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Essa menina que agora estamos a observar a preparar a massa para fabricar o pão tem dezesseis anos de idade e se chama Miriam. Mais tarde, depois dos acontecimentos que viriam marcar a sua vida, passaram a chamá-la simplesmente de Maria, para latinizar-lhe o nome e torná-lo mais familiar aos povos do império, que se comunicavam preferentemente em latim ou grego e dificilmente guardariam o seu nome judeu. Assim, para que ninguém nos acuse de exagerado preciosismo, também iremos usar em nossa crônica o seu nome latino, pois tanto quanto a grafia original, Maria não deixa de ser um belo nome para a mocinha que temos em frente aos olhos da nossa mente.
Maria é a filha caçula de Joaquim, um pastor que tange o seu rebanho próximo à aldeia de Belém. Malgrado a pouca idade que tem, já aprendeu a manejar a roca, o tear, a agulha, e também sabe tecer o linho e a lã com presteza e eficiência. Com boa arte faz os vestidos que ela e o pai usam e assim, mal vestida é que não anda a pequena família do pastor, ainda que a rusticidade e a simplicidade das vestes seja a marca da gente que apascenta seus rebanhos por essas terras já cansadas de tanto uso, e também tão marcadas por histórias de assombrosos eventos, que o simples fato de uma mocinha como ela já ter que cuidar de muitas obrigações e se ocupar de tantas tarefas é uma coisa tão corriqueira que só merece mesmo ser citada por conta da justiça que lhe queremos fazer.
Outras manufaturas, que à mulher, no país dos judeus, é necessário que se ensine para que cumpra as finalidades que lhe são inerentes em razão do sexo ao qual pertence – e a cultura da terra também lhe exige –, igualmente lhe foram ensinadas e ela, segundo se diz, as aprendeu muito bem. Das prendas domésticas, portanto, a menina Maria é o que se poderia chamar de bastante provida, tanto é que cuida muito bem da casa e tudo nela arranja como sua mãe faria se viva ainda fosse.
De pouca leitura é a garota, pois nesta época e terra em que mora, essa habilidade que a educação dita moderna tanto valoriza é destinada exclusivamente aos rebentos do sexo varonil. Dela precisam os homens para bem cumprir o que de todo bom judeu se exige, a leitura dos rolos da lei e os escritos dos profetas, que se faz religiosamente nas sinagogas, aos sábados. E diga-se, por importante, que é justamente essa educação que os distingue entre os povos do império. Por isso os veremos tão orgulhosos de suas tradições, já que, segundo afirmam em seus escritos, não há, entre todas as nações da terra, uma só que seja tão íntima do único e verdadeiro Deus – seja Ele quem for –, quanto essa pátria dos judeus.
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Na Judéia dos dias da menina Maria tudo é muito bem definido e nada é deixado à conta de interpretações irresponsáveis. Isso significa que não encontraremos filósofos dissertando sobre religião, subvertendo os ensinamentos divinos, nem teóri-cos do comportamento humano a espalhar teorias sobre o que é felicidade e qual a melhor forma de encontrá-la, como se faz hoje, e como já se fazia naquele tempo, desde que entre os povos governados por Roma se incluíram os gregos.
Simplicidade é a marca daqueles que vivem na terra dos judeus. Enquanto às mulheres se ensina a sabedoria do lar, o respeito aos seus pais e maridos ( que são prolongamentos uns dos outros ) e o temor ao Deus do país – que está no topo dessa hierarquia –, aos homens, mesmo àqueles que moram distante das aglomerações urbanas onde ficam as sinagogas, que são templos e escolas ao mesmo tempo, sempre se há de achar um meio de lhes ensinar o que Jeová ditou a Moisés e segredou aos ouvidos dos seus profetas. Esse é um dever imposto a todos os pais, e entre os judeus essa obrigação – ensinar aos filhos o respeito pelas crenças dos seus ancestrais – é até mais importante do que prover-lhes o sustento material, pois este eles mesmos começam a buscar assim que lhes saem os primeiros fios de barba. Essa é a razão pela qual todo filho de Israel é educado primeiramente nos ordenamentos divinos para suporte da vida espiritual e depois numa forma de manufatura para salvaguarda da vida material. De sorte que entre eles não se requer, como ocorre entre os povos educados à moda grega, que uma pessoa precise ir a uma escola particular, ou pagar a um mestre para que o instrua naquilo que deveria ser de praxe para todos os cidadãos: o aprendizado de uma profissão e o conhecimento da vontade divina, que afinal, é a única e verdadeira sabedoria que se deve adquirir.
Esta última sabedoria, chamada filosofia pelos gregos, ao mesmo tempo que provê uma vida cômoda para quem a ensina, é uma excelente forma de matar o tempo para aqueles que a recebem. Os cultos habitantes da ensolarada Hélade fizeram dessa arte uma prática tão comum que ela logo se tornou um artigo de primeira necessidade para as elites do império romano. Toda família dita educada há de manter um grego entre os seus serviçais. É moda ter um filósofo em casa e preencher o ócio com longas especulações com o seu escravo grego. Por isso, graças aos sábios compatriotas de Platão e Aristóteles, os habitantes do império não sabem mais distinguir entre o sagrado e o profano, pois tudo acaba sendo cozido na mesma panela, a da utilidade. Isso quer dizer que, para os gregos e os seus pupilos latinos, os verdadeiros deuses são a Razão, a Força e o Resulta-do, e estes, não tendo como assumir um corpo para viver entre os homens, delegaram todos seus poderes a um único homem, que é o Imperador.
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Mas se para os demais povos do império a verdadeira sabedoria é aquela que os ensina a obter bons resultados na vida e assim serem amados pelo Imperador e recebidos na sua corte – para eles, o único e verdadeiro paraíso –, na visão dos judeus é preciso aprender algo mais para merecer um julgamento benévolo do seu Deus. Jeová é um Deus – Magistrado que tudo julga como se estivesse num tribunal romano. Diferentemente de Zeus, ou Júpiter ( como é chamada em Roma a divindade que preside a plêiade das deidades acreditadas no império ), que só incidentalmente interfere no destino dos homens, Jeová está atento aos menores atos que o ser humano executa, e o correto agir é a principal exigência que Ele faz para que seu julgamento seja benevolente.
Assim, andar com retidão nos caminhos traçados por Jeová é a principal sabedoria que se cultiva no país dos judeus. Por isso eles dela cuidam acima de todas as outras e nada há de mais importante do que estudá-la dia e noite e transmiti-la aos descendentes. Isso não é difícil de entender, pois numa terra em que os ordenamentos legais vêm da vontade divina e não das necessidades humanas de convivência, como sói acontecer em qualquer país que já tenha alcançado uma organização social e polí-tica digna desse nome, a religião e a lei não são coisas distintas.
No restante do mundo romano, a sabedoria erigida na Grécia já decretou que uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa e tudo tem uma identidade própria que lhe garante características e propriedades específicas. Na Judéia não se cul-tivam tais sutilezas filosóficas. Uma e outra coisa podem ter a mesma identidade, pois tudo emana de um mesmo princípio e caminha para uma mesma finalidade. O conceito de um Deus único também permite a unificação morfológica de todas as coi-sas, de forma que água e vinho, cobras e cajados de madeira, asnos e pessoas, noite e dia, vida e morte, luz e sombra, etc. podem conviver juntos na mesma natureza e é somente o propósito de Jeová em relação a elas que lhes dá forma e substância, próprias para cada ocasião. Assim, quando Jeová quer, o dia é noite, a água é vinho, um pedaço de madeira pode se transmutar numa cobra, a morte se torna vida, a vida se torna morte, não há peso nem gravidade e o universo se converte numa constante de integração que pode ser dividido num alfabeto de muitas letras, mas também pode se condensar num único signo. Isso explica como Borges conseguiu contemplar o inconcebível universo, condensado numa diminuta esfera de meio milímetro de dimensão, e o resumiu numa das letras do alfabeto hebraico, o Aleph. 
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Como todas as formas e substâncias nada mais são que manifestações da Substância Única, Indivisível e Inominada, que os sábios judeus chamam de EnSof, cancela-se o principio da identidade e não se fala mais nisso, porque a vontade de Jeová é a única e imutável lei que rege a formação da realidade manifesta. Destarte, como religião e lei são uma e a mesma coisa, quem a primeira aprende da segunda também adquire toda a ciência. Dessa forma, no país dos judeus não se precisa dos aparatos legais que são exigidos em outras partes do império para a prática da justiça, com seus tribunais cheios de advogados e suas repartições inchadas de pretores, litores e outros profissionais das lides jurídicas e administrativas. Basta uma sinagoga e um sacerdote – magistrado, acompanhado de um escriba para redigir as atas e um preboste para executar as ordens, e eis tudo resolvido.
Até que nisso fazem bem os filhos de Abraão, pois mais fáceis de entender são os caminhos traçados por um Deus do que os meandros das leis humanas, ainda que aqueles possam ser mais apertados e difíceis de percorrer do que estes. Afinal, é mais fácil trabalhar com o conceito unificado de uma autoridade divina do que com a diversidade de um estado organizado, onde as leis emanam de diversas fontes. Estados e deuses são entidades abstratas, que foram criadas para fins exclusivos de controle e organização, mas depois que adquirem vida própria, passam a exigir de seus súditos coisas bem concretas: fidelidade, tributo e devoção. Isso os torna tão parecidos que se chamássemos o Estado de Deus e Deus de Estado não estaríamos fazendo nenhuma comparação insensata. A propósito, isso já foi feito e até se tentou por em prática a idéia de substituir a Divindade pelo Estado. O resultado não foi muito bom para os povos que tiveram que suportar a experiência, mas essa é outra história. A diferença é que um Deus só pode ser derrubado por outro Deus e um Estado é pouco resistente à volúpia das paixões humanas. Como construir um Deus de verdade é mais difícil do que fazer uma revolução, aí talvez esteja a diferença entre os judeus e os demais grupos étnicos que este mundo já viu nascer. E é por isso é que eles ainda existem como povo, enquanto todos os seus contemporâneos já viraram poeira nas páginas da História.
Segundo é dito comum entre eles, estreitas e acidentadas são as estradas que conduzem à salvação e largas e bem pavimentadas as que nos levam á perdição. Dessa forma, sendo Deus um só, menos custoso é aprender o que Ele quer de nós do que saber o que pensam os juízes, esses deuses togados que encontramos no Olimpo dos tribunais, pois estes são muitos e não gostam de pensar todos da mesma forma. Segundo dizem, uniformidade no pensar lhes agride a personalidade, por isso estão sempre a dar sentenças diferentes para idênticos casos. Daí decorre que o Direito, esse código que os homens inventaram para torná-los mais próximos nas distâncias que eles mesmos criaram entre uns e outros, por ser filho da cabeça de muitos, também está tão sujeito à subversão quanto um indivíduo de bandeira ou paternidade duvidosa, que por não ter deveres de lealdade com ninguém, pode servir a quem melhor lhe retribuir. Desse modo, a Justiça, que passa por ser a mãe do Direito – já que dela deve nascer –, fica longe daquela identificação que lhe fazem com a senhora virtuosa e cega que encontramos nos pátios dos tribunais com uma venda nos olhos e uma balança nas mãos. Ela acaba se parecendo mais com uma prostituta que atende ao que melhor lhe paga ou a quem articula o melhor discurso. E o Direito, filho não se sabe de quantos e quais pais, se torna semelhante a uma cidade que tem portas largas e caminhos fáceis de serem percorridos por quem tem bons antecedentes de nascimento ou largos cabedais para pagar por quem tenha bom conhecimento dos seus atalhos.
Por isso preferiram os judeus cozinhar religião e direito, filosofia e prática de vida num caldo único que lhes fornece todos os nutrientes. Na Judéia tudo é diferente das outras terras dominadas pelos romanos. Naquelas, os ordenamentos legais são esparsos e confusos, dificilmente dominados por uma única pessoa, o que os obriga a formar especialistas em direito civil, patrimonial, penal, político, fiscal, canônico, etc. Mais espertos, os judeus condensaram em um único tratado todo o seu arcabouço jurídico, social e religioso. Assim, nos cinco livros da Torá e nos ensinamentos dos seus eclesiásticos e profetas se encontra tudo que se precisa saber para viver legalmente numa terra governada diretamente por um Deus único, e um homem que tenha cumprido regularmente o seu aprendizado não precisa de assistência profissional quando levado a juízo, como acontece em outras províncias do império. Jeová fala por ele ou contra ele, e o chamado devido processo legal que os romanos tanto prezam, resta tão inútil quanto um discurso de sofista. 
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Essa é, precisamente, a diferença entre o mundo legal dos romanos e o mundo jurídico dos judeus, pois neste último não se separa o jus do fas, sendo o primeiro aquilo que a sociedade permite que se faça e o segundo o que religião ensina que se deve fazer. De sorte que na Judéia o magistrado e o sacerdote andam juntos na mesma pessoa e os julgamentos não são tão morosos e complicados como os que se vêem em outros territórios do império que escolheram se reger pelo jus ao invés do fas. Na Judéia um acusado pode entrar no tribunal pela manhã e à tarde já estará morto, soterrado sobre uma montanha de pedras. Em Roma, uma pena como essa pode durar meses ou até anos para ser aplicada, dado o número de recursos que o sistema legal permite.
Isso porque esses sacerdotes todos sabem exatamente qual é a Vontade de Deus e não precisam de exegetas ou jurisconsultos, nem de processos longos e morosos para chegarem a veredictos justos e escorreitos. Disso decorre que suas sentenças são imediatamente proferidas, liquidadas e cumpridas rapida-mente, poupando custos para o Estado e angústias prolongadas para os condenados. Isso é o que sempre acontece nos sistemas em que o ordenamento jurídico exige a aplicação do devido processo legal. Este, além de longo, complicado e passível de ser adulterado, ainda admite tantas petições de revisão, que muitas vezes um condenado à pena capital acaba morrendo de morte natural, provocada pelas doenças que contrai nas masmorras ou pelos males que, cedo ou tarde, adoecem a alma de quem se vê privado da liberdade. Mas o Direito – isso é voz corrente em todo o mundo, menos em Roma, é claro –, é a única conquista do espírito que esses piratas do Lácio conseguiram desenvolver por habilidade própria. As demais, de que tanto se ufanam, roubaram-nas de outros povos, especialmente dos gregos e dos egípcios.

(CONTINUA)






João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 24/04/2011
Reeditado em 16/09/2011
Código do texto: T2927477
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