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1
Nossa mente inconsciente se parece com um velho castelo inglês. Hospedeiro de fantasmas, ela abriga uma fauna enorme desses fetos psíquicos, que são os sonhos abortados, os desejos não realizados, os temores e os anseios d’alma, aos quais não foi dado o direito de nascer para o mundo da realidade. Mas quando a consciência dorme, eles tomam de assalto o tribunal da mente e suas queixas se assemelham a essas manifestações das multidões privadas de seus direitos. Seu alarido nos incomoda, o seu tropel nos provoca medo, as suas pressões nos suscitam variadas especulações. São tantos os constrangimentos que eles nos trazem, que às vezes, nos põem doentes de verdade.
Por isso é que José, tão logo conseguiu adormecer naquele dia, ou noite, melhor dizendo, entrou logo a sonhar. Um homem, vestido como um fariseu, está sentado sobre o parapeito de um poço; que poço, ele não sabe distinguir, se é o do patriarca Jacó ou o de Davi, pois os poços e as fontes, na terra dos judeus, guardam os nomes de quem os cavou ou descobriu; mas ele, seja quem for, está lá com sua túnica branca, imaculada, reverberando em contraste com o sol. E ele diz, com voz tonitruante de profeta, que “ aí vêm os dias em que a casa de Israel será favorecida com a Mão do Senhor; e nesses dias, Ele fará sair de Davi um germe de fortaleza, o qual praticará a justiça e a igualdade sobre a terra. Nesse tempo, que já está para se cumprir, Judá será salva e em Jerusalém habitará a paz. Porque não faltará jamais um varão da linhagem de Davi para sentar-se sobre o trono de Israel, e da linhagem dos levitas não faltará novamente um santo que ofereça holocaustos na presença do Senhor e acenda o fogo para o sacrifício. Eis que a virgem já o concebeu e logo ele terá aprendido a rejeitar o mal.”
– Que dito é esse? – pergunta José, confuso, mas Jeremias, ( esse é o nome do anjo agora, que se parece, ora com Jacó de Arimatéia, ora com Israel, o patriarca que deu nome ao país, mas que anteriormente também já se chamou Jacó), lhe diz que “na terra como no céu as coisas são feitas da mesma forma, e tudo que o homem faz somente ao homem cabe desfazer.” Dito isso, eis que o anjo se transforma no rei Davi e este bebe a água que Maria lhe oferece. Depois toca no ombro dela com o seu cajado de pastor, que também é cetro de rei. Em seguida, Jacó, o fariseu – , pois que é ele mesmo que agora está ali e não Jeremias, o velho e lamentoso profeta que previu a destruição de Jerusalém, nem Davi, o famoso rei – , conduz a jovem Maria até o atônito José e coloca a mão dela sobre a dele, unindo-as pelo laço nupcial. Mas, de repente, não é José, o carpinteiro, que está recebendo a noiva, mas sim um jovem fariseu, vestido com ar-maduras de guerra. E então Jeremias (ou seria Jacó, filho de Isaque, ou Jacó, o velho fariseu, pois nesta altura já não se distingue mais quem é o anjo que lhe fala, porque ele também se chama Miquéias, Joel, Daniel e Gabriel), diz que “ ai vêm os dias, em que o Senhor suscitará a Davi um germe justo. E reinará um rei que será sábio, e ele obrará segundo a justiça e a equidade na terra.”
Essa é a visão que temos de José em seu leito de angústias. Sabemos disso por causa das voltas e voltas que ele dá na cama, e pela perplexidade que se estampa no seu rosto, bem como o espanto que pode ser observado em seus olhos quando acorda e vê que tudo não passa de um sonho. As palavras do anjo ainda estão vibrando na sua cabeça, e ele se lembra vagamente de já ter ouvido antes essas sentenças.
Não estamos sozinhos nessa imaginação. Muitos foram os cronistas, antes de nós, que deram testemunho da consumição que tomou conta da alma do carpinteiro naqueles fatídicos dias que antecederam a consumação de suas bodas com a jovem Maria. Se a tais lacônicas crônicas foi dado crédito, por que da nos-sa se duvidaria, já que além de reportar as mesmas notícias, nós ainda a enriquecemos com tantos detalhes?
Por certo muita gente já leu que, andando José com essas coisas no pensamento, um anjo lhe apareceu em sonhos e disse: “– José, não temas receber Maria como tua esposa, porque o que nela foi concebido é obra do Espírito Santo.” E José fez como o anjo lhe mandou. Se tal visita de fato ocorreu não sabemos pre-cisar, mas do resto não temos por que duvidar. Nesse ponto não se discute, pois todas as versões da história concordam que foi isso o que ele fez. José e Maria se casaram e mesmo que não se possa levantar do fato uma certidão passada em cartório, não passa pela nossa cabeça contestar a veracidade desse acontecimento.
E também não nos custa acreditar nos sonhos que dizem José ter tido. Certo é que os sonhos são como monstrengos que se parecem, às vezes, com um corpo mal composto, cujos braços foram postos no lugar das pernas, as orelhas no lugar da boca e esta no meio da testa. O que explica por que Jacó, o fariseu, é Jeremias e Jeremias é aquele outro Jacó, que se tornou Israel, “ O Que Luta Com Deus”, e todos eles são o rei Davi no sonho de José. E também que passem por anjos, não é possibilidade nada desprezível. Fetos mal formados que são, e expulsos por vias não normais, que é o sono, sonhos são como espíritos que vagueiam pelos corredores da nossa mente, e se queremos lhes dar crédito ou não é decisão que compete a cada sonhador decidir. Por isso não estranhamos a confusão de nomes e personagens que a mente de José eliciou para dar vazão ao confuso processo que se desenrola em sua cabeça. O que podemos dizer, para concluir esse assunto, é que José dele acordou com muita dúvida e perplexidade, e se foi isso que o ajudou a decidir-se a receber Maria por esposa, não sabemos. O que nos parece certo é que, se verdadeira é a informação de que ele foi visitado nessa ocasião por um anjo, de certo a visita ocorreu nesse sonho que ele teve. E se isso concorreu para fazê-lo decidir-se sobre a intrincada questão que lhe atormentava o espírito, pouco importa o que se creia, porque o que fica, em qualquer caso, é o resultado, e o resultado é que ele tomou, finalmente, uma decisão.
2
O que é verdade tem que ser dito. José, o carpinteiro, é um homem realmente justo e Maria uma moça verdadeiramente honesta. Se houve safadeza nessas interações, nenhum dos dois participou dela de boa mente, nem a perpetrou. Talvez nem Ju-das Galileu, o jovem filho do fariseu Jacó, que pode ser conside-rado o bandido dessa história, pelo menos até este momento, também não tenha tanta culpa assim. Se dele fizeram um anjo, desses que se propõem a sair das esferas sutis do universo, com o propósito de cumprir as mais estranhas missões na terra, a responsabilidade por esse engano não é do rapaz. Ele fez o que fez por conta da imaturidade e da índole folgazã que lhe era própria. Mas não há informação que ele, ou qualquer um dos personagens que viveram essa história tivesse sido o inventor das narrativas que deram a ela o cunho miraculoso que assumiu. Elas surgiram muito tempo depois, reportadas por cronistas comprometidos com uma doutrina e com um propósito, o que, se não lhes torna imprestáveis os testemunhos, no mínimo os faz tendenciosos.
Não estamos dizendo essas coisas para desqualificar reportagens anteriores à nossa, mas para justificar o motivo pelo qual José, depois do sonho a que nos referimos acima, e de ou-tros de igual teor que teve durante algumas noites, finalmente concertou em receber Maria por esposa. Evidente que tudo o que foi dito por Jacó lançara dúvidas na cabeça do carpinteiro. Certo também que todas as tradições e profecias, constantes das escrituras sagradas, fizeram a sua parte para lançar no espírito do pobre homem uma monumental confusão. Mas com certeza foram os sonhos que ele teve que finalmente lhe embolaram tanto os pensamentos, que ele passou a aceitar a idéia de que Maria poderia ter sido enredada de alguma forma, e não por conta de uma índole promíscua e pérfida.
Mas certamente não foi fácil para o atormentado carpinteiro perdoar e aceitar a jovem como verdadeira consorte para a sua vida. Isso também não deve ter acontecido de um dia para outro. Podemos imaginá-lo matutando muitos dias, pensando se não teria sido melhor que a garota não lhe tivesse dito nada, pois assim, se viesse a saber mais tarde da falta cometida, ele a levaria ao sacerdote, ofereceria por ela uma décima parte de medida de farinha de cevada pura, e o sacerdote praticaria o ritual previsto na lei. Nesse caso, o próprio Jeová lhe descobriria a falta, fazendo-lhe apodrecer as coxas e inchar o ventre até que arrebentasse, como Moisés mandou que se fizesse em casos como esse. Se tal não acontecesse, e a barriga dela continuasse intacta, pecado nenhum lhe seria imputado, porque o que nela se obrava seriam realmente empenhos de Jeová, a cumprir a promessa feita ao seu povo. Dessa forma, limpa e pura ficaria a sua consciência, e ele poderia tomá-la por esposa sem qualquer mácula a corroer-lhe a união.
Mas não, quis a jovem confessar a falta cometida e agora, a ele, José, pobre e iletrado operário, sem ter uma idéia precisa do que havia realmente acontecido, com a mente e o coração transbordando de incomodante desassossego, cabia fazer as vezes de sacerdote e porque não dizer, do próprio Jeová, porquanto tinha que julgar o comportamento da moça e decidir se a entregava ou não à execração e escarmento do povo e à pena capital prevista na lei.
Que fardo pesadíssimo o Deus de seus ancestrais lhe colocara nos ombros! No entanto, teria sido fácil se livrar dele, não fosse a lembrança dos olhos da jovem, a muda súplica que neles via e os reclamos do seu próprio coração, que não obstante amargurado e oprimido por estar fazendo parte dessa embrulhada toda, não consegue se livrar do sentimento de ternura que o en-volve toda vez que pensa na mocinha. A quantas anda a razão de um homem quando nela o coração se mete a plantar os grãos dos seus afetos! Assim, os dias destinados ao noivado, às purificações e outros preparativos vão passando e podemos ver José, sem se dar a ver por ninguém, várias vezes, rondando a casinha onde Maria continua a morar, já com um desconfiado pai a cis-mar porque o noivo não se propõe a consumar as bodas, embora tenha concordado em antecipar o tempo da tradição. Ainda que as roupas usadas pelas mulheres daqueles ermos e tempos não permitam a Joaquim perceber a diferença de silhueta que a filha agora ostenta, algo estava errado naquela história e ele foi tirá-la a limpo, buscando José em sua casa, em Belém, onde tem oficina. Lá o encontra, juntamente com o filho ainda pequeno, Judas, a brincar no chão com uns toquinhos de madeira, como que a construir uma cidade, enquanto ele se ocupa de aplainar uma tábua que vai servir para o tampo de uma mesa.
– Minha casa não está ainda preparada para receber uma esposa –, é a desculpa que José dá a Joaquim quando este pergunta por que ainda não consumara as bodas. E indagado quan-do estaria, diz José, somente para arranjar uma justificativa, que está pensando em construir mais um quarto na casa, pois não era bom que os filhos dormissem no mesmo compartimento em que o casal dormiria.
– Em quanto tempo o cômodo estará pronto? – pergunta Joaquim.
– Em algumas semanas, um mês, no máximo – responde José.
– Ande logo com isso, pois não é certo que uma mulher casada continue morando na casa do pai –, diz o pastor.
– Eu sei –, responde o carpinteiro.
– Assim que estiver pronto, irei buscá-la – diz, por fim, José.
Esse motivo parece ao pastor Joaquim bastante razoável, porquanto ele o aceita sem mais questionamentos, pensando, não sem um laivo de lascívia, que não era realmente recomendável que um casal se entregasse aos prazeres conjugais na frente de inocentes crianças. Daí a imaginar como seria o conúbio amoroso daquele homem maduro com a sua filha, que não é mais que uma criança também, seria apenas um pequeno passo, mas Joaquim é homem temente ao Deus do seu povo, que não gosta dessas licenciosidades. Por isso não dá azo à ousadia e afasta imediatamente o importuno pensamento. Por fim, concorda, com um aceno de cabeça, com o argumento do genro.
Com essa desculpa José ganha mais algum tempo para pensar, mas na verdade, ele já havia decidido sobre o que fazer. Simplesmente não tivera a coragem de executar a decisão até aquele momento. Durante os dias e noites que antecederam a visita de Joaquim, ele pensara muito no assunto. É possível até que tivesse passado pela sua cabeça aquela solução aventada por um dos cronistas oficiais desta história, de sumir de Belém e ir para um lugar onde ninguém o conhecesse, para livrar-se do problema, pura e simplesmente. Pois se ficasse e levasse Maria ao Conselho, ela acabaria sendo condenada e supliciada. Ou, se simplesmente a recebesse como esposa, sem se importar com as conseqüências e o falatório do povo, estaria irremediavelmente envolvido na questão e o que quer que viesse a acontecer, seria por sua causa que aconteceu.
Agora, que um anjo tenha avisado José da concepção de Maria, é bem possível que tenha oocorrido sim, porquanto sonhado com isso ele tem, como já se disse. E não foi uma única uma vez que seus sonhos foram preenchidos por assuntos de tal natureza. Foram vários os sonhos que teve, em que alguém lhe aparecia dizendo que a sua prometida esposa era um anjo entre as mulheres e por conta dessa qualidade fora escolhida para pôr no mundo o esperado broto da árvore de Davi. E quando acordado, fica ele a cogitar porque há de ser esse rebento da estirpe da Davi. Que coisa muito política é essa, pois que o Senhor de Israel simplesmente poderia fazer nascer o tal personagem aure-olado já pelas luzes da sua procedência divina e apetrechado também das capacidades necessárias para o cumprimento integral da sua missão, sem precisar de humanas referências, ainda que elas viessem de tão alta patente. Ou então a voz – porque às vezes é somente esta que ele escuta, sem distinguir de onde vem ou de quem sai –, lhe diz que tudo isso é uma cruel brincadeira que estão fazendo com ele, que ele é um pobre tolo que está sendo comprado para encobrir um crime. Isso o revolta e ele toma a decisão de ir ao Conselho denunciar o mal feito. Mas de repente para e toma tento novamente, porque outra voz lhe diz – e esta nunca lhe falou em sonho, mas em estado de vigília mes-mo – que essa decisão não é a melhor, porquanto há muitas coisas envolvidas, inclusive a sua honra e até a sua própria liberdade, já que o sogro poderia acusá-lo de ter violado as regras prescritas pela lei, que proíbem que o noivo durma com a noiva antes do prazo legal.
A dúvida paralisa as pernas do pobre carpinteiro, que num momento se levanta com o firme propósito de ir até o Conselho, mas no momento seguinte volta a sentar-se de novo. Ato contí-nuo, passa a cocar as barbas e a alisar os cabelos, e a dar voltas e voltas dentro de si mesmo, sem chegar a nenhuma conclusão. Se alguém perguntasse a José porque decidira dizer o que disse ao sogro e por que iria fazer tal coisa – pois agora que disse terá que fazer, já que palavra é palavra –, dificilmente ele teria uma razão plausível, dessas que explicam porque A mais B é igual a C. E nunca conseguiria convencer ninguém que tal idéia lhe vinha como fruto de uma razão madura e bem organizada. Sim-plesmente foi o que surgiu naquele momento, e mais estranho ainda era que, mais pensava na bobeira que lhe dera, mais começava a achar que a coisa não era tão maluca assim.
Pois das duas uma: ou o povo, assim que percebesse que Maria estava grávida, logo pensaria que ela prevaricou, ou então que ele desrespeitou o costume, deitando-se com a noiva antes do casamento. Infamados, dessa forma, estariam os dois. De qualquer modo, não podia deixar que nenhuma das duas possibilidades fosse aventada. Assim, o que lhe pareceu mais certo, ou pelo menos, o mais sensato, era o que a voz – aquela que certa-mente lhe vinha da razão – lhe sugeria, pois além de falar nos momentos de vigília e não em sonhos, como as outras, seus conselhos lhe pareciam mais sensatos. Dessa maneira, conclui ele que será melhor consumar o casamento, em seguida esperar que Maria dê a luz e depois ir embora dali para um lugar onde ninguém os conheça, pois assim não terá que enfrentar a curiosidade da gente do local, que certamente estranhará a prematuridade de tal nascimento. Ademais, afastar-se daquela gente que tinha sido responsável pelo engodo em que havia se metido seria uma boa medida, que poderia inclusive ajudá-lo a suportar melhor o incômodo lenho que o destino colocara em suas costas.
Passadas duas semanas, em que procurou sufocar, por todas as maneiras, os seus oráculos noturnos e abrir-se, cada vez mais, aos conselhos da razão, ele decide-se por fim e vai à casa do sogro, onde concerta em realizar a segunda parte das bodas. Feito isso, leva a jovem Maria para sua casa e recebe-a formalmente como esposa, como manda a lei e reza o contrato. Mas não se deita com ela, o que corrobora tudo o que se escreveu a respeito, mais não fosse porque dessa forma reza a tradição que se refere às mulheres com filho no ventre, ou porque José, ainda ferido em seus brios de varão, não tem a coragem nem a vontade de exigir dela o cumprimento de sua obrigação de esposa. De qualquer forma, como nessa história se diz que tudo aconteceu para que se cumprisse o que tinha que ser cumprido, daremos por certo que foi isso mesmo que ocorreu e nós também aceitaremos que foi assim, ou seja, não que tudo aconteceu por que estava escrito, como dizem os cronistas oficiais, mas sim, por que o devido processo natural que regula essas coisas, como acreditamos que seja, o exigiu.
Assim, Maria, antes de o seu filho nascer, realmente não se juntou a José na carne, como mandava a lei dos homens e como preceitua a lei de Deus, posta nos corpos humanos para cumprimento dos seus estatutos. E dessa forma se contentam todos os espíritos, pois não há nada pior do que uma polêmica sobre um assunto cujas únicas referências conhecidas são relatos de segunda e terceira mão.
3
José, entretanto, não esquece os argumentos do fariseu Jacó e as justificativas dadas por Maria para explicar o ocorrido. É possível imaginá-lo interrogando o eclesiástico da sinagoga em Belém, um fariseu de nome Abdias, que desconversa, alegando que essa não era uma questão que devesse preocupar a cabeça de um carpinteiro, nem fazia parte das naturais instruções que cabe a um professor de sinagoga dar à sua congregação.
– Mas os mistérios que envolvem a Vontade do Senhor são insondáveis, e os seres humanos são apenas os veículos pelos quais ela se manifesta –, diz-lhe o professor. E conclui. – O que aos homens é impossível, a Deus não passa de uma ação comezinha, como aplainar uma tábua ou cozer um pão, meu caro José, e tu não deves ocupar a cabeça com essas coisas.
Que embrulhos teológicos complicados como esse sejam desembaraçados dessa maneira José não estranha, pois comparações dessa natureza muito gostam de fazer os eclesiásticos judeus para levar a mente simples desse povo a entender com mais facilidade e clareza questões que demandariam altos raciocínios. Assunta, amiúde, a respeito, mas sem conseguir chegar a nenhuma conclusão, ele esperará pelo sucesso de Maria, e quando isso ocorrer, consultará seu coração para saber o que fazer. Mede, com o espírito ainda turbado, os prós e os contras da situação. Pesa-lhe também, pois desses pesos a consciência leva tempo para se livrar, o fato de ter aceitado esse arranjo, ele que, afinal, sempre foi homem honrado e fiel cumpridor das leis do país e jamais desdenhou das tradições do seu povo. Por isso, sabe que receber como esposa mulher infamada equivale a tor-nar-se infame também, da mesma forma que a água contida em um vaso impuro, quando vertida para um vaso puro, contamina este último. Sente-se deveras incomodado com isso, mas consi-dera que, ali em Belém, onde praticamente vivem todas as pes-soas da sua relação. ninguém conhece a verdade dos fatos, portanto nada há a temer quanto á sua honra ou à segurança de Ma-ria. Aos filhos também nada diz e na cabeça deles, a barriga túmida da jovem madrasta é apenas mais um irmãozinho que está chegando. São ainda demasiadamente verdes em conhecimentos dessa natureza para fazer qualquer julgamento, nem têm informação suficiente para fazer contas.
Dessa forma, à medida que o tempo passa, o ventre da moça cresce, e os conterrâneos da aldeia o cumprimentam pela família temporã que o Senhor Deus de Israel lhe dera, desejando que o seu filho nasça varão e saudável, o coração de José vai se aquietando. Tudo ficaria em paz e ele talvez até se esquecesse do propósito anteriormente manifestado, de ir embora de Belém, não tivessem aparecido em sua casa aqueles três indivíduos, um dos quais, José conhecia bem, pois era aquele Jacó, o fariseu que patrocinou o seu casamento com Maria. Vem acompanhado de dois outros da mesma seita, bem mais jovens do que ele. Um deles se chama José, como ele, e é apresentado como sendo o filho mais velho do ancião; o outro, que ele também não conhece, mas fica sabendo o nome mais tarde, é o filho mais novo de Jacó, de nome Judas.
O que o carpinteiro não imagina é o que o que eles vieram fazer na sua humilde casa, justamente naquele dia. Sim, pois aquele dia era o terceiro em que o filho de Maria havia chegado ao mundo.