maria precisava mesmo ser protegido e criado longe do perigo. Afinal, se os sacerdotes soubessem da verdade, ninguém estaria isento de culpa naquele caso. E isso talvez fosse ameaça maior do que a possível desconfiança de Herodes – se ela de fato existisse –, de que o filho bastardo de um jovem fariseu poderia ser o propalado Messias das profecias.
Destarte, não é por outra razão, que passados os dias da purificação de Maria, da apresentação do menino na sinagoga e da necessária e tradicional circuncisão a que todos os recém nascidos judeus do sexo masculino devem ser submetidos, José, tendo por certo que ninguém soubesse o que pretendia fazer, nem mesmo o sogro, arruma seus pobres pertences – somente o que consegue levar no lombo dos dois asnos que comprou com o dinheiro obtido com a venda da casa e dos móveis que nela havia –, e eis que iremos encontrá-lo na estrada com sua família, a descer o íngreme caminho, em direção a Jericó, onde chegará após dois dias de cansativa jornada.
Depois de pernoitar no caravançal daquela velha e soturna cidade, no dia seguinte recomeçará a viagem, pegando a via principal que se alonga, no sentido norte, seguindo o curso do Jordão. E eles passam pela aldeia de Arquelais e pela fortaleza de Alexandrium; pelas aldeias samaritanas de Enon e Salim, próximas á fronteira da Galiléia; dois dias depois estará chegando até Citópolis, uma das odiadas cidades de Decápolis, urbes construídas à moda helênica pelos invasores gentios, que em tudo lembravam aos judeus a abjeta servidão a que estavam submetidos. Daí pegará a trilha que se encaminha para oeste, junto à fronteira que separa o território da Samaria da Galiléia. E depois dessa jornada de cinco dias de muitos sustos e não poucos temores, alcançará a aldeia de Nazaré, na baixa Galiléia, na qual pensa se estabelecer com sua nova família.
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Foi assim que a família de José, o carpinteiro, fugiu de Belém e foi parar em Nazaré. Um dos acreditados cronistas desta história escreveu que ele teria fugido para o Egito, e que tal viagem teria ocorrida por instâncias de um anjo, que lhe aparecera em sonhos e o avisara que Herodes estava a fim de dar cabo do menino. O velho e cruel monarca asmoneu fora avisado por aqueles reis magos que o Messias nascera em Belém de Judá; e as profecias diziam que no tempo certo esse Enviado de Jeová iria apeá-lo do trono, restaurando o antigo reino de Israel, tal como fora nos dias gloriosos de Davi e Salomão. E por conta dessa notícia não faltou quem criasse muitas aventuras para José e sua família no país dos faraós, algumas tão fantasiosas que nem os defensores da origem divina do Filho de Maria ousaram certificar. E quanto a nós, é claro que a esta altura não poderíamos dar crédito a tais versões, porquanto o filho de Maria, segundo nos foi dado ver, não nasceu nas imaginosas circunstâncias referidas pelo repórter que deu tal notícia, nem foi para o Egito que José fugiu, mas para Nazaré da Galiléia mesmo. E seja por essas ou por outras circunstâncias que ele veio a ser conhecido como Nazareno, tanto faz. Afinal que importa se um homem é nomeado pela sua procedência ou por sua prática religiosa, se o que vai fazer diferença em sua vida são as idéias que ele tem e as obras que pratica? Destarte, seja por ter sido criado em Nazaré, ou por que era um nazireu, pessoa consagrada ao serviço do Deus de Israel desde o nascimento – promessa que Maria fez no momento em que soube que estava grávida, em troca do perdão de Jeová e do beneplácito da lei –, o fato é que o menino foi levado para a Galiléia pelas razões que acima reportamos e não por que um preocupado, endoidecido e inseguro monarca intentou se livrar dele antes que a sua vocação messiânica se manifestasse.
Até se poderia admitir que o séqüito de Jacó, formado pelos seus filhos Judas e José tivesse, efetivamente, se encontrado com o rei Herodes após ter visitado o menino, porquanto tinham estatura política e importância social para reivindicar tal encontro. Mas essa entrevista, se tivesse ocorrido, não teria se dado nem em tempo, nem para assunto de tal compostura. De outra forma, passou-nos também pela cabeça que Jacó pudesse ter falado, ainda que privadamente, a Herodes, que seu filho Judas havia gerado um rebento clandestino com uma pastorinha em Belém. E mesmo que tivessem se divertido muito com essa inconfidência, que para o promíscuo monarca não passaria de mais uma travessura, nada obsta que o desconfiado soberano, por conta de algum pressentimento que teve, ou avisado em sonhos por algum, digamos, demônio – porque no caso dele não podemos falar de anjos –, tivesse embestado em sua torta cabeça que o filho ilegítimo daquele jovem fariseu, que estava destinado a ser um grande líder em Israel, poderia ser o propalado Messias. Por que não? Afinal, Judas era oriundo de uma família importante entre os judeus e todos sabiam que suas origens remontavam ao Rei Davi. O Messias, segundo a tradição, seria descendente desse rei. Não importava que a geração tivesse ocorrido de forma clandestina. Não são geralmente, os filhos bastardos que destroem as grandes dinastias? Afinal, Jeová, o Deus dos judeus – segundo pensava Herodes –, era uma divindade incoerente e estranha, que fazia as coisas acontecerem do modo mais bizarro. Bem que ali podia estar a sua Mão. Dessa forma, não custava colocar as barbas de molho e nada deixar por conta do acaso. Por conta dessa visão teria mandado seus soldados a Belém à procura do menino para matá-lo. E como os brutos não souberam diferenciar uns dos outros, resolveram não correr o perigo de deixá-lo escapar por algum engano. Sacrificaram todos os meninos nascidos na aldeia, de dois anos para baixo. Seria, digamos, uma explicação até que plausível para o episódio da matança dos inocentes, porquanto estaríamos trabalhando com possibilidades inscritas na esfera das ações puramente humanas, ainda que estas só coubessem num universo onde a loucura dita as regras. E para a loucura humana não há limite, disso sabemos.
A verdade, porém, como já dissemos acreditar, é bem outra. Naquele momento, pelo menos, o nervoso rei da Palestina estava muito mais preocupado em eliminar os inimigos que existiam em sua própria família do que perseguir um mito que ele pensava já haver destruído há tempos atrás, quando mandara passar a fio de espada a metade da população de Belém. Foi por isso que desistimos de considerar essa possibilidade e ficamos com a informação de que Herodes nunca soube da existência do filho de Maria.
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Assim, não havendo motivo para tanto, nada indica que a repentina fuga de José tivesse sido motivada por essa imaginosa circunstância. E a visita de um anjo a precedê-la torna-se desnecessária, ainda que sonhos a esse respeito ele possa ter tido, pois que essa coisa de sonhar com miríficas visões e extraordinários eventos eram todos os judeus dados a ter e não apenas José. Também que o Deus de Israel pudesse se valer de tais estratégias para fazer as coisas acontecerem na terra já demos provas de não duvidar. Assim, bem que Ele pode ter se aproveitado dos sonhos de José para inspirar sua migração para a Galiléia, onde o menino poderia ser criado com mais segurança. Tudo é possível nesse caso, e se Jeová o queria guardar para a realização de um determinado trabalho, é bem plausível que assim tivesse procedido. O que não podemos é cair em contradição, aceitando que o filho de Maria tenha nascido em Belém por causa do tal recenseamento, porquanto já testemunhamos que o tal censo não ocorreu no ano em que o menino nasceu, mas cerca de seis anos mais tarde, depois que Roma nomeou um prefeito latino para governar aqueles conturbados territórios. Isso seria uma subversão dos fatos e nem numa versão livre, como esta nossa, se pode aceitar.
Dessa maneira, somos obrigados a discordar da crônica oficial que o levou para o Egito, bem como das motivações que teria levado José a fazer isso. Não estamos aqui a dizer que mentiu o cronista que tal fato relatou. Achamos que apenas se enganou em tempo e motivo, e assim acabou prejudicando a sua informação. Isso é fato corriqueiro em reportagens desse tipo. Quem escreve mais para convencer do que para explicar, pouca preocupação com a verdade histórica precisa ter. Se esse cronista tivesse o cuidado de pesquisar os fatos antes de escrever a sua história, certamente teria atinado com a inverosimilhança das informações que deu, ou seja, que o filho de Maria nasceu em Belém por causa de um decreto de César estabelecendo o tal recenseamento. Mesmo porque, se naquela época, o cruel Herodes ainda reinava sobre toda a Palestina, não havia nenhum motivo para um decreto do imperador romano nesse sentido. A Palestina era governada por Herodes na qualidade de protetorado romano e não havia presença direta de Roma na região. De certo, Herodes pagava algum tipo de tributo a Roma, como todos os monarcas que governavam com o seu beneplácito, mas o seu domínio, nesse tempo, não estava sujeito a esse tipo de apuração. Por conseguinte, não haveria razão plausível para que José submetesse a sua esposa grávida a uma viagem de cento e tantos quilômetros, no lombo de um burrico, não sendo a isso obrigado.
De qualquer modo, a nossa visão é de que a migração de José para a Galiléia nada tem a ver com Herodes, embora se admita que a Mão de Jeová possa ter operado nesse caso e autorizado um de seus emissários a entrar nos sonhos de José, para mandar o confuso carpinteiro carpir a mula de Belém, porque as coisas por ali poderiam ficar ruins para ele. Afinal de contas, anjos, todos os temos dentro de nós, os do bem que nos inspiram as boas escolhas e os do mal, que vivem a murmurar nos nossos ouvidos as malfadadas opções que nos põem a perder. E todas as vezes que nos metemos em alguma confusão eles começam a se digladiar em nossa mente. E a cabeça de José, nesse momento, está mais tumultuada que uma assembléia de deputados discutindo alguma matéria que lhes é desfavorável.
O fato é que da mesma forma que a decisão de receber Maria por esposa fora inspirada por uma voz interior, repentina e em princípio, sem qualquer maturação de plano, ou de arquiteturas mentais longamente trabalhadas, também esta, de mudar para as terras da Galiléia foi decisão de momento. Sequer se dá ele ao trabalho de participá-la a Maria e aos filhos, seja porque, sendo o chefe da família, a soberania das decisões familiares lhe cabe sem maiores satisfações, ou então, decidido que as coisas deviam ser feitas desse modo, de nada adiantaria qualquer oposição da família nesse caso. E para Maria, melhor alternativa que essa não poderia haver. Era a resposta de Jeová às suas preces. Daí que, quando soube da decisão de José, rejubilou-se em seu coração, e mais que depressa se aprontou para a viagem. Em silêncio agradeceu ao Deus de seu povo pela solução encontrada e ainda mais certa ficou que tudo que lhe acontecera não deveria ser computado como fruto de um erro cometido em razão de uma fraqueza de momento. Havia algo mais em tudo isso, além da debilidade própria do caráter humano. Assim, se o Deus de Israel inspirara em seu marido essa idéia salvadora, é por que algum interesse em tudo isso Ele devia ter.