CAPÍTULO 2 
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Coisa interessante de se ver nos três condenados é a expressão do rosto deles. Enquanto os crucificados da direita e da esquerda parecem que dormem, pois que a morte lhes foi definitiva, acabando com todas as suas dores, o condenado do centro ainda conserva no rosto massacrado uma expressão de dor tão grande que, dir-se-ia, nele a morte não completou seu trabalho, levando-lhe as dores junto com a vida. Como se as primeiras pudessem sobreviver numa carne que já não hospeda a última, elas ali estão, como que a provar que muita razão tem quem acredita que entre o céu e a terra há muita coisa mais do que pode supor a nossa vã sabedoria.
Descontando a falta de originalidade da frase, o que se quer aqui dizer é que o morto, ainda que morto, parece reter na última expressão todas as angústias do mundo – não fossem elas menores do que aquelas que lhe foram infligidas nas últimas horas – ; e o seu rosto, já dito que de todo descomposto em suas feições, é uma máscara de agonia e sofrimento que não arrefeceu nem deixou de compungir-se até mesmo depois que o espírito abandonou-lhe o corpo e privou os nervos das cinestesias próprias dos seres vivos. Considerando-se o desenrolar futuro da história desse condenado, esse é um detalhe não pouco relevante, que ninguém deveria desprezar.
Agora, falando em detalhes, é preciso que se considere outro, não menos importante, neste quadro que contemplamos. Trata-se da platéia que assiste ao macabro espetáculo. É composta, em primeiro plano, por quatro mulheres e um rapaz, este de compleições tão finas, que se fosse dito que mulher é também, ninguém ousaria contestar. No entanto, olhando-se mais de perto, vê-se que é um rapazola, em seus quinze ou dezesseis anos, que os cabelos encaracolados e compridos, emoldurando a face jovem e quase feminil, e o fato de estar ali, como única presença masculina em meio a uma maioria feminina, faz com que, em princípio, se pense ser também ele uma mulher.
Desfeita essa primeira impressão, no entanto, recupera-se a informação correta e podemos ver que se trata, realmente, de um menino. E tal, por todas as evidências possíveis e comprováveis, só pode ser aquele discípulo amado, único dos doze que parece ter estado presente nas horas mais amargas e difíceis pelas quais ele passou, especialmente na sua última noite.
Não fosse essa uma informação assaz inoportuna, que pode provocar especulações indevidas e até maldosas, poder-se-ia dizer também que esse garoto é o mesmo que na noite anterior, quando o condenado foi preso no Horto de Getsêmani, deitou a correr nu, pelo jardim, depois que um soldado betusiano puxou-lhe o lençol no qual se envolvia. O que fazia ele vestido nessas condições, ou desvestido, melhor se poderia dizer, é assunto que poderia suscitar muita especulação. E também por que se registrou tal fato é coisa que ainda causa muita celeuma, já que ele parece estar despregado de todo contexto e nenhuma relação guarda com qualquer objetivo, estratégia ou compromisso que alguém pudesse ter assumido em relação á vida e obra desse condenado. Destarte, se a história desse homem não constituísse um verdadeiro repertório de enigmas e significados ocultos a revelar, uma ocorrência desse tipo sequer mereceria uma citação; mas se pelo um cronista a registrou é porque alguma relevância deve ter, senão não se gastaria papel e tinta com ela, ainda que fosse apenas para excitar a imaginação dos leitores. Dito isso, registremo-la nós também, porque essa é uma das poucas referências que faremos em relação a esse moço, que segundo uma tradição firmada a partir de uma fala atribuída ao condenado, ainda estaria vivendo entre nós, e neste mundo ficará até que ele volte – não se sabe quando nem de onde – para recolher os frutos da sua missão. Eis aí uma esfinge que conserva o seu segredo até os dias de hoje e quem conseguir dar a ela uma resposta condigna, certamente se elevará às alturas daquele Édipo que igual charada um dia decifrou.
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Enigmas á parte – que a vida desse condenado já os possui em demasia –, as outras figuras que aparecem em primeiro plano, sem nenhuma dúvida, são mulheres. Mais não fosse pelos formatos dos rostos e pela roupa que vestem, os contornos femininos nelas se notam perfeitamente. E das que se apresentam em perfil, nestas se pode perceber as salientes elevações que tanto atraem os olhares masculinos para seus corpetes.
A primeira delas, bem em frente ao condenado da direita, na visão de quem olha o quadro de frente, tem a expressão de quem perdeu alguém muito querido, mas malgrado a tristeza que parece sentir, dá-nos a impressão de estar conformada. Talvez esteja pensando que a vida continua e tudo que ficará da magnífica aventura espiritual vivida com aquele homem será uma crença que irá acompanhá-la pelo resto do tempo que lhe cabe viver. Essa crença lhe servirá de suporte para tudo que vier a fazer e pensar daí em diante. E ela, que compartilhou e ajudou com seu envolvimento espiritual e ajuda material esse empreendimento que não termina agora, com a morte do seu protagonista principal, mas começa com ela, sabe que onde essa história for contada, seu nome será também lembrado, e essa será a sua recompensa.
Talvez não seja mais do que isso o que almeja essa Joana – pois esse é o seu nome –, mulher de fartos cabedais e cabeça muito bem feita, esposa de um procurador do rei Herodes. Essa informação sobre a identidade e a qualificação dela nos leva a desconfiar que o condenado não tinha, realmente, como deu a entender o praefectus Pilatos, qualquer intenção hostil contra as autoridades constituídas e foram mesmo os enciumados anciãos do Conselho judaico, por motivos particulares e temores coletivos, que perpetraram a sua condenação.
De qualquer modo, para Joana, o dinheiro que despendeu nesse projeto, ajudando a sustentar com as suas posses o homem que acabou de render o seu espírito na cruz, foi bem empregado. Não teria ela feito melhor investimento se o tivesse gasto com um professor de filosofia, desses que os abastados cidadãos do império gostam de contratar para preceptores dos filhos e conselheiros próprios, pois o que ouviu da boca do condenado será a sabedoria que encantará as próximas gerações e feliz dela que a ouviu de primeira mão. E para que tal informação não venha a criar nenhum constrangimento aos que se derem ao trabalho de ler esta crônica, é preciso que se diga que essa prática – de mulher ajudar com suas posses um homem que faz trabalho seme-lhante ao desse condenado – era coisa muito natural nos tempos dos quais se fala. Isso não é este cronista que sustenta, mas um dos quatro que tiveram seus relatos avaliados como confiáveis. Há, portanto, que se dar crédito á essa informação, já que a sua reportagem ( dizem) foi uma das quatro que saíram voando sozinhas do meio de uma pilha de um milhar ou mais, quando os doutores da Igreja que se formou em seu nome, reunidos em Nicéia, trezentos e tantos anos depois para avaliar o que era real e o que era fantasia em relação à história desse condenado, estavam fazendo a seleção dos textos. Disse esse cronista ( que era doutor, e foi dos primeiros a fazer um relato acerca da experiência singular desse homem ), que muitas mulheres o seguiam e o serviam, e isso, não raras vezes, acabou sendo motivo de escândalo até entre os seus próprios discípulos, pois tal comportamen-to não era de uso comum entre eles.
Mas quanto à questão em si, não é de se espantar. Afinal de contas, professor ele era, e lícito é também que suas aulas dessa forma se pagassem, já que digno é o operário do seu salário. Isso foi o próprio quem disse. E ele, mais que ninguém, deu provas da maior decência nessa questão, pois não quis viver como aqueles indignos kions, discípulos daquele Diógenes de Tiana, que receberam a alcunha de cínicos porque desdenhavam das pessoas que se preocupavam com os bens da terra, mas viviam das esmolas que elas lhes davam, como se umas e outras não saíssem do mesmo tesouro. 
Conhecemos a hipocrisia daqueles cínicos, que semelhantes aos fariseus e saduceus que o condenaram, pregavam uma coisa e faziam outra; mas quanto a esse homem que pende da cruz, dessa falta não pode ser acusado. Segundo aqueles que o conheceram e com ele andaram em sua peripatética vida missio-nária, esse condenado era um sujeito simples e folgazão, que bebia e comia com todos que se propusessem a dividir com ele a mesa, sem fazer distinção de classe, sexo ou fortuna. Da sua comensalidade participavam gentios, prostitutas, publicanos, pecadores de todo tipo e padrão, e muito por isso também, atraiu ele o ódio dos bem nascidos da terra, estirpe altiva e orgulhosa de suas ancestralidades – que assim chamamos para não dizer preconceitos – que evita, a todo custo, qualquer interação com a gentalha desclassificada, como se esta fosse toda constituída de leprosos e não apenas de pobres excluídos que eles mesmos ajudaram a fabricar.
E como aquele Sócrates que bebeu cicuta e renunciou à vida para não ter que contradizer a si mesmo, ele também nada recebia pelas lições que ministrava, salvo os estipêndios que espontaneamente lhe davam os seus ouvintes. E morreu tão po-bre quanto o filósofo grego, que ele certamente conhecia, pois não é possível que duas experiências tão semelhantes aconteçam apenas no terreno das coincidências.
Entretanto, como informação nunca é demais, diga-se que esse carpinteiro, que se tornou um rabi dos bons, recebia as contribuições que a ele e a seus discípulos eram dadas por quem as quisesse dar, como pagamento pelas preciosas lições de vida que ele lhes proporcionava. E quem as comprava não tinha nenhum constrangimento de dizer que bem valiam o preço que pagavam. Dessa maneira viveu ele durante todo o tempo do seu ministério; e assim também os que deram seguimento á sua missão. 
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E dessa forma continuam vivendo ainda hoje os que dizem seguir pela mesma senda. Certo é que essa se tornou profissão das mais rentáveis, mas que não se lhe impute mais esse agravo, pois ele foi muito claro em suas lições a esse respeito, e se alguém as desvirtuou a culpa não lhe cabe. “ Não queirais possuir nem ouro ou prata, nem tragais dinheiro em vossas cintas; não leveis alforjes nem duas túnicas, nem bordão; ficai na casa de quem é digno, dando de graça o que de graça eles vos derem”, disse ele aos seus seguidores. Lição de desapego mais clara do que essa, de ninguém se pode exigir.
Segundo se noticiou também, foi muito por causa das aulas que deu que ele está ali pendurado. Mas deixemos de lado essas informações, por enquanto, para que a nossa atenção não se desvie do quadro que estamos descrevendo. Registremos, no entanto, apenas por uma questão de justiça, que da mesma forma que encômios se devem ao inventor de geniais aparatos, ou ao criador de grandes obras de espírito, é justo também que se reconheça a importância dos que as financiam, porquanto sem esse profano, mas necessário suporte, não há gênio nem santo que obre de tal sorte. Façamos, destarte, a essa Joana, esposa de Cuza, o procurador de Herodes em Cafarnaum, e aos demais mecenas que o suportaram em sua obra, essa justiça. E que ela fique aos pés da cruz sem mais referências, porquanto isso é tudo que ela espera, embora muito mais que isso certamente mereça essa mulher. Pois ela seguiu o homem que acaba de expirar, por todo o tempo em que ele realizou a sua missão e não o aban-donou, como fizeram aqueles que se diziam seus discípulos e lhe juraram fidelidade até a morte, mas nas primeiras dificuldades que surgiram se dispersaram como um bando de covardes, havendo até quem negasse que o conhecia.
Diga-se, a bem da verdade, que mais tarde se arrependeram e recuperaram a coragem perdida nessa hora, dando continuidade á sua missão – alguns deles até morrendo de morte igual á do seu líder –, mas nesse momento nada se pode dizer que os abone. Eles fugiram e o abandonaram á própria sorte. Isso é que está reportado por todos quantos escreveram sobre esse assunto e nós aqui só estamos corroborando esse fato.
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Em frente à piedosa Joana podemos ver uma jovem sustentando o corpo de uma mulher desfalecida. Essa, que se apresenta com a cabeça descoberta, mostrando os louros cabelos enrolados e presos no alto da cabeça é Maria de Betânia, jovem donzela das cercanias de Jerusalém, irmã de Marta e Lázaro, pessoas que faziam parte do círculo de amizades do condenado.
Na casa deles passou os derradeiros dias da sua vida e conta-se que foi com esse mesmo Lázaro que ele praticou a maior de suas façanhas. Dizem que esse era um amigo a quem ele muito amava, o que damos por acertado, porquanto, como veremos, havia laços muitos fortes a ligá-los. Lázaro havia morrido de morte natural e ele o resgatou para o mundo dos vivos, quatro dias após o mesmo ter sido encerrado em seu túmulo. Considerando a tradição mantida pelos judeus com relação aos defuntos, é possível imaginar a comoção que esse condenado deve ter provocado nos seus conterrâneos com esse ato. Pois se até o simples toque em um cadáver já era considerado ato impu-ro, imagine-se o que pensar de quem levanta do túmulo um corpo que para lá já havia sido despachado com todas as formalida-des exigidas pela tradição. Certo que há quem sustente que esse foi um ato puramente ritual, ou de mera simbologia iniciática, semelhante aos que os praticantes dos Antigos Mistérios costumavam fazer no exercício das suas misteriosas liturgias, ou seja, uma ressurreição simbólica, em nível de espírito, aplicável a quem morre para uma vida anterior e renasce para outra, como será prometido com muita ênfase pelos seguidores desse condenado aos que adotarem a doutrina que ele andou pregando pela terra.
E muitos há que simplesmente negam que tal acontecimento tenha realmente se passado. Alegam ser muito estranho que apenas um dos cronistas tidos como sérios o tenha registra-do, e os outros que mereceram igual distinção sequer o tivessem mencionado, dada a importância de um prodígio dessa ordem. A objeção merece a devida consideração, mas desse condenado, em especial, nada que se diga pode ser desprezado e tudo que se possa dizer jamais será bastante. Assim, se ele podia mesmo ressuscitar os mortos, essa é uma dessas questões cujo entendi-mento jamais poderá ser dado como pacificado. Aqui cabe o velho ditado, que foi criado justamente para evitar a proliferação dessas especulações inoportunas, que diz: para quem não acredita nessas coisas nenhuma explicação é possível; para quem acredita nenhuma explicação se faz necessária. 
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Mas dessa Maria de Betânia, o que ninguém ainda contou é que essa bonita moça amou, com amor de mulher, amiga e irmã, o homem crucificado no meio dos dois outros; só não teve a felicidade de consumar seu amor, porquanto o destino – ou quem quer que o controle – assim não quis que acontecesse. Entretanto, para quem quiser saber, diremos á boca pequena ( por que esta é informação que pouca gente possui ), que houve um tempo, na vida desse sentenciado, que ela foi sua noiva prometida e certamente com ele teria se casado não fossem os acontecimentos que sobrevieram. Eles fizeram com que ele se afastasse dela, mas de forma alguma essa separação afetou o amor que ela sentia por ele. Só a guisa de informação, para que não se precise voltar a esse assunto depois, reportamos que aos vinte e cinco anos, quando o condenado obteve sua licença de rabino, ele precisava casar-se para assumir um posto em uma sinagoga qualquer como professor ou ministro. Essa era a lei do país – que seus pastores fossem casados –, e a ela não podiam se furtar aqueles que almejassem tais empregos públicos, por sinal os mais prestigiados e rendosos numa terra onde a religião e a lei se fundem numa única autoridade. Maria de Betânia, então com tenros dezesseis anos, foi a noiva escolhida, mas por razões que agora não vêm ao caso, o condenado preferiu renunciar à concorrida carreira de rabino para tornar-se um professor itine-rante, desses que andam pela terra dos judeus ensinando o que pensam ser a vontade do Deus local. Isso não é fato incomum, pois desde tempos já perdidos na memória, essa tradição se cumpre entre os judeus. Sempre que as coisas não andam bem na sua sociedade, alguém há que se levante como oráculo para lembrar aos rebeldes descendentes do patriarca Abraão as suas obrigações para com a Divindade que os escolheu para ser o seu povo preferido. E dizem que ninguém, melhor que ele, deu conta dessa tarefa inglória de alertar os desgarrados filhos de Israel para voltarem para o aprisco do seu pastor antes que a tempestade fosse desencadeada. Sucesso não teve nessa missão em particular, mas não sendo essa a sua missão principal, não há que se lhe imputar nenhum agravo por conta disso, por que resultado muito mais importante que esse ele obteve em sua obra. 
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Quanto à Maria de Betânia, muito sofreu ela com essa decisão, mas, ao final, compreendeu que havia coisas maiores a serem atendidas. E que o seu amado precisava obedecer a um chamado, cuja voz falava mais alto do que aquela que saia do seu coração. E assim ele se foi. Por mais de cinco anos ela não o viu, embora ouvisse falar que ele esteve vivendo alguns anos como discípulo de um pregador conhecido como “João, o Batista,” anacoreta irascível e mordaz crítico das licenciosidades que o povo de Israel havia adotado, por conta de tantos anos de interação com estrangeiros. E que depois abandonara o círculo do Batista e montara escola própria, percorrendo a Galiléia e arredores, ensinando uma doutrina nova e fazendo prodígios de espantar quem os presenciava.
Foi assim que ela perdeu seu casamento e seu amor de homem. O casamento, ela o perdeu para a missão que ele se propôs cumprir; o amor perdeu-o para outra mulher, mas segundo se sabe, Maria de Betânia nunca deixou de amá-lo por uma coisa ou por outra, como seria de esperar se o seu fosse um amor qualquer e ela uma mulher comum. Preterida como esposa, tornou-se sua discípula, como tantas outras mulheres que o seguiam. Ao amor romântico somou a veneração da discípula pelo mestre, da irmã pelo irmão, da amiga pelo amigo, e assim pode-se dizer que se houve alguém que um dia experimentou todos os tipos de amor – que enfim é o verdadeiro Amor –, essa criatura foi a jovem donzela de Betânia.
Destarte, a preterição não lhe fez nascer a mágoa nem o ciúme. Isso é tão verdadeiro, que quando ele voltou a Jerusalém para dar cumprimento final à sua missão foi na casa dela e de seus irmãos que preferiu ficar, enquanto os preparativos para o desenlace final da sua estratégia eram feitos. Sintomático e revelador é esse comportamento, porquanto muitos outros discípulos e correligionários o condenado tinha em Jerusalém, bem mais ricos e importantes que a família dessa moça, mas o coração tem as suas razões, e estas, nos momentos de extrema sensibilidade é que norteiam as nossas ações. Disso sabemos por que seus passos na cidade santuário, nesses últimos dias, foram melhores reportados do que toda a sua vida anterior. Se das coisas que fez e disse não se encontra concordância entre os repórteres oficiais, dessas suas aventuras em Jerusalém, nessa semana consagrada ao Pessach, todos eles praticamente escreveram as mesmas coisas, o que nos dá uma indiscutível confirmação de fontes para sustentar a veracidade dessas informações.
Com o que hoje temos à mão é possível entender por que ele preferiu ficar hospedado na casa de Maria, Marta e Lázaro, na fatídica semana que antecedeu sua entrada triunfal em Jerusalém, quando poderia ter se homiziado entre os seus próprios parentes e amigos, cujos haveres e patentes eram bem mais fartos e importantes do que os dos seus amigos de Betânia. Mas não o fez, e dessa forma se explicam muitas coisas que estavam pendentes nessa história. 
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Neste quadro que estamos pintando em nossa imaginação, Maria de Betânia parece estar a dividir com uma mulher desfalecida uma dor sem remissão. Seu olhar é de quem vê a esperança de consumar um grande amor se esvair sem a mínima chance de realização. Sabemos que dor maior não existe do que a certeza da perda irrecuperável; e a desesperança que acompanha quem a sofre, na certeza de que nada poderá substituir o que foi perdido, é um tormento que nem a mais estóica das criaturas consegue esconder. Talvez por isso a jovem tenha desviado o olhar da cruz e procure ocupar-se com a mulher desfalecida, quem sabe buscando no amparo ao próximo o consolo prometido no conhecido adágio que diz que o coração não sente o que os olhos não vêem. Nas crônicas que se escreverão mais tarde sobre a vida desse homem, cuja morte todas elas chorarão, essa jovem de cabelos louros e delicadas feições será citada apenas como aquela que escolheu a melhor parte. E essa parte será entendida aqui como a que cabe à discípula que se apaixonou pelo seu mestre e carregará pela vida inteira um amor que sabe jamais passará de contemplação e êxtase, mas que nunca deixará de ser verdadeiro amor, ainda que apenas no espírito receba as compensações que na carne lhe foram negadas.
No caso desta moça, sabemos, no entanto, que esse sentimento representa muito mais, e se não exploramos com maior profundidade essa informação é pelo respeito que temos para com a sua dor. Por isso, mesmo tardio, justo reconhecimento lhe faremos se reportarmos que ela se manteve fiel até a morte a esse amor, e nenhum outro homem jamais lhe veio disputar o coração com a lembrança do condenado. Adiantando-nos um pouco nos fatos, para que não precisemos voltar a eles em outros momentos desta crônica, informaremos que ela, Lázaro e Marta, seu irmão e irmã, respectivamente, deixaram a aldeia de Betânia. Isso ocorreu logo após a alvissareira notícia – que depois de três dias se apregoou por toda Jerusalém e adjacências – de que aquele condenado que pendia na cruz, morto, estava, na verdade, bem vivo. E isso, dizem, ela e as outras mulheres que estavam com ela naquele momento crucial viram com os próprios olhos e testemunharam a quem as quisesse ouvir. Certo é que os anciãos do Conselho logo se puseram a campo para desmentir a bizarra notícia, mas o fato é que não tiveram nenhum sucesso nessa empreitada e a coisa tomou um vulto que nenhum deles jamais teria previsto. E esse foi o começo de tudo.
Mas essa também é outra história que um dia poderá ser contada com mais pormenores. E quando o for certamente contribuirá para aclarar muitos fatos, cujos contornos ainda não puderam ser definidos até agora em razão dos interesses que se desenvolveram em volta desse evento. Fiquemos, por enquanto, com a imagem dessa moça que, segundo se conta, foi uma das primeiras a vê-lo com vida depois de morto. Nunca mais se falou dela nem de seus irmãos depois disso, conquanto uma crônica, apócrifa, diga-se de passagem, escrita muito tempo depois desse fato, afirmasse que as autoridades judias, furibundas com a história da ressurreição desse condenado, despacharam de vez para o mundo dos mortos o seu irmão Lázaro, com a justificativa de que ele estava vivendo uma vida ilegítima, uma vez que a sua alma havia sido resgatada dos porões da morte por via obliqua, através de uma reencarnação não muito ortodoxa. Decerto que os mortos podem reencarnar, segundo se admite nas crenças dos judeus, mas não com o mesmo corpo, como ele fez com Lázaro; e aceitar uma possibilidade dessas seria uma quebra de padrão que os defensores da teoria da reencarnação jamais poderiam admitir, a não ser que o propalado fim do mundo, com o conseqüente julgamento dos vivos e mortos, como pregava João Batista, já estivesse à porta. Pois se dizia, através desse nervoso e ascético profeta essênio, que no último dia do mundo os mortos de todos os tempos e lugares se levantariam de seus túmulos, portando seus próprios corpos e consciências, como réus em um tribunal, para ouvir as sentenças a que cada um faz jus. Mas enquanto isso não ocorre, nossas almas ficarão pulando de corpo em corpo, vezes sem conta, até que esse julgamento seja marcado. E nesse ínterim, entre uma reencarnação e outra, teremos a chance de pagar os nossos pecados e conquistar um lugar no paraíso.
A reencarnação é o único meio segundo o qual se admite que um morto possa voltar a viver, segundo a crença dos judeus. Não o morto, propriamente dito, mas a sua alma. Fora desse encaminhamento, que é o único permitido pela lei que regula essa controvertida matéria, ressuscitar um defunto constitui uma usurpação pura e simples dos poderes de Jeová, a quem compete gerir esse processo. Assim, depois de matarem devidamente o ex-defunto e se certificarem de que ele estava realmente bem morto, os anciãos expulsaram do país as duas irmãs, acusando-as de fazer parte de uma seita maldita que havia roubado o corpo do carpinteiro e depois espalhado a infame notícia da sua ressurreição. Para onde foram ninguém registrou nem se fez recenseamento posterior, de sorte que essa informação também está perdida até os dias de hoje. Dizem que elas, depois de passarem por várias cidades do Império, dando testemunho das maravilhas que presenciaram, desembarcaram nas ilhas britânicas e fizeram lá um belo trabalho de evangelização. Depois foram terminar suas vidas em terras lusitanas, onde até hoje seus nomes são muito venerados. 
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Essas também são informações cuja veracidade não se pode mais confirmar, o que não impede, no entanto, que mais uma vênia se faça à meiga donzela de Betânia antes de encerrar o seu papel nesse drama. Registre-se que ela foi protagonista da mais bela e terna cena de amor, e talvez a mais tocante de todas quantas forem evocadas pelos séculos sem fim em que a história desse condenado for contada. Pois foi essa meiga donzela que lavou com suas lágrimas e enxugou com seus loiros cabelos aqueles pés que agora pendem, dilacerados, da cruz. Isso ocorreu em uma das últimas noites em que ele passou em sua casa, em Betânia, após um dos mais belos e significativos discursos que ele fez a um grupo de ouvintes que lá se reuniu para a sua palestra. Dizem até que Marta, a irmã dela, ficou tremendamente enciumada e reclamou com ele pelo fato de Maria ficar aos seus pés enquanto ela era obrigada a fazer as tarefas mais pesadas, que consistia em servir a mesa e cuidar para que os presentes tivessem o devido conforto. “ Não se aborreça com sua irmã,” disse ele à Marta, “pois Maria escolheu a melhor parte”. Com isso quis dizer que o serviço que sua ex-noiva lhe prestava, cuidando dele e ouvindo suas lições, era muito mais importante do que qualquer outro cuidado naquele momento.
Pode alguém imaginar cena mais bonita e marcante do que essa, que foi protagonizada por Maria de Betânia? Ainda que, mais tarde, algum mal informado cronista tenha dito que esse ato foi praticado por uma não identificada pecadora, que apareceu subitamente no local em que ele dava a sua palestra, afiançamos que tal cena, na verdade, pertence à ela e a nenhuma outra mulher, pois ninguém, a não ser, talvez, aquela a quem ele efetivamente amou como a mulher da sua vida, poderia ter assumido esse papel. Essa é a glória que a jovem donzela de Betânia levará para sempre e ninguém poderá tirar dela.
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O JOVEM JESUS QUE OS EVANGELHOS ESCONDERAM 
João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 22/04/2011
Reeditado em 09/05/2011
Código do texto: T2924853
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