CAP 11
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A ser verdade que tudo aconteceu para que se cumprisse a vontade de Jeová, que desde tempos imemoriais vinha sendo manifestada pela boca dos Seus profetas, como disseram os cronistas oficiais desta história, então a gravidez da menina Maria se inscreve nesse formulário e não se fala mais nisso.
Mas pode dar-se o caso de que esse seja um acontecimento natural e corriqueiro, que Ele, Jeová, aproveitou para dar cumprimento a um propósito. E se for isso – possibilidade que não pode ser afastada –, as implicações são outras. Não nos parece correto pensar que o mundo é uma sociedade anônima onde quem nasce nele já é proprietário de um punhado de ações que lhes confere o direito de votar pelo seu destino. Achamos melhor a concepção de que o mundo é de quem tem consciência da pertencialidade que com ele tem, ou seja, do elo que nos liga a ele e da missão que nos cabe cumprir dentro nele. A partir do cumprimento dessa missão nós passamos a ser donos dele e adquirimos direito de opinar sobre seu destino porque nos tornamos responsáveis por ele. Antes disso não. Quer dizer: compramos ações da empresa mundo com os atos que praticamos, e elas valem tanto mais ou tanto menos quanto os resultados que eles trazem para a felicidade geral da espécie e para o progresso dessa empresa em particular.
Assim, quando somos convocados para alguma tarefa de importância para o destino do mundo, não temos direito de recusar. Se Deus – quer o seu Nome seja Adonai, Jeová, Zeus, Aton, Amon-rá, Baal, Osíris, Brhama, Marduc, Vira-Cocha, Tupã, etc. só para citar alguns – é um líder, um comandante, um diretor que controla um processo, então Ele tem o direito de nos convocar quando achar necessário. Muda-se a forma, permanece o conteúdo. Afinal, se Ele é o que é, isto é, Deus, o que é que se cumpre no universo que não seja por vontade Dele? Quer seja Ele um Senhor de muitas barbas, Ancião dos Dias – que assim o chamam os sábios judeus, que aprenderam a combinar as letras e os números do alfabeto hebraico para penetrar na sua divina Mens – ou, como dizem os homens de moderna ciência, um minúsculo ponto onde uma quantidade inimaginável de energia se concentrou com tal densidade, que um dia precisou se expandir para fora de si mesmo, nada escapa da sua vigilância. Ele é o Supremo Maestro do universo. Assim sendo, tudo está sujeito à sua batuta. Ele faz a música, o libreto, o cenário, escolhe os ato-res, dirige os ensaios, comanda a orquestra. Visto dessa forma, o universo nos aparece como um plano que se cumpre segundo a estratégia que Ele traçou. É dizer, quer seja Deus uma Entidade, como quer o nosso espírito, que dessa imaginação precisa para entendê-Lo como realidade, ou uma forma de energia, como quer a nossa razão – já que existe uma força que atua na natureza, sem que saibamos exatamente de onde ela provém, e do que é feita –, o fato é que nada acontece no mundo se Dele não vier a iniciativa, ou se quisermos, Dele não vier a intenção. Assim, seja qual for o lado para o qual se vire não se pode escapar dessa formulação, e nesse caso, mesmo por caminhos tortos, acabamos batendo na mesma porta em que todos finalmente batem.
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Agora, o que aconteceu à menina Maria naquele dia, quase no fim do mês que os romanos dedicavam ao deus Marte e os judeus chamavam de Tamuz, na visão que nos inspira, não foi coisa que possa classificar-se como extraordinária. Isso não. Acontecem todos os dias por força da própria conformação biológica que a todos nós foi dada. Homens e mulheres se encontram, se encantam e se amam. Tudo muito natural. Nada fica pouco santificado ou menos maravilhoso pelo fato de ter sido assim. E se muito tempo depois, um desses acontecimentos é aureolado de sobrenatural excepcionalidade, quem dessa roupagem o revestiu foi o repórter do fato e não os seus protagonistas. Assim, é bom que se diga, não foi nenhum dos personagens envolvidos nessa história que deram fermento ao mito da imaculada concepção e bem possível mesmo é que, em vida, nem um deles jamais suspeitasse que desse evento se faria um mito dessas proporções. Por mais que se precise de um Deus ex machine para justificar acontecimentos que não podemos explicar, uma concepção é coisa que a natureza já simplificou o suficiente para termos que recorrer a esses recursos.
O fato – esse sim, certo e comprovado –, é que morava em Jerusalém, nesses tempos, um senhor de muitas posses, dono de uma herdade que ficava do lado de fora dos muros da cidade, cerca de onze estádios para quem dela saia pela porta de Jafa, assim chamada porque por ela se deixava Jerusalém em direção ao porto que tem esse nome. Seu nome era Jacó e por ser de família que há vários anos imigrara da montanhosa aldeia galiléia chamada Arimatéia para a capital dos judeus, costumava ser chamado pelo nome da terra de onde viera, da mesma forma que seus dois filhos. O mais velho tinha por nome José, bom moço nos seus vinte e oito anos e já encaminhado como rabino em uma sinagoga em Jerusalém; o mais novo era aquele Judas de quem falamos ainda há pouco, pródigo rapaz nos seus vinte e cinco anos, muito conhecido em Jerusalém pelas licenciosidades que se permitia tomar, em razão da posição da família e dos fartos cabedais que o pai possuía. Jacó, como muitos na Israel daqueles dias, e por conseqüência seus filhos José e Judas, postulava ser descendente direto da família de Davi, o famoso rei. Reivindicação que de modo geral se aceita como legitima, se é que é possível a comprovação de um direito desses quase um milhar de anos depois e numa época em que as técnicas de pesquisa de paternidade ainda não existiam. Mas não é de duvidar que tal postulação fosse procedente, porquanto o próprio Davi, e mais ainda seu filho Salomão, eram dados a muitas aventuras amorosas, sendo que este último, principalmente – segundo se conta nos livros sagrados –, mantinha um harém com mais de mil esposas e concubinas. Como ele fazia para dar conta delas todas nem imaginamos, mas isso nos leva a pensar que essa prodigalidade de parceiras com que o sábio Salomão contava, por certo, deve ter contribuído bastante para a longevidade da sua linhagem. 
Mas, se pelo menos um dos consagrados cronistas desta história foi capaz de recensear os ascendentes do filho de Maria através de quarenta e duas gerações, e isso numa época em que não havia cartórios, nem tinham os pais o hábito de registrar seus rebentos, então não há por que não agasalhar nesta crônica a reivindicação de Jacó e seus filhos. Tanto mais que na árvore genealógica deles se penduravam nomes de personagens famo-sos na história de Israel. Um era aquele Sadoc, que nos tempos áureos dos reis Macabeus foi Sumo Sacerdote e deu origem à seita dos saduceus e segundo se dizia, ainda um pouco mais longe no tempo, o próprio Zorobabel, aquele rabino que presidiu a reconstrução do Templo de Salomão na época do retorno do cativeiro da Babilônia, teria sido seu antepassado. Assim, com um QI desse quilate não é possível negar, pura e simplesmente, a validade de tais reivindicações, não fosse a própria conseqüência desta história uma decorrência dessa postulação. Seja como for, a tradição invocada pela família de Jacó não era nada desprezível e seu filho Judas sabia disso, tanto que nas suas ventas de moço mimado, ainda não temperadas pela humildade que os reveses da vida costumam trazer, talvez não lhe faltasse a crença de que um dia poderia alcançar proeminência nos negócios da nação. 
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O próprio Jacó, como homem público e membro do Conselho não lhe frustrava essa expectativa. Lembrando-lhe sempre a descendência ilustre, incentivava mais que desestimulava esses sonhos do jovem Judas, o que concorria para lhe meter na cabeça e nos modos um quê de arrogância e autoritarismo, que o fazia comportar-se como se todos, de alguma forma, lhe devessem ser servis. Jacó era dono de um grande horto de oliveiras, que produzia frutos suficientes para fazer dele um dos mais im-portantes produtores de azeite da Judéia. Homem rico e respeitado, fariseu por coloração religiosa – que é o mesmo que dizer política, pois os fariseus e os saduceus eram as duas forças que disputavam o controle político da nação –, Jacó, não obstante, era um homem justo e temente a Jeová. Não tolerava injustiças e malfeitos, mesmo tendo sido praticadas por um filho dileto, a quem amava acima de tudo no mundo, talvez até mesmo mais do que a própria lei que jurara observar e guardar. Portanto, sua condição de membro do Grande Sinédrio também o fazia magistrado, com competente judicatura para julgar violações da lei, como era de direito para todos aqueles que ostentavam posição semelhante à sua.

Neste exato momento podemos imaginá-lo andando de um lado para o outro no pátio da sua espaçosa vivenda. Pelo semblante que ostenta, pode-se perceber que não é só a conjun-tura política pela qual está passando o país que o preocupa. É claro que essa questão lhe tem tirado o sono nos últimos tempos. De fato, as coisas não andam bem na Judéia nesses dias. O rei Herodes está muito doente e a multidão de herdeiros que ele gerou já traça, cada qual o seu plano, para assumir o trono do velho e gordo monarca. Diga-se, por uma questão de justiça, que ele, ainda que tirano, ímpio, assassino, apóstata e odiado pela maior parte da nação, mesmo assim tem conseguido manter a paz nos territórios que governa com mão de ferro há quase quarenta anos.
É voz corrente que seu filho, o fraco e incompetente Arquelau, herdará o trono quando ele morrer. Mas Jacó duvida que esse pusilânime e corrupto rebento que Herodes teve com a bela e ardilosa princesa samaritana Maltace, consiga obter o apoio dos romanos para reinar sobre um unificado reino da Palestina. Seus muitos inimigos – inclusive seus próprios irmãos – não o permitirão. Seu pai, Herodes, o Grande, conseguiu realizar essa proeza, que vinha sendo tentada desde os tempos dos reis Macabeus, embora a custo de muita traição, copiosos rios de sangue derramado, espúrias alianças, guerras intermináveis, mas também, diga-se, uma atuação política assaz competente. Dessa forma conseguiu manter, de um lado, uma convivência relativamente pacífica com os judeus, e de outro, a boa vontade dos imperadores romanos. Mas Arquelau, ainda que tenha herdado o caráter cruel do pai, a competência política e o tino administrativo, isso de certo ele não herdou. Já se sabe que Roma dificilmente o confirmará como rei da Palestina. O bem informado fariseu sabe muito bem que nesse momento uma surda guerra de bastidores, temperada por traições, conspirações e assassinatos foi deflagrada pelos herdeiros do seboso rei asmoneu. O próprio Herodes não tem se mantido fora dela, pois todo dia manda de-capitar algum conspirador, seja a conspiração um fato ou sim-plesmente um produto da sua já prejudicada mente, que segundo dizem, desde há algum tempo vem sendo comida aos poucos por uma multidão de demônios em forma de vermes. Além das loucuras que tem praticado e das sandices que fala, o velho tira-no já cheira a cadáver, o que faz com que as pessoas se afastem dele. Isso o deixa ainda mais louco e furioso.
Na verdade, é um câncer, o verdadeiro demônio que consome as carnes do adiposo monarca. Essa doença, que corrói aos poucos suas entranhas, é o responsável pela agonia lenta, dolo-rosa e inexorável do rei e o castiga de tal forma, que faz o pie-doso povo judeu pensar que os sangrentos vômitos que expele e as dores horríveis que sente no ventre bojudo sejam um castigo enviado por Jeová. Supersticiosos são todos eles, mas quem, nesses tempos, pode duvidar que Ele possa se valer de tais macutenas para punir os que se furtam da prática dos seus caminhos?
Mãos esgrouvinhadas, rosto disforme pelas poções que lhe envenenam o sangue, eis que fica o monarca, recluso em seu palácio em Jericó, a imaginar conluios e complôs para apeá-lo do trono. E nessas ocasiões, em que o sangue contaminado lhe sobe aos miolos, é a cabeça de alguém que rola no cadafalso por conta das visões que lhe provoca a macota. Assim fez ele com seus próprios filhos Alexandre e Aristóbulo, aos quais mandou decapitar, e com a bela Marianme, sua esposa e mãe dos dois príncipes, que teve o mesmo destino cruel. E muitos outros, esposas principalmente, irmãos e parentes que de alguma forma pudessem representar algum perigo para ele, apodrecem agora no frio das masmorras ou no silêncio do túmulo.
O povo deseja e espera para breve a morte do rei, mas ele é duro e viverá pelo menos uns cinco anos ainda. Enquanto os médicos tratam de esticar a vida do desgraçado o quanto podem, Jacó sabe que terá de tomar o máximo de cuidado com as suas posições políticas e esconder a desafeição que confessa ter pelo tirano asmoneu e sua mestiça prole. Terá que mitigar também a esperança da propalada vinda de um herdeiro da estir-pe de Davi para ocupar o trono do revivido reino de Israel, aquela promessa que tem sido acalentada desde os tempos do profeta Isaias e que se tornava mais forte sempre que os brios da nação eram aquecidos com a chama da desonra de serem governados por estrangeiros. Isso porque Herodes, cada dia mais nervoso, deu inclusive de sonhar com essas coisas e ter visões terríveis a esse respeito. O medo de que o tal herdeiro, que uns chamam de Messias, outros de Salvador, Libertador, Ungido, etc. não seja apenas um mito, como afiançam seus conselheiros saduceus, que não acreditam na existência de tal personagem, é tanto que até mandou seus magos compilarem todas as tradições acerca da vinda do Messias. E de posse dessas informações, vive a instigar seus espias a denunciar qualquer um que se arrogue no direito de investidura nesse mito.
Essa obsessão já o levou, inclusive, a profanar o túmulo de Davi e Salomão, porque se dizia que naquele local de veneração dos judeus os partidários do Messias guardavam o tesouro que seria usado para financiar a revolução. Assim pensando saiu a varejar, na calada da noite, o sagrado mausoléu, lá só encontrando ossos. Mas na comoção que se seguiu por causa dessa violação, Herodes teve que praticar uma feroz repressão contra os súditos injuriados que ousaram armar tumultos em várias cidades, especialmente na aldeia de Belém, a prosaica e insignificante povoação de Davi. A aldeia teve suas casas invadidas pelos esbirros do rei, á cata de qualquer sinal de rebeldes. Nessa investida, a brutalidade dos soldados foi tanta que chegaram a matar alguns recém nascidos no próprio colo de suas mães. Portanto, verdadeira é, pelo menos no fato ocorrido, aquela história de que Herodes mandara matar um punhado de crianças em Belém.
Ainda que aqueles que escrevem o que dizem ser a História – assim mesmo com letra maiúscula no começo da palavra, para diferenciar esta daquelas que são inventadas pela imagina-ção dos escribas –, sustentem ser essa também uma estória, copiada de outras lendas semelhantes, certo é que a nossa imaginação não obra no vazio. Se a mente gera imagens, algum suporte na realidade há de haver, e no caso, não é de se duvidar que aquele episódio da matança dos inocentes, que se conta ter ocorrido por ocasião do nascimento do filho de Maria, tenha amparo nesse fato. Assim, que Herodes mandou passar a fio de espada os habitantes de Belém, não importando fossem eles mulheres ou crianças que, num caso desses, são igualmente cul-pados, é fato verdadeiro. A divergência aqui está no motivo e no tempo em que isso ocorreu. Na verdade, nos dias em que vemos os seus soldados varejando as humildes casas de Belém, à procura do recém nascido Messias, ou – o que parece mais certo – à cata dos rebeldes que ousaram desafiá-lo, forçoso é dizer, o filho de Maria era ainda um começo de feto cujas distinções de forma ainda nem se anunciavam. E muito menos de qualidade, que esta é que faz a grande diferença.
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De qualquer modo, a Judéia desses dias é um verdadeiro caldeirão em ebulição. Se o oráculo do velho e chorão Jeremias se referia às atrocidades que Herodes acabara de cometer na pacata aldeia de Davi, então é verdade o que dizem os judeus, que afirmam que Jeová, àqueles a quem Ele escolhe, dá olhos para ver não só o que está à vista, mas também o que deve ser produzido a prazo. Pois o que ele previra era exatamente o que estava acontecendo naquele momento. E diga-se, a bem da verdade, o fariseu Jacó tem muito respeito pelas tradições do seu povo e acredita piamente nos profetas, por isso toma tento desses acontecimentos como sinais que não podem ser desprezados. Quando o céu está cheio de nuvens negras e o tempo fica abafado, pensa ele, sabe-se imediatamente que a chuva está a caminho. Assim, para tudo que vai acontecer, na natureza ou na vida das pessoas e das sociedades, os sinais que antecipam esses a-contecimentos estão visíveis. É só ter olhos para ver e o astuto fariseu enxerga nos sinais do tempo em que vive os prenúncios da consumação das profecias. No momento, entretanto, o honrado e probo ancião tem um novo e complicado problema para resolver. Ele o faz esquecer-se das suas preocupações políticas, para se ocupar de problemas familiares. Seu filho Judas, cujo juízo ainda não se assentou muito bem, envolveu-se com uma pastorinha nas cercanias de Belém e a moça está esperando filho dele. Soube dessa travessura através de um de seus servos, que de ordinário ele tem mandado vigiar o pródigo rapaz, cansado que está de livrá-lo das poucas e boas em que ele tem se metido desde que começaram a crescer-lhe as barbas e os hormônios entraram em ebulição.
Feita a investigação, ficou sabendo que a moça é filha de um pastor chamado Joaquim e este, quando descobrir o malfeito, certamente denunciará seu filho aos anciãos e a honra da sua família estará irremediavelmente manchada. Além disso, a moça será repudiada e julgada como mulher de má vida, o que poderá implicar até em uma condenação à morte por lapidação. É o que diz a lei. Se um homem dorme com uma mulher virgem e não prometida a ninguém, sendo ela livre, o malfeito pode ser corrigido pelo casamento, depois do castigo previsto. Este consiste em algumas boas chibatadas aplicadas nos lombos dos dois sem-vergonha; se a mulher for uma escrava, não sendo ela livre, deve a ofensa ser reparada pelo ofensor oferecendo um carneiro ao sacerdote, na porta do Templo. O sacerdote o sacrificará, e por conta da oferta, rogará a Jeová o perdão para o pecado cometido.
Mas a jovem Maria não é uma coisa nem outra. Além de não ser uma escrava, sem direitos civis, já é comprometida, o quer dizer que tem noivo, com pacto nupcial celebrado. Considera-se, portanto, como mulher já casada. É pobre e sua família tem pouca importância no estratificado quadro social da nação. Mesmo nesse tempo e lugar, que passa por ter uma lei justa e equânime, ditada pelo próprio Deus do país, essas distinções de fortuna e posição social fazem peso, mas o caso aqui é mais complicado. Não sendo a moça uma escrava, não há como livrar o peralta do rapaz com meras oferendas ao sacerdote na porta do Templo. Da mesma forma, não se pode dotar a donzela e fazê-lo casar-se com ela, pois que a mesma já é formalmente casada. O caso será considerado como crime de adultério e a lei é muito clara a esse respeito, não oferecendo qualquer oportunidade para exegeses.
A pena também é clara: Moisés mandou que se apedrejassem essas tais, e se flagrante fosse o crime, ambos deviam ser lapidados. Também não se pode resolver o caso dando ao pai da jovem o dote que manda a lei, já que essa opção só é viável quando é ele mesmo que se recusa a entregar ao ofensor a jovem violada. Portanto, nenhuma das soluções previstas na lei resolve o intrincado problema que o estouvado filho de Jacó criou ao se envolver com a filha do pastor Joaquim.
Para complicar ainda mais a questão, existem alguns julgadores que às vezes teimam em imitar aquele Natã, que foi profeta e conselheiro do rei Davi. Pois ele não hesitou em condenar o próprio rei por ter se banqueteado com a ovelhinha única do seu servo, enquanto no seu pasto havia um milhar delas. Essa metáfora foi usada pelo astuto profeta para condenar o famoso monarca pelo adultério que ele cometera, seduzindo a bela Betsabá, mulher do soldado Urias. Davi mandou colocá-lo na linha de frente da batalha para que morresse e assim pudesse usufruir, sem empecilhos de marido, dos amores da exuberante esposa do seu capitão. O homem morreu e sua mulher passou a fazer parte do harém do rei, mas o quanto lhe custou esse prazer só mesmo o monarca poderia dizê-lo. Dessa forma, podem esses anciãos, de repente, se meterem em brios e resolver fazer desse caso um exemplo de justiça e equidade. Eles têm esses laivos de virtude de vez em quando, ainda que o povo não lhes poupe a hipocrisia e a veleidade com que conduzem os negócios maiores da nação. Coam mosquitos e deixam passar camelos, é o que se diz desses sacerdotes feitos magistrados, metáfora mais que eloqüente para dizer que as grandes violações, praticadas pelas pessoas importantes, são toleradas, mas os pecadilhos do populacho, esses são julgados com extrema severidade.
Assim são os escribas, os fariseus e os saduceus, que nesses dias, ocupam as cadeiras de Moisés, Aarão e seus filhos. E malgrado a opinião que o povo tem deles, eles julgam a si mes-mos como guardiães da virtude e possuidores das mais excelsas qualidades legadas por Jeová aos homens. O próprio Jacó se considera um homem justo e não vê com bons olhos a desgraça de uma moça ser causada por seu filho. Depois, não há como fugir dos Olhos de Jeová. Eles estão por toda parte, oniscientes, a observar as ações humanas. Isso quer dizer que, mesmo que os membros do Conselho possam ser condescendentes com a travessura do seu filho, Ele – Que – Tudo – Vê, pode não ser da mesma opinião. Temente a Deus como é, o velho fariseu recorda-se que no episódio do rei Davi com a esposa do hitita Urias, o austero Natã profetizou a ruína do seu ilustre antepassado quando ele prevaricou. “ Eu suscitarei da tua casa o mal sobre ti e tomarei as tuas mulheres à tua vista e as darei a um teu próximo e ele dormirá com tuas mulheres aos olhos deste sol”, disse Jeová ao rei, pela voz do velho profeta e conselheiro. E Davi, mesmo sendo quem era, o bem amado do Senhor, teve de amargar os dissabores dos cornos que lhe puseram os amigos e parentes. Esse fato, a propósito, deve ter contribuído sobremaneira para contaminar a genealogia do famoso monarca, o que pode ser mais uma explicação do por que até os tempos em que essas coisas das quais falamos estão acontecendo, ainda tantas famílias, de diferentes origens, reivindiquem descendência na árvore genealógica do pastor que virou rei.
Jacó não quer arriscar-se ao mesmo destino do rei Davi. Deseja que a sua geração se perpetue por muitos séculos, mas que continue pura como pensa ser até agora. E como sabe que até mesmo aos reis a justiça de Jeová atinge em casos como esse e sendo ele, antes de tudo, um homem extremamente zeloso quanto a essas questões, não pode deixar que as coisas saiam do seu controle. Dessa forma, não deixará que o assunto chegue até o Conselho dos Anciãos. Seus filhos, José e Judas, embora a este último ainda lhe falte o devido juízo, talvez estejam destinados a serem grandes em Israel. Essa é a sua esperança, ou ainda que não o venham a ser, quem sabe pelo menos as suas legítimas descendências possam vir a obter esse resultado. Daí conclui que não ajudaria em nada os seus venerandos pares saberem que Judas se envolveu com uma pastora sem nome, prometida ainda por cima, o que obrigaria a egrégia Assembléia a tomar uma posição. E dela, certamente, nada resultaria de bom para seus planos. Feitas as devidas investigações, Jacó descobre que a moça está prometida a um carpinteiro que habita em Belém. Há uns tempos atrás esse homem enviuvara ficando com dois filhos para criar, ambos ainda de pouca idade. Portanto, a jovem a quem seu filho desonrara já estava desposada segundo a tradição do país, mas assim que o noivo souber do acontecido certamente a repudiará. Levará o caso ao Conselho e aí a ruína estará feita. É então que lhe vem á cabeça a idéia de falar com o carpinteiro e do alto da sua autoridade aconselhá-lo que tome a jovem por esposa o quanto antes, abreviando o tempo requerido pela tradição, dificuldade que ele, como autoridade, pode muito bem aparelhar.
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É exatamente o que faz. Através do rabino de Belém, sinagoga que José freqüenta, o arranjo é feito. Obtido o beneplácito do pai da moça, cuida logo o rabino da aldeia de chamar José e dar-lhe ciência do que foi resolvido, isto é, de casá-lo com Maria o mais rápido possível, argumentando que não era bom um homem, na sua condição e com filhos pequenos para criar, ficar sem uma esposa. Já sabemos que José tem bons motivos para concordar com o arranjo. Dessa forma, a nada objeta e até pode-se dizer que o recebeu com certa satisfação. É assim, pois, que o probo carpinteiro que morava em Belém, homem honesto e já maduro, judeu de boa cepa, envolve-se nessa história. Temente ao seu Deus e zeloso cumpridor da lei, enfim, tudo que um bom pastor busca em um noivo para uma filha – não fosse ademais o rico dote que o astuto fariseu, na forma de muitas cabras, em nome de José, concertou em dar a Joaquim pela jovem Maria –, José a tudo considera como justo e perfeito, diante da lei de Jeová e dos homens e a nada põe objeção. Inocente que está dos desígnios que Jacó maquinou para ele, não pode mesmo desconfiar de nada. E nem mesmo se pergunta por que o importante fariseu se mostra tão interessado nisso, para se dar ao trabalho de se preocupar com o casamento de um carpinteiro que nem conhece, com uma pastorinha que nunca viu. Se o fizesse, certamente Jacó inventaria alguma desculpa, talvez dizendo que Maria era sua afilhada, ou que Joaquim era seu compadre ou parente, o que não seria de admirar, porquanto os laços de famí-lia são coisas muito enredadas entre os judeus. De resto, que desculpa Jacó poderia dar também não importa, pois já que José não lhe perguntou nada, nós também não temos obrigação de procurar uma resposta para registrar aqui.
E continua-se.
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Também neste caso não fazem bem aqueles que escarnecem da idéia de que um anjo apareceu a José, o carpinteiro, para dizer a ele que tomasse Maria por esposa, pois o que nela se gerava era fruto do Espírito Santo. Este cronista, ainda que não comungue da forma pela qual os redatores oficiais desta história deram suas notícias, confessa não ter nenhum constrangimento em aceitar essa possibilidade. Por que não? Se Jeová se utiliza dos artifícios próprios dos homens para realizar os seus intentos, quem pode Lhe cobrar tais feitos? Se as linhas são tortas, Ele pode muito bem escrever o que é reto entre elas e assim é que Ele faz, louvado seja o seu Santo Nome, que muitos poucos conhecem qual seja realmente. Agora, se o anjo tem nome e autoridade entre os homens, de forma tal que isso lhe permite uma quebra de tradição, ainda por cima acompanhada de um não pequeno dote para aclamar a consciência do pai da noiva, que melhor arranjo se pode fazer para colocar tudo na boa e devida forma? Muda-se o ponto, mas não o conto e isso é o que importa.

Feitas as contas, todos postos de acordo, Joaquim concorda em entregar a donzela ao seu prometido noivo o mais rápido possível e faz ver a José a necessidade de abreviar as etapas exigidas pela tradição, com o que o carpinteiro logo concorda, pois para ele quanto mais depressa tiver a esposa à mão, mais aliviado ficará em todos os sentidos. À garota é que o conchavo não cai muito bem, pois não lhe parece certo enganar o bom homem que lhe vem por prometido. Precisa contar ao noivo o ocorrido, mais não seja porque certamente ele o perceberá quando o momento de consumar o casamento se der, pois de um lacre de inviolabilidade quis a natureza dotar as donzelas, de sorte que rompido tal selo, não mais há como afiançar que a carta ainda não foi lida, diga-se o que se quiser dizer.
Mas há muito que considerar em tudo isso. A desonra da família, o julgamento no tribunal, o teste das águas amaríssimas, a vergonha de ter seu corpo exposto perante os anciãos, a con-denação à morte sob uma chuva de pedras. E para Jacó, não isento das angústias de Maria, mas muito mais preocupado com o destino do seu filho, é preciso que as coisas sejam resolvidas o mais rápido possível. Urge, pois, que a jovem tome José por esposo antes que o seu ventre denuncie o mal cometido e qualquer reparo não possa mais ser feito.
Dessa forma é que Maria, a meiga pastora, filha de Ana e Joaquim, moradora das cercanias da aldeia de Belém e não de Nazaré, como anos depois seria noticiado, se tornou a mocinha de uma história sem fim.
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João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 01/05/2011
Reeditado em 09/05/2011
Código do texto: T2943016
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