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José, o carpinteiro, é bom que se diga, é homem tido como muito justo, que vive do trabalho de suas mãos e cria com muita dificuldade seus filhos, Judas, um menino enfermiço e esgrouvi-ado de cinco anos e Lídia, menina magricela e tímida que está por fazer dez sem que ninguém lhe dê mais de sete ou oito. As crianças com ele habitam na pequena casinha que possuí em Belém, onde, nos fundos, explora a sua carpintaria. Lídia cuida da casa, mas ainda menor impúbere, precisa de assistência de mulher mais experiente.
Dessa forma, José intenta casar-se de novo e quando re-cebe a oferta de Jacó, vencidas as primeiras dúvidas provocadas pela extrema juventude da noiva, não tem muita dificuldade em aceitar. Pesa tudo quanto tem para pôr na balança da vida. A utilidade da mulher na administração doméstica, a satisfação do macho que tem fêmea jovem para aplacar-lhe o fogo do desejo, a satisfação da companhia, a possibilidade de aumentar a família, pois isso é agradável aos olhos de Jeová, porque senão Ele não teria mandado que os homens crescessem e se multiplicassem sobre a terra. Enfim, há tanta coisa para pôr no prato do sim, que os pesos do não subitamente perdem densidade e se tornam leves como as paletas carburetadas que volitam no ar quando ele queima as aparas e a serragem que sobram dos produtos do seu ofício.
Quanto a Maria, passado o primeiro momento de revolta íntima, eis que ela cai em si e a juventude, que é pródiga na vontade de viver, fala mais alto que as quimeras que alimenta no coração. Não importa que tal arranjo signifique a sepultura para todos os seus sonhos de donzela. Percebe que essa é a única saída que restou para o seu caso. E ela que pensara até em fugir para bem longe dali para que ninguém soubesse do que lhe ocor-rera, e talvez até tenha pensado em dar cabo da própria vida para escapar da conseqüência do ato impensado que cometera, estava tendo agora a oportunidade de consertar o mal feito.
Tudo dependerá do que venha a acontecer entre ela e o prometido noivo no momento em que lhe contar o que aconteceu. E certamente isso ela vai fazer, pois não quer enganá-lo e provavelmente nem conseguirá, dado que o tempo e o formato do seu corpo certamente não o permitirão. Coisas de donzela criada no temor de Jeová, que desmente tudo o que das mulheres dizem os eclesiásticos. Eles as têm na conta de mentirosas, maliciosas e enganadoras, mais crias do demônio do que do Se-nhor, rei do universo, que a todos fez com iguais valências, embora com diferentes funções. Assim fossem como Maria todas as mulheres, sinceras, honestas, francas na palavra e na pureza das intenções, que não teríamos tantos enganos a perder as nossas melhores esperanças, nem tantas vergonhas a comichar nas nossas testas.
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Mas a oportunidade de contar tudo ao noivo não surge de maneira a desfazer o embuste em que ambos estavam sendo metidos. Como já foi dito, pelo costume da terra o casamento é realizado em duas etapas. Na primeira, as bodas são contratadas, mas ao noivo não é permitido conviver imediatamente com a noiva. Durante certo tempo cada um permanece em suas respectivas casas e só depois de transcorrido esse interstício é que se pode consumar a união. Esse costume estraga os planos de Maria, pois quando José se apresenta para a consumação dos esponsais, logo nota a diferença no corpo da jovem, já então nos seus três meses de gravidez. Em princípio, e até porque as roupas que as mulheres daquela terra e condição usavam ocultavam por completo suas silhuetas, José pensa que a jovem, que vira apenas de relance por ocasião do noivado, havia engordado um pouco.
Mas a moça certa está que a lealdade e a franqueza são as virtudes que Jeová mais valoriza e logo conta ao atônito carpinteiro a verdade dos fatos. Atordoado, o pobre homem, não tives-se em conta ser o homicídio um crime capital, ainda que nesse caso fosse até justificável, certamente o teria cometido esganando com as próprias mãos essa perversa mulher, que tão jovem já se apresenta com tamanha mancha moral. Ou mesmo contra ele próprio, já que a vergonha de estar vivendo uma situação tão vexatória bem que justificaria um ato tão extremo.
Quem fora o miserável que a levara a se comportar de forma tão iníqua? Como acontecera? Fora feito contra sua vontade? Gritara, esperneara, lutara para salvar a honra? Se assim fosse era preciso denunciar o criminoso, pois nesse caso, a lei diz que somente ele deve ser castigado”. Essas foram as perguntas de José, as quais Maria não deu nenhuma resposta.
Pobre menina! Como explicar algo que nem ela mesma sabe como se passou? Pois tudo tinha acontecido como se um sonho fosse. Um anjo lhe aparecera uma tarde, (pois quem po-deria negar que aquele moço não o era, sendo ele tão bonito quanto uma dessas criaturas que habitam nas regiões celestes?), e lhe trouxera aquela gravidez.
– Como pode ser isso ? – pergunta José, espantado. – Acaso me tomas por um tolo? Um anjo? Faça-me o favor!
Claro que não foi assim que Maria lhe confessou o fato, até porque ela sabe que o moço nada tinha dessa qualidade. Mas as coisas aconteceram numa atmosfera de tanto surrealismo e encantamento que ela já não tinha certeza de nada. Só podia dizer que sua razão desmaiara, medo não teve, resistir não cogitou, como se estivesse sendo levada pelo espírito a uma região de intensa luz, onde se viu apanhada num turbilhão que lhe pro-vocava, ao mesmo tempo, dor e prazer tão intensos que não saberia distinguir a medida de cada um!
E mal se lembrava se o que ele dissera foi que ela era bendita entre as mulheres, como se disse mais tarde que era, ou a mais bonita entre elas. Esta última talvez fosse a palavra usada, que seria qualificativo mais apropriado para a ocasião, pois tais galanteios sempre são usados nesses momentos que antecedem o envolvimento. Por isso, talvez, a confusão que se armou em torno dessa fala, pois embora uma frase que diga, “bonita és tu entre as mulheres” não tenha qualquer semelhança com “ bendita és tu entre as mulheres”, é de supor-se que palavras de diferentes conteúdos semânticos muitas vezes se confundam em razão de suas identidades fonéticas. O certo, porém, é que Maria poderia jurar – se juramento sobre matéria tão profana não fosse outro pecado, tão grave quanto o primeiro – que ela se sentira realmente escolhida e cheia de graça quando soube que estava grávida; e agora, malgrado a cólera de José, que se abatia sobre ela, e a certeza de que, amanhã, quando sol se anunciar no horizonte, ele se porá a caminho para denunciá-la ao Conselho, isso já não lhe parecia tão assustador.
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A informação mais acreditada sobre esse fato dá conta que José, sendo homem justo e zeloso cumpridor da lei, não a querendo infamar, intentou deixá-la em segredo. Mas que avisa-do por um anjo de que o que crescia no ventre de Maria não era fruto de fornicação, mas sim uma obra de Jeová para salvação do seu povo, acalmou-se e tomou-a por esposa. Essa é a crença que se tomou por geral, embora quem deu tal notícia preferisse não entrar em muitos detalhes a respeito. Fez ele muito bem porquanto se quisesse justificar a razão de José aceitar tal arbítrio, certamente muito iria se complicar. Afinal, mesmo a um homem simples como o nosso bom carpinteiro, que jamais duvidou dos poderes do Deus de Israel, e nem sequer uma só vez na vida se lembrava de ter indagado se seus desígnios são ou não justos, um argumento desses seria de difícil digestão. Passam mais fácil quando versam sobre coisas que se contam ter sido vivida por outros, do que quando são fatos que ocorrem conosco mesmos.
E depois sempre haverá alguém para dizer que tal postura não seria possível nos tempos e no contexto em que tais eventos aconteceram e razão não faltará a quem assim asseverar. Para começar, a lei era bem clara a esse respeito: marido dessa forma infamado teria que levar a mulher perante o sacerdote para que fosse realizado o ritual de sacrifício do ciúme e do juramento dos zelos. Assim, Maria teria que beber das águas amaríssimas e receber as maldições rituais. Se as águas da maldição não lhe fizessem mal, penetrando em seu ventre, inchando-o e apodrecendo-lhe as coxas, então ela seria levantada limpa e pura. Mesmo prenha e não sendo o filho de seu marido, seria conside-rada inimputável de crime, porquanto Jeová reconhecia sua pureza e o que Ele santificou não cabe ao homem conspurcar.
Por outro lado, nunca se ouvira falar em Israel que o Espírito Dele tivesse por costume visitar as filhas dos homens dessa forma e emprenhá-las, como diziam fazer os deuses de Grécia e Roma, ou as antigas deidades dos povos da Mesopotâmea, que de ordinário tinham esse costume. Pois não fora assim gerado aquele herói Gilgamésh, que tanta inveja fez aos egípcios e aos gregos, que os obrigou, aos primeiros a fazer com que Ísis e Osíris se juntassem para gerar o divino Hórus e aos segundos, Zeus e Alcmena para gerar o potente Hércules? Não constava, entretanto, nos anais do povo de Israel, que Jeová em pessoa visitasse o leito das donzelas da nação para nelas gerar as suas crias especiais. Quando Ele queria fazer isso, quando precisava fazer nascer na terra um dos seus escolhidos, Ele se servia da semente de um macho e do ventre de uma fêmea. Assim fizera com Sara e Abraão para gerar Isaac, ou com Amri e Iochabel para gerar Moisés, ou por outra, com Manué e sua mulher para gerar o forte Sansão e assim por diante. Bem mais sério e ético era o Deus dos judeus, que dessas libidinosas estratégias, muito comuns aos deuses gentios, não se valia para colocar na terra os seus enviados. Assim, se verdadeira, a imaculada concepção de Maria seria, na verdade, uma inovação nas fórmulas que Ele costumava usar para gerar os seus santos, ainda que essa estra-tégia já tivesse sido prevista muitos séculos antes pela boca de alguns profetas.
Agora, visitas de anjos a anunciar essas milagrosas concepções sim, José sabe que são comuns nesses casos. Havia muitos precedentes como esse, registrados nas escrituras sagra-das, e se Maria dissesse a ele que foi visitada por um anjo, e este lhe disse que ela havia sido escolhida para gerar o Ungido de Jeová, talvez ele pudesse até acreditar, pois tal evento estava previsto naqueles santíssimos livros. Mas nunca ouvira falar que tais operações necessitassem de clandestinas conjunções carnais como a que Maria lhe confessara haver tido. Como Jeová nunca antes abdicara da santidade do casamento para gerar os seus escolhidos, parece-lhe também uma grosseira blasfêmia pensar que Ele poderia fazer as coisas desse modo. Tudo aquilo não fazia nenhum sentido e José, disso estamos certos, não procedeu da forma cordata e até meio covarde como descreveu aquele cronista, que disse que ele intentou deixá-la em segredo para não infamá-la. Ora, na verdade, infamado estava ele e o pensamento que teve, de denunciá-la e levá-la até o Conselho dos Anciãos não foi nem um pouco secreto, pois ele o confessou claramente à Maria. E diga-se a bem da verdade – que aqui não precisamos fazer concessões a idealizadas visões –, não é na forma contida e educada, que as imagens piedosas que se criaram para ele fazem supor que seria o seu modo de falar e agir, que ele se dirige a Maria. O José que vemos diante da mocinha trêmula, transida de vergonha e medo é um homem bastante rude, que não poupa palavras ásperas e gestos de pesada conotação. Pudera, ambos vêm temperados pela indignação que lhe distende os nervos e pela ira que tinge suas faces com um rubor que as espessas barbas não conseguem esconder.
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A verdade é que desse encontro José sai sem muito saber o que pensar. Ou mais pérfida do que ele poderia imaginar era aquela menina, para inventar tais devaneios, ou algo além da sua sabedoria teria ocorrido ali, pois não consegue compreender como uma jovem com a idade e a educação que têm pode ter criado uma história dessas. Precisa falar com alguém que o possa esclarecer e tal não pode ser outro senão o ancião Jacó de Arimatéia. Até por que foi ele quem apadrinhou aquele casamento. Naquela noite não dormiu na sua casa, nem na casa de Maria onde os seus filhos, Judas e Lídia, pensaram que ele po-deria ter ficado, sendo aquela a sua noite de consumação de núpcias, embora isso devesse, por tradição, ocorrer na casa do noivo. Iremos encontrar o pobre homem, desvairado, andando a esmo pelos campos, com um nó apertado na garganta e uma mágoa profunda a esmigalhar-lhe o coração, como se ele estivesse sendo triturado numa daquelas morsas que ele usa para prender a madeira que vai receber o trabalho do serrote, da plaina e do formão.
Não pode deixar de sentir-se vilmente enganado e agora julga saber por que o astuto Joaquim tanto empenho fizera em casá-lo, o mais rápido possível, com a sua filha. Enganara-o e enganara também as autoridades, porquanto nunca teria obtido o beneplácito de um guardião da lei do porte de um Jacó de Arimatéia, se lhe tivesse contado a verdade. Transtornado como está, José sequer se dá conta que andara a esmo pela estrada que vai de Belém a Jerusalém. E ali pelas primeiras horas da manhã avista as muralhas da capital da Judéia, paredão maciço e assustador que se ergue como uma montanha de pedras á sua frente. Agora, como se fosse uma urgência que não podia esperar mais uma hora que fosse, é preciso que ele chegue o mais depressa possível à cidade. Apertando o passo chega à suas portas por volta da hora terça. Lá está a cidade santuário, já com suas por-tas abertas, um burburinho de gente entrando e saindo, tirando mercadorias para fora dela, nas costas de servos e escravos, em carroças, em lombo de burros e camelos; ou nela entrando le-vando mercadorias para dentro das vetustas muralhas, numa longa fila de homens e animais, como formigas saindo e voltan-do aos seus formigueiros, nos dias do ano em que a natureza lhes deu para praticar o seu ofício. E metendo-se pelas suas ruas apinhadas, acotovelado aqui e ali pela multidão, acotovelando ele também os mal humorados cidadãos que correm para suas fainas, logo chega próximo ao mercado da cidade alta, perto do qual mora o fariseu Jacó, numa ampla e bela vivenda, para onde ele se dirige com impetuosidade e mal disfarçada cólera. O es-perto ancião, chamado que fora pelo criado, antes de entrar no átrio onde o espera o carpinteiro, fica alguns minutos a observá-lo a andar, de um lado para o outro, impaciente. Imediatamente percebe o que acontecera.
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– Que importantes assuntos tens a tratar comigo, meu bom homem, para que te ponhas a caminho tão cedo? Vejo-te o desassossego e penso que tragas assunto grave para discutir – diz o ancião, já procurando em sua mente uma resposta para os questionamentos que o carpinteiro, de certo irá lhe fazer.
– Fomos ambos enganados, tu e eu pelo pastor Joaquim, que vem de me entregar por esposa mulher infamada –, responde José. – Precisas, agora mesmo, vir comigo ao escriba para que ele redija a carta de divórcio e tu, que nesse logro me ajudastes a cair, servirás de testemunha do motivo pelo qual devo repudiá-la – ,conclui o carpinteiro.
Jacó faz uma estudada cara de espanto antes de responder.
– Como dizes? A moça não é virgem? Mas como sabes disso?
– Ela me disse, responde José. – Confessou-me que está grávida. Por isso, precisas ir comigo ao escriba para que ele redija a carta desfazendo o compromisso.
– Certo que irei, meu caro José – , respondeu Jacó. – Mas não antes de conversarmos a respeito – , completou. – E se depois ainda for esse o teu intento, de bom grado te acompanharei até o escriba para que esse documento possa ser redigido.
– Nada há para conversamos, uma vez que fui enganado miseravelmente, recebendo por esposa mulher solteira não virgem. Sabes o que a lei diz a respeito – responde o carpinteiro.
– Tens razão quanto a isso, mas ainda te peço que assistas ao caso com razão e sobriedade, para que não faças julgamentos precipitados, pondo a perder a vida da moça e a tua própria honra. Sabes que não te será fácil provar que não coabitaste com ela antes de transcorrido o prazo de costume. Isso também é passível de reprovação por parte da lei e bem poderás ser condenado por isso –, diz o astuto fariseu.
– Ninguém pode me acusar de nada e a própria moça testemunhará a minha inocência – responde José.
– Acredito em ti. Mas antes que tomes qualquer atitude, é melhor que ponderes bem a esse respeito – insiste o fariseu.
E antes que José diga qualquer palavra, o ancião prossegue. – Mas que não seja esse o motivo do teu convencimento para consumar o casamento, mas sim a certeza de que a moça lhe será fiel e grata até o fim dos seus dias por a terdes livrado de um destino cruel e vexatório. E quanto a ti, meu bom homem, onde poderás arranjar melhor esposa, do que uma jovem na flor da idade, com todas as prendas que tem e que poderá ainda mul-tiplicar a tua descendência com muitos filhos?
Enquanto José, surpreendido pelo argumento do ancião – e mais ainda pelo fato dele vir de um guardião da lei, que deveria ser o primeiro a indignar-se com o pecado cometido pela moça –, procura em sua mente com o que responder-lhe, continua o fariseu, como se estivesse tentando evitar que ele pensasse.
– Muitas vezes, meu amigo, a Vontade do Senhor se cumpre da maneira mais estranha para nós. Como podemos saber os seus desígnios? Se Ele se vale de nós para fazer cumprir a Sua Vontade, como dela podemos nos subtrair?
Faz uma pequena pausa e continua: – Como diz a moça que tais coisas aconteceram?
Novamente, antes que o carpinteiro articule qualquer coisa parecida com um relato, o fariseu emenda uma fieira de perguntas.
– Foi contra a sua vontade ou ela participou do conúbio de boa mente? Quem foi o homem que a deflorou? Sabes o nome dele, a que família pertence, se é dos filhos de Israel ou gentio? – pergunta o ancião, temeroso que a moça tivesse dado o nome do seu filho.
– Não, não sei o nome dele –, consegue finalmente res-ponder o carpinteiro. – Creio que nem ela sabe o nome do miserável. Diz que tudo aconteceu como num sonho e por pouco não disse que o tal sujeito era um anjo do Senhor –, diz José, meio constrangido.
Talvez porque precisasse de um gancho, ou por que realmente acreditasse nisso, Jacó não deixa passar a oportunidade.
– E por que não poderia sê-lo, meu bom José? – diz ele, ali-sando a longa barba e fazendo com os lábios aquela expressão que se faz quando se quer lançar alguma dúvida sobre a certeza alheia. E com um movimento de olhos para o lado esquerdo superior da cabeça, onde se produzem as imaginações, o fariseu coça novamente a barba, e surge-lhe no rosto aquela expressão de pessoa que encontra na mente alguma conexão que apóia a idéia que ele quer defender.
– Bem sabes, meu caro José –,continua o fariseu – que as profecias falam de uma virgem que conceberá nos dias em que o Senhor vier a redimir Israel. Dela nascerá o Messias prometido. É claro que tais coisas não são assim tão simples e não tem sen-tido que elas venham a envolver justamente a ti e à tua noiva num evento dessa natureza. – Mas hás de convir – continua Jacó – que o fato Dele ter feito tal promessa ao povo de Israel faz o relato da jovem não ser de todo desprezível. Talvez, ela de fato acredite nisso e tenha feito o que fez de boa mente. Afinal, que mulher, em Israel, não gostaria de parir o Messias?
José, que não possui a chave dessa misteriosa ciência que dá aos doutores da lei o monopólio da interpretação da Vontade do Deus de Israel, não sabe o que responder. A tudo ouve sem convicção nem consolo em seu coração. Apenas uma palavra no discurso do fariseu ressoa em sua mente: o Messias. Homem simples que é, não conhece muita coisa dessas sutilezas que envolvem a religião do seu povo. Sabe sim, das tradições legadas por Moisés e pelos sacerdotes que herdaram sua autoridade, pois sob a forja dessas regras fora conformada a sua vida; sabe também que as vozes dos profetas, por séculos afora, manifestaram a Vontade Dele, orientando os filhos de Israel nos seus ca-minhos. Mas pouco entende dessa doutrina que se expressa na vinda de um líder que irá restituir a Israel o seu passado de grandeza. Aliás, isso ocupa muito pouco dos seus pensamentos, entretido que está, sempre a trabalhar para obter os minguados recursos com os quais sustenta a família.
Liberdade de culto ele sempre teve, já que ninguém jamais o proibira de adorar a Deus da forma que aprendera a fazer, orando pela manhã, quando acordava, uma prece quase ritual, composta sempre pelas mesmas palavras e outra à noite, antes de dormir, de igual teor: “Graças te dou, Meu Senhor, Rei do Universo, que me destes o descanso dos justos pela noite e me devolves a vida pela manhã para que eu possa ganhar com honra e virtude o pão de cada dia”; e “Graças te dou, Meu Senhor, Rei do Universo, por fazerdes a noite para o nosso descanso e nos dar um recanto para recostarmos a cabeça”. Afora isso, além dos naturais sacrifícios nos dias de festa, das korbãs que paga ao Templo e o dízimo que entrega à sinagoga onde estudara até os quatorze anos, e onde agora seus filhos também vão para aprender as lei que Jeová ditou aos filhos de Israel, ele pouco mais sabe das coisas que o Deus dos seus ancestrais exige do seu povo, quanto mais das estratégias que usa para punir ou redimir a sua criação. Na sua ingenuidade, um dia perguntara ao eclesiástico de sua sinagoga por que Jeová permitia que o povo que Ele escolheu gemesse sob o tacão do estrangeiro e a resposta fora que Ele usava os romanos para punir os judeus pelos seus muitos pecados. Como para um perguntador ingênuo as respostas complicadas fazem-no sentir-se ainda mais ingênuo, José coçou as barbas e saiu a pensar que coisa esquisita era aquela de fazer de um inimigo – pois que certamente o eram de Jeová os romanos – um senhor, e dos seus amigos, que eram os judeus, servos destes últimos. A mesma justificativa fora dada em relação à servidão que seus antepassados amargaram no Egito, durante quatrocentos anos. Da mesma forma, a escravidão a que foram submetidos os seus compatriotas do norte em Nínive, por ocasi-ão da conquista do reino de Israel pelos assírios e também o exílio na Babilônia, que levara os habitantes de Jerusalém a amargar mais de quarenta anos de cativeiro naquela cidade, receberam a mesma justificativa. Os filhos de Israel pecaram contra os estatutos de Jeová, por isso foram castigados. Por que o Deus de Israel era tão austero em relação aos seus escolhidos e tão condescendente com relação aos outros povos? Por que só dos judeus Ele exigia uma conduta tão severa? Como não se atrevia sequer a pensar que talvez Jeová não fosse um Deus tão poderoso assim, que mandava só em Israel, José não conseguia encontrar resposta que satisfizesse os seus questionamentos, por isso concluía que era melhor não pensar muito nisso.
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Crenças são produtos extraídos das informações que a mente cataloga, organiza e interpreta segundo a sabedoria que ela tem. Por isso, elas são tão diferentes quanto as pessoas que as professam. Assim sendo, fica-se melhor com a suposição de que José acredita no que o seu eclesiástico lhe diz: os romanos são a vara com a qual Jeová castiga seus lombos. Dessa forma torna-se mais fácil tolerar-lhes a incômoda presença, já que não tem lógica odiar o instrumento que nos fere, mas sim a mão que o empunha. Como a Mão é a do Senhor e não se concebe que alguém possa odiar a Mão Divina, então benditos sejam, tanto o castigo que lhes é dado para cumprir, quanto a vara que lhes lanha o costado. Com isso torna-se até possível vir a tolerar o inimigo que os oprime, pois ele está cumprindo a vontade de Deus. “Louvado sejas Tu, Rei do Universo, que corriges os defeitos dos homens e pune os seus pecados, para que purgados deles possam ser dignos de habitar para sempre no Teu reino,” é o que deve ter rezado José para arrematar esses pensamentos e nós lhe dizemos Amém, pois nada temos a acrescentar a eles senão que talvez as coisas sejam assim mesmo.
De qualquer modo, os pensamentos que um homem tem são de sua exclusiva propriedade e nós não devemos tentar compartilhar deles sem obter o necessário consentimento, por isso damos ao carpinteiro a devida vênia e de nenhum modo queremos contradizê-lo.
Quando as perguntas são muitas e as respostas são poucas, a mente simplifica o entendimento e o que passa por difícil torna-se fácil. Se os romanos são fortes e os judeus são fracos, mas os primeiros são inimigos do Senhor e os segundos são seus filhos prediletos, o lógico seria concluir que as coisas aconteces-sem de modo inverso. Mas lógica é processo, e dessas artes da inteligência humana já sabemos que José não entende.
Agora, é claro que ele conhece as profecias que se fazem sobre o Messias, pois foi, como todo bom israelita à sinagoga, dos sete aos quatorze anos, para aprender a lei e os profetas. E depois de adulto continuava indo aos sábados, para os ofícios semanais. Quantas vezes não ouvira falar sobre a profecia de Isaias, de que uma virgem conceberia um filho, que se chamaria Emmanuel – que é nome de anjo e não de gente, pois todos os anjos são nominados dessa forma, Rafael, Fanuel, Arasiel, Miguel, Gabriel, etc. –, e que ele comeria manteiga e mel até que soubesse distinguir o bem do mal? Essa era outra metáfora cujo significado ele nunca conseguira entender, pois tais visões do profeta estavam escritas naquela linguagem cifrada, muito comum nas escrituras do seu povo. Por que alguém teria que se alimentar de uma forma tão frugal para adquirir a qualidade de santo?
Crescera ouvindo os eclesiásticos nas sinagogas dizer que nos livros sagrados havia uma sabedoria escrita para a orientação dos costumes do povo e outra, não escrita, que só podia ser conhecida pelos sábios. Isso por que a estes cabia a intermediação entre o profano e o sagrado, o humano e o divino, o mundo dos homens e o mundo de Deus, o conhecimento do bem e do mal e a distinção entre o que o Senhor queria e não queria que seus filhos fizessem. Essa prerrogativa tinha sido conferida aos sacerdotes da tribo dos levitas desde tempos anteriores a Moisés e este, na codificação das leis que Jeová lhe ditara para a organi-zação da nação de Israel, a tornara uma instituição. Disso se valiam os sacerdotes agora para ocupar o rendoso ministério que exerciam no Templo e nas sinagogas. E se havia uma sabedoria secreta oculta nos livros sagrados, essa eles a guardavam para si, ocultando-a do vulgo. Assim, o pouco que ele sabia a respeito da profecia do Messias era que se tratava de algo relacionado com o nascimento de uma criatura extraordinária, que iria conduzir Israel a um reino de beatitude e paz infinitas, que nem os dias faustosos de Davi e Salomão poderiam rivalizar.
Tudo é muito confuso para a cabeça simples do carpinteiro e ele não tem muita certeza se o problema que está vivendo no momento tem algo a ver com isso. Afinal, mesmo que as profecias falem que o Messias será gerado em leito humilde, porque esse nascimento tem que acontecer dessa forma tão bizarra? Não é ela contrária, inclusive, aos direcionamentos que o próprio Jeová ditou ao seu povo, mandando que os homens permanecessem íntegros nessas coisas de sexo, e às mulheres que mantivessem a castidade e a pureza a todo custo?
Mas pondera. Certamente há sabedoria nas palavras do fariseu Jacó. Afinal, ele faz parte da elite pensante de Israel, é autoridade e decerto sabe do que está falando. E há as questões práticas a considerar, no caso. A sentença de uma mulher que prevarica pode muito bem ser a morte por lapidação, considerando a gravidade do pecado, tão infame quanto a blasfêmia, o adultério, o assassinato e a idolatria. Esse é um crime equivalente à prostituição e Moisés mandou que se apedrejassem essas tais. José vê a menina Maria sendo coberta por uma chuva de pedras, vê o rosto ensangüentado dela, os olhos súplices, as mãos que procuram cobrir a cabeça, para protegê-la das pedras ou ocultar a vergonha, ele não o sabe dizer. Mas essa visão abranda a raiva que se acumula nos seus nervos e a mágoa que se hospeda no seu coração. E ele, olhando por alguns instantes nos olhos claros do ancião, que parece estar a esperar, ansioso, por uma resposta sua, como se ali se estivesse resolvendo um negócio de grande vulto, sem saber o que responder, meneia a cabeça como não se desse conta nem mesmo da razão de estar ali. Ato contínuo, dá de costas e sai, com passos rápidos e sem olhar para trás.
Quanto a Jacó, fica a segui-lo com os olhos, até que José desaparece no meio na multidão que ocupa toda a praça do mercado. Mas pelo olhar perdido dele, bem que se poderia perguntar se realmente ele não acredita mesmo no que disse ao singelo carpinteiro, ou inventou tudo aquilo somente para acomodar a situação e salvar o irresponsável do seu filho?