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Essas coisas de matrimônio são percebidas de forma diversa por homens e mulheres. Talvez por conta das diferentes funções estruturais distribuídas pela natureza a uns e outras, a mulher vê o casamento como instituição e o homem como instrumento. Assim, enquanto a mulher, quando fala em casamento, vê uma casa, uma família, uma função biológica e social sendo cumprida pelo convênio no qual se engaja, o homem, ao invés, nele não se realiza, mas dele se vale para atingir uma finalidade.
Há quem diga que a natureza fez mal em separar os sexos, criando a necessidade de unir dois corpos e duas vontades para a geração de um terceiro. E que bem mais fácil devia ser a procriação nos tempos anteriores a Adão, pois segundo diz uma sabedoria muito antiga, naqueles áureos tempos as criaturas humanas que viviam na terra eram hermafroditas e geravam os descendentes em seus próprios corpos, sem precisar da relação entre os sexos. E mesmo que se considere a possibilidade de que Adão não seja apenas uma metáfora da qual se valeu o cronista para contar como a natureza engendrou o primeiro exemplar sexuado da espécie humana, mas sim uma literalidade mesma, o fato de que ele era andrógeno é indiscutível, pois foi do seu próprio corpo que saiu a mulher. Por isso é que também já se aventou a possibilidade de que a criação da fêmea, conforme se descreve nos livros sagrados dos judeus, retrate exatamente o momento crucial em que a natureza deu esse passo fatal, segmentando em dois o sexo da espécie humana. Pois ali se conta que a mulher foi feita da costela do homem, numa operação digna do melhor cientista moderno, desses que hoje se põem a brincar de Deus em seus laboratórios, fabricando seres vivos com suas artes de engenharia genética.
Elucubrações à parte, o fato é que aquilo que para a mulher é fim, para o homem é meio. Dizer “sou casado”, para o homem tem diferente sentido do que para a mulher quando diz “sou casada”. No primeiro caso, temos um complemento de qualificação, que é como dizer: sim, tenho carro próprio, diploma universitário, estabilidade familiar, reconhecimento social, qualificação profissional, enfim, qualquer coisa que compõe um curriculum vitae respeitável; no segundo caso, temos uma qualificação fechada em si mesma, como a dizer, sim, isso sou eu, uma mulher casada, o que significa, eu tenho um status, uma qualidade, que é o mesmo que dizer, sou honesta, sou virtuosa, sou normal, sou mulher, sou uma família.
Isso, pelo menos, era algo que importava muito no tempo de José e Maria. E mesmo nestes nossos dias, em que as intenções e as necessidades fazem as pessoas buscarem diferentes formas de satisfazê-las, a estrutura biológica da mulher e a função que se confere ao sexo feminino no edifício da construção humana sempre lhe reclama o cumprimento da prioridade. Daí certos dizeres que sugerem conceitos do tipo, “mulheres formam famílias, homens, tribos”; “mulheres constroem lares, homens, casas”; “mulheres fazem amor, homens, sexo”, etc., têm lá suas justificativas e não podem ser desmentidas senão a custo de muita habilidade dialética. E valem para todos os tempos como leis naturais que nunca mudam.
2
Não sendo objetivo da presente narrativa o desenvolvimento de uma tese a respeito da função dos sexos, mas sim, atestar o que se passou com a filha de Ana e Joaquim, de forma que esta nossa visão dos fatos possa receber o devido registro e vigorar como documento de indubitável legalidade, vamos deixar esse assunto para exame de quem queira se dar ao luxo de amadurecê-lo mais um pouco, porquanto em nossa estufa não há lugar para semelhantes frutos no momento. No caso da menina Maria, no entanto – somente para arrematar as ligações que foram estabelecidas com o tema –, digamos que a notícia de que estava sendo dada em casamento a José, de certo lhe ativou diferentes sensibilidades. Fora feita para o pudor, como se exigia das mulheres do seu povo, o que inibia comportamentos tendentes a demonstrar qualquer laivo de luxúria, faceirice ou sensualidade. Mas não deixava de ser mulher e os atributos da sua natureza não permitiam que tivesse diferentes sentimentos das mocinhas da sua idade. Diz a filosofia cultivada pelos eclesiásticos judeus que a mulher forte é a alegria do seu marido e o fará passar em paz os melhores anos da sua vida, do mesmo jeito que a mulher virtuosa é uma sorte excelente, é o prêmio dos que temem a Deus e será dada ao homem pelas suas boas obras. Como poderia ela contrastar tal sabedoria, que já fora homolo-gada pelos doutos da terra, como modelo de virtude que se exige da mulher, no povo de Jeová?
“ E se gozas na virtude do teu casamento, ó mulher, a ninguém digas que gozas, porquanto o teu gozo é pecaminoso. Guarda para ti o teu prazer se o encontras no teu achego com o marido, pois aquelas que assim mostram a embriaguez das deli-cias que sentem na cama não se encontram nas casas virtuosas, mas na promiscuidade dos prostíbulos!” Essas máximas, caro leitor, não as procure entre os provérbios ditados pelos sábios de Israel, porquanto não foram eles que as produziram, mas este cronista mesmo, embora a gosto deles, pois afinal, nem tudo, nesta crônica, é pensamento já pensado ou imaginação reconstruída – que de resto não é coisa incomum numa história que já foi contada tantas vezes.
Descontada a interpolação, que o cronista faz somente para efeitos de estilo, voltemos a Maria para dizer que aquele olhar furtivo que ela dá ao prometido noivo lhe vem mais da curiosidade feminina do que propriamente dessas outras profun-dezas da mente humana, que só Freud, muitos séculos depois, iria explorar. Mas ainda que nessa terra e tempo do qual falamos não seja de bom alvitre adotar o sadio costume dos animais, que deu às fêmeas o privilégio de aceitar somente os machos de sua própria escolha, mister é que pelo menos se veja com quem se fará a parceria mais importante da vida, pois será com tal parceiro que a missão precípua dela, enquanto mulher, deverá ser cumprida. É isso que justifica a curiosidade de Maria e esse é o motivo de ela estar a observar, escondida, o futuro marido. O que ela pensa e sente a respeito, entretanto, não nos foi dado adivinhar, pois as mulheres judias, desde sempre, já sabem que não devem escrever no rosto, nem estampar nos olhos e nas posturas do corpo os pensamentos que constroem em suas mentes.
3
Motivos diferentes dos de Maria, dizíamos, movem as intenções de José a respeito desse casamento. Além das naturais necessidades funcionais que cabe a um macho cumprir na socidade em que vive – e entre os judeus são cobradas com mais empenho ainda do que entre os outros povos do império –, há aquelas que, por falta de nome mais apropriado, chamaremos de estruturais. Expliquemo-nos. São as roupas que precisam ser lavadas e costuradas, são os alimentos a ser cozidos, a limpeza da casa para ser feita, o cuidado dos filhos, enfim, todas as provisões que à mulher compete fazer para a manutenção do lar, e quando já se não dispõe de uma mãe que o faça, necessário é que se procure uma esposa, e é isso que faz o homem passar de uma mãe para outra.
No caso de José, além dos serviços domésticos e dos cuidados femininos que todo homem requer, são os reclamos da libido que exigem atendimento mais qualitativo e menos culposo do que aquele do qual ele se serve no momento. Para o car-pinteiro, as vontades do sexo, que nele ainda são freqüentes, precisam de canal apropriado para serem satisfeitas. A recompensa varonil não pode continuar a ser obtida daquela maneira pecaminosa, que a maioria dos varões sem mulher que os atenda, nem dinheiro para pagar às que vivem desse comércio, que segundo dizem, é a mais antiga profissão do mundo, costumam lançar mão. Desse último perigo, aliás, são os filhos de Israel, todos os sábados, advertidos na sinagoga. “Meu filho, não te deixes ir atrás dos artifícios da mulher de má vida, porque os lábios da prostituta são como favos de mel e suas palavras mais suaves que o puro azeite, porém o seu fim é amargo como o absinto e cortante como uma espada de dois gumes”, diz o eclesiástico.
Além disso, as questões sexuais são amplamente tratadas nos livros sagrados dos judeus, que nisso, verdade seja dita, não adotam a postura hipócrita da legislação dos outros povos, que consideram o assunto constrangedor. “Não usarás o macho como fêmea”. “Não praticarás o coito com bestas”. “ Evitarás o conúbio com a mulher nos dias da sua impureza”, etc., são programas de conduta longa e profundamente implantados na mente do homem judeu, de tal forma que qualquer ação que viole um desses preceitos é tida como crime dos mais hediondos. Eliminadas, portanto, as alternativas acima referidas, resta ao atormentado viúvo a prática solitária do sexo como única forma de satisfação. Daí que lançar mão mesmo, para obter o prazer – com perdão da metáfora –, é o que ele faz; e tal comportamento, decerto que José sabe, também constitui pecado dos mais graves, pois está na lei que um homem não deve usar as mãos que Jeová lhe deu para ganhar o pão de cada dia na prática de tais expedientes.
Ademais, todo judeu sabe que é um grave delito desperdiçar a semente que Jeová lhe deu para fins exclusivos de procriação. Semelhante comportamento – José não ignora – havia custado a vida daquele Onan, que preferira lançá-la ao ermo ao invés de plantá-la no útero da sua cunhada, como lhe cumpria fazer por força da lei do levirato. Essa lei, que fora instituída em tempos anteriores a Moisés, tinha como objetivo garantir a sobrevivência do clã, e embora nos dias de José já não estivesse mais em uso, havia a questão moral que subsistia implícita nesse comportamento. E isso, a par de ter muito peso no direito consuetudinário da terra, pesava ainda mais no tribunal da consciência, que é onde todas as causas são julgadas preliminarmente.
Dessa forma, José sabe que comete grave ofensa à lei de Jeová com suas voluntárias poluções noturnas, conquanto esse seja um delito que ele não pode deixar de cometer, sendo o clamor da carne mais forte do que o peso da consciência e o medo do castigo. Muitas vezes sonha que a mão pecadora está mirrando e isso lhe causa um grande temor, pois que carpinteiro poderá ser se mão boa não tiver para trabalhar? Desses pesadelos acorda assustado e corre para o terreiro, ou então vai para perto da candeia, onde a claridade da lua ou a luz mortiça da lâmpada lhe permite ver que a mão pecaminosa ainda está sã. Vê que o que teve foi apenas mais um sonho mau, mas então pensa que talvez esses sonhos sejam um recado de Jeová, a questioná-lo acerca desse comportamento. Ele, às vezes, desses recursos se vale para advertir aos filhos de Israel sobre o que se deve ou não fazer. E dai volta para a cama e ora e promete a si mesmo nunca mais praticar aquilo, mas depois de quatro ou cinco noites, eis que novamente o apanhamos no mesmo ato, pois as torrentes do desejo não se estancam com os diques da mera intenção. Dessa forma a culpa vai se acumulando e José teme que a conta se torne tão grande que nenhum sacrifício mais seja capaz de saldar débito tão volumoso.
Se mais não há que o leve a aceitar o casamento, basta esse fato para convencer o solitário carpinteiro que precisa urgentemente ter uma mulher em casa. E depois, há o famoso conselho do eclesiástico que diz: “Melhor é estar os dois juntos do que estar um só. Porque tem a conveniência da sociedade. Se um cai o outro o sustém. Ai dos que vivem sós, porque quando caem, não há ninguém que os levante. E se dormirem juntos, se aquecerão mutuamente, mas um solitário, como há de se aquentar? E se alguém consegue prevalecer contra um, a dois lhe será mais difícil. Um cordel triplicado dificilmente se quebra.” Eram bem sábias essas palavras e José agora sabe por quê. Difícil é a vida do homem solitário, especialmente quando a noite cai e ele tem que voltar para uma casa sem mulher, para recompensá-lo da dura labuta da vida com o prazer que Jeová lhe deu para gozar em paz.
5
Assim é que, acertado o dote e os demais detalhes do acordo nupcial, Maria ganha um noivo e José uma esposa prometida. De acordo com os ritos próprios da tradição do país, o casamento ocorre em duas fases. Na primeira, que é o noivado propriamente dito, a noiva é entregue ao futuro marido, mas com ele não convive. Ela torna-se uma ahmat, ou seja uma jovem mulher casada. Considera-se, portanto, que já estão desposados. É feita uma cerimônia simples, com a assinatura do compromisso diante do escriba, que lavra a escritura nupcial, após o que, os noivos retornam cada um à sua respectiva residência para aguardar a segunda fase. Nesse período, que dura cerca de seis meses a um ano, a noiva prepara seu enxoval e o noivo cuida de preparar a casa. Depois desse tempo é que o casamento, com todas as pompas cerimoniais é realizado. É então que vem o cortejo das jovens casadoiras, com suas enfeitadas lanternas, acompanhando a noiva e os homens solteiros fazendo o mesmo com o noivo. E depois as brincadeiras, as danças, o vinho e as comidas, fartamente distribuídos – quando se têm cabedais para tanto –, enfim, tudo que de praxe ocorre nessas ocasiões.
Depois disso tudo é que o casal passa a coabitar. Por isso é que a maioria dos cronistas que escreveu sobre o assunto registrou o fato de Maria não estar ainda convivendo maritalmente com José quando os eventos dos quais nos ocupamos nesta crônica aconteceram. Eles não mentiram nem escreveram meras imaginações, como muita gente desinformada a respeito das usanças do povo dessa terra andou a dizer por aí. Por ser verdadeira, não temos nenhum constrangimento em atestar a informação de que a filha de Ana e Joaquim estava já desposada com o probo carpinteiro de Belém naqueles dias, pois o noivado, entre os judeus, já é um compromisso formal de casamento. E verdadeira também é a noticia de que ele não a conheceu, seja o que for que essa expressão queira dizer, ou seja, que não houve contato físico ou convívio social entre os nubentes, pois nesses casos as duas coisas costumavam acontecer concomitantemente, dado que não era uso e costume daquela gente, naqueles tempos, praticar esse gostoso hábito moderno que é o namoro, fase mais prazerosa de todo romance. De maneira que José volta para sua casa, em meio ao povoado da pequena Belém e Maria fica na sua, nas cercanias da aldeia. Enquanto isso os papéis são preparados, o dote é discutido, os necessários acertos são feitos, os parentes são avisados, a sinagoga preparada, o sacerdote e o escriba contatados, um para redigir as cartas, o outro para realizar a cerimônia. Assim, as coisas tomam seu curso e tudo aconteceria da forma como costumam acontecer nessa terra, não fosse a necessidade que uma emergência descontínua ocorra de vez quando para que a vida do universo não continue sendo uma eterna série de eventos previsíveis e continuados.
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