Analles_Hermenêutica Histórica
HERMENÊUTICA HISTÓRICA
O século XIX institui, para o conhecimento histórico, algumas dicotomias fundamentais. Uma delas, que nos interessa em particular, é aquela que diz respeito à relação entre história e natureza, entre o passado e o presente, entre a realidade "daquilo que aconteceu" com uma pesquisa, uma escrita, um texto que pretende dizer esse acontecido.
As tradicionais respostas a essa dicotomia, onde a questão principal entre história e natureza migra para a relação entre o passado e o texto, não seria posta em termos "equilibrados" pelos historiadores do "século cientificista", mas por determinada posição filosófica e por uma prática historiadora durante o século XX.
O século XIX tradicional pendia para a natureza, para o olhar objetivista do passado, para o poder indutivo vindo do desejo de Sade, para a confiança de restaurador e reconstrutor da inscrição historiadora (praticamente uma literatura de Balzac); o método quase por si só era a garantia da resolução, pratica dessa questão: não se desconfiava plenamente do texto, da linguagem, do ontos em sua dimensão social e histórica, isto e, no seu fazer instaurador, na sua dimensão não somente "subjetiva", mas na sua forma de existência "mental" "representativa" "lingüística", "simbólica" e, conforme pensam alguns no começo deste século XXI, "virtual", "neural", "hipertextual": dimensões vivas do ser social.
O texto ainda estava próximo demais da "presença de deus" do "mundo divino" da "palavra do senhor" da certeza do "progresso" e do "bem", da confiança profunda em dizer a coisa em sua plenitude, em sua realidade, em sua inteireza existencial. Os "estragos" iniciais produzidos nessa confiança vindos das desilusões políticas, de certas filosofias, do evolucionismo, do marxismo, da psicanálise ainda estavam em realização.
O passado era, normalmente, arquivo, depósito, monumento, "coisa acontecida", instância despolitizada, estando bem próximo daquela experiência do senso comum quando "percebe" o "aqui" enquanto dimensão integral, estrutura inteira em funcionamento, sem aquelas dúvidas fragmentárias que irão surgindo depois, aquelas dúvidas essenciais, pois tratam não somente do aparecer, o escrever/pesquisar, e sua capacidade em dizer o acontecido, mas de interferir no acontecendo e no a acontecer: a história enquanto dimensão da experiência.
A História no século XIX (historiografia essencialmente européia, centrada, colonial, nacionalista e burguesa), mesmo quando ensaiava estilo, filosofia ou literatice, era unânime na visão integral do existir e do ser social, tanto em suas facetas revolucionárias e instáveis, quanto nas suas vertentes reacionárias e conservadoras: negava explicitamente a filosofia, ser uma visão de mundo, teoria e escritura: no entanto era tão teórica e tão filosófica quanto em qualquer outro século, mas suas "missões" junto seja ao proletariado, seja bem próximo dos poderes nacionais, não os permitia se apresentarem "nus": o discursivo exigia ser equivalente, reflexo, clone do real, do acontecido, do visível.
Em História, tanto as correntes revolucionárias, como o marxismo e o anarquismo, quanto as correntes conservadoras passaram por várias guerras, muitas batalhas e guerrilhas, seja com a Literatura, com as pedagogias, com as filosofias, com a sociologia, com a antropologia, com a psicanálise, com a lingüística, com a polícia, com os autoritarismos, com a dissolução de determinado "mundo burguês", com a dissolução contínua das colônias, a instauração de países, as políticas colônias em que Conrad viria "O Horror! O Horror", seja com os percalços, problemas e perspectivas abertas pela própria lógica historiadora posta em ação.
O século XX "recebe" este imenso "pacote" filosófico, político, teórico-metodológico instituído, pelo menos, entre a "revolução francesa" e a "primeira guerra mundial" dentro mesmo da atividade historiadora. Quem vai enfrentá-lo será, em grande parte, certa hermenêutica histórica, articulando reflexão filosófica e ação historiadora considerada aqui por nós, pela especificidade do tema, desde Dilthey até Gadamer, desde Heidegger até Ricoeur, do texto sobre método de Simiand, passando pela Escola dos Annales e suas fragmentações até Bachelard, Foucault, Barthes, Derrida, das teorias da literatura até Heiden White e todos aqueles que, no Brasil, receberam, recriaram e produziram e produzem uma reflexão historiográfica, seja Gilberto Freyre, seja Sérgio Buarque de Holanda, seja José Honório Rodrigues, seja Ciro Flamarion Cardoso ou José Carlos Reis.
II
Um dos primeiros pontos de uma hermenêutica histórica diz respeito a sua dimensão anti-teórica e anti-prática: ela se propõe a ser um lócus prático-teórico. Na ação historiadora qualquer das duas posições em separado cai em deformações maiores do que a perspectiva dialética. Essa reunião será encontrada falsamente ou não, porque nem todos os que refletiram sobre ela eram historiadores, em praticamente todos os que enfrentaram a questão da História no século XX.
Essa questão refaz o percurso do texto historiográfico e expõe tanto o tempo enquanto passado quanto o texto em sua capacidade simbólica em "dizer o passado".
O tempo torna-se a "matéria" fundamental para o historiador, mas não o tempo físico, aquele que existiria fora da sociabilidade (uma aposta numa presença divina antes e depois da presença do ser social), fora das práticas e crenças sociais, mas aquele que é a "dimensão do ser social" por excelência, aquele que é criado numa articulação essencial entre os homens, isto é, procriado enquanto dimensão imaginária que se desdobra no imediato do viver enquanto passado e futuro, tornando espesso, profundo, simbólico e apto de modificação, esse quase nada onde nos apertamos no vivendo: sem essa abertura dimensional, o tempo, não seriamos o que somos.
A questão do tempo dispõe a dimensão do texto (possibilita a extensão, o além do imediato e do ponto existencial), do documento, sua escritura e a relação que o historiador mantém na ação historiadora: dar conta dessa extensão.
O tempo que é instaurado pela práxis historiadora transforma, no decurso do século XX, o documento em hiper-texto, o existente em redes múltiplas, em transversalidades em devires: o documento perde aquela característica que trazia tanto da palavra divina quanto da investigação judicial: representar "o que realmente aconteceu", ser “testemunho do acontecido”, símile, reprodução viva e integral de algo, estando muito próximo o passado, o documento e o historiador, a vida passada e a vida presente: não precisamos mais dessa certeza objetiva, dessa "garantia religiosa", mas da sua dimensão esperiencial: não precisamos mais despolitizar o passado tornando-o "já feito" porque ele, o passado, não esta lá, mas aqui em profusão, em jorro dialético, para nós, repolitizado, dimensão viva do imediato.
Não se vai mais "ao passado" ou se vem "ao presente": o documento, hipertextualizado, é criação intensa do imediato com o tempo aberto em sua ficcionalidade essencial, isto é, radicalmente coisa nossa, social, histórica, localizável, imaginária, material discursivo: o historiador no fim do século XX perdeu a ilusão de produzir algo tão material quanto seu "objeto", pois sua matéria também perdeu substancialidade, ou melhor, ganhou outra, essa muito próxima da sua própria escritura, da sua palavra, da sua interioridade e de certa "atividade política".
O documento se integra numa rede virtual onde as antigas operações da "escola metódica" se articulam com vários outros métodos das ciências sociais para criarem não "o passado" mas texto em ação, conhecimento para o presente e seu imediato, algo que deverá com certeza ser refeito por outros, pois não há o definitivo, o acontecido fora das coordenadas imaginárias da própria disciplina, ou melhor, o passado existira principalmente em sua forma social de memória e esquecimento, ritualização e crenças, atuação e necessidade: o hipertexto historiográfico será mais uma confirmação dessa ontologia sem ser: ele será algo nosso, vindo da nossa carne, do desejo, dos imaginários em contraste: perderá sua dignidade autônoma: o ser não mais estará fora na "natureza" na "sociedade", literal, divino e separado, mas dentro, de dentro das praticas sociais, provindo do imaginário que agora e o real.
Essa concepção de realidade, de tempo e documento, retira do historiador, do autor como queria Foucault e Barthes na corrente de certa literatura bogeana, grande parte da autonomia, reencaminhando os sentidos não somente para uma produção sem origem, ou melhor, com origens discursivas, mas, principalmente, para o leitor, para a recepção, para uma segunda rodada de escritura.
Isso reforçará, num primeiro momento, e intensamente, o texto historiográfico como mera ficção. Há, na verdade, um retorno às questões entre literatura e história tão acaloradas no século XIX.
Deixar-se-á de levar em consideração a forma de produção e a que imaginário de dirigem as duas formas: uma proclama o rigor, o método, a busca pela verdade e pela realidade, projetando seu ser como conhecimento e experiência, vindo de uma tradição conflituosa mais respeitável, atuando diretamente sobre o imaginário social, seja para resguardá-lo seja para tentar modificá-lo, degustando o tempo como sua matéria principal; e aquela outra que é produção livre do imaginário e da imaginação, das obscuridades individuais, re-conhecimento dos fantasmas sociais, dos travamentos do desejo, das articulações invisíveis que nos comandam e dão sentido "por baixo" e "ao lado", como sonhava Blanchot.
O documento, agora hipertexto, deixa de ser natureza, e o historiador abandona a dicotomia própria do século XIX. Isso acontece ainda dentro da Escola dos Analles e suas derivações, mas somente nas últimas décadas do século XX é que vai tomando forma, principalmente com as perspectivas instauradas pelas discussões da "revolução da informática” e as perspectivas do pós-modernismo e do pós-colonialismo: a dissolução da dicotomia básica (produzida por outra atitude com a teoria em prática) se completa: a natureza, a materialidade, a exterioridade, o antes e o depois, sem presença do ser social, migra para dentro do próprio ser social enquanto práticas e crenças sociais, enquanto imaginário, enquanto instruções da com-vivência.
E nisso há outra politização, não despolitização ou abastardamento como pensam alguns, mas outra maneira de entender a "matéria humana” como plástica, mutável e mudável, virtual como complexo e múltiplo programa que podemos interferir, sem "leis naturais e sem "leis sociais": vivemos um momento de mutação da vivência e da concepção do tempo, logo, profunda crise na escrita da história crise da individualidade e da sociabilidade, crise da relação entre nós e nossas memórias, entre nós e as tecnologias, entre o conhecimento e sua capacidade em modificar o mundo.
Esse iluminismo sem razão, essa técnica sem o homem, esse hegelianismo sem o espírito, esse marxismo sem o futuro está sendo construído dentro daquela historiografia que ainda mantém vários cordames com todas aquelas histórias projetadas tanto no século XVIII quanto no século XIX, principalmente por que para essa outra mentalidade, todos os séculos estão aqui no imediato do presente tanto enquanto dimensão plena do existir e das suas ilusões criadoras do real quanto das suas possibilidades historiográficas. Não nos cabe o "horror" conradiano, volta tradicionalista à "antiga e segura História", mas a atuação plena nesses outros domínios da história.