Morte e vida severina: aspectos temáticos e formais
Morte e vida severina , produzida entre os anos de 1954 e 1955 pelo genial João Cabral de Melo Neto, enfoca a trajetória de um retirante nordestino em busca de uma vida melhor no litoral, em Recife.
Em um país ainda dominado pelo latifúndio, salta às vistas a atualidade da problemática apresentada no que diz respeito à injustiça na distribuição de terras. Na obra, ilustra essa afirmação a passagem na qual o retirante Severino se depara com o enterro de um homônimo morto vítima do conflito agrário: seu crime fora ter uns hectares que geraram cobiça dos grandes senhores da terra.
Severino pergunta sobre o destino do matador, e a resposta só vem a confirmar a impunidade, que, ainda hoje, teima em afrontar nossas consciências: “ Mais campo tem para saltar, /irmão das almas, /tem mais onde fazer voar / as filhas-bala.” Restou ao menos favorecido a morte injusta, enquanto as “filhas-bala” (uma bela neologia!) continuarão seu ofício de matar...
De humildes coveiros, esperava-se solidariedade com a causa dos marginalizados. Em sua viagem, entretanto, Severino retirante, quando chega ao Recife, ouve de um deles que para a gente do Sertão “ Na verdade, seria mais rápido / e também muito mais barato / que os sacudissem de qualquer ponte / dentro do rio e da morte”. E o outro continua: “ O rio daria a mortalha / e até um macio caixão de água; /e também o acompanhamento / que levaria com passo lento / o defunto ao enterro final”, passagens que revelam, com certa dose de humor negro, uma profunda falta de consciência quanto às causas daquela penosa situação.
Salta às vistas, sem dúvida, a mensagem de esperança revelada pelo nascimento do filho de seu José, mestre Carpina; a explosão da vida, ainda que severina, compensa todos os sacrifícios. É bem possível que o retirante, cuja decisão final não se explicita, tenha abandonado o trágico projeto de suicídio.
Ao observador atento, por outro lado, não escapam os requintes linguísticos de que Severino se vale, certamente um empréstimo da cultura do poeta. Ao contrário de Fabiano, de Vidas Secas, “um sujeito que não tinha nascido para falar certo”, Severino e outros personagens da obra se identificam, por exemplo, muito bem com a sintaxe culta dos pronomes relativos.
Certamente que os Severinos do Nordeste, na sua simplicidade, não diriam “vivendo na mesma serra / magra e ossuda em que eu vivia”, com a preposição “em” antecipando-se ao pronome relativo. Quando chega à Zona da Mata, a ilusão do retirante se desfaz ao ouvir, no enterro de um trabalhador de eito: “ Essa cova em que estás, / com palmos medida, / é a conta menor/ que tiraste em vida”.
Observe-se, ainda, a sofisticação no falar de um dos coveiros: “Gorjetas aqui, também, / só dá mesmo a gente rica, / em cujo bairro não se pode / trabalhar em mangas de camisa”, com a construção “em cuja”, de muito pouca frequência na linguagem falada. Vejam-se outros dois trechos: “que é a morte de que se morre / de velhice antes dos trinta”, em discurso de Severino quando tenta individualizar-se, logo no início da obra” e “é boa essa profissão / em que a comadre ora está?”, numa pergunta de Severino à mulher “rezadora titular”, a quem ele se dirige em busca de trabalho.
Também não faltam no texto de João Cabral construções com o verbo haver em sentido existencial, como em “há sempre menos trabalho / e gorjetas pelo serviço”, na fala de um dos coveiros; registre-se também o emprego de pronomes oblíquos em função de objeto como na passagem “e vejo-o ainda maior / pelo imenso lamarão”, na qual uma das ciganas prevê o destino da criança recém-nascida.
Conforme se lê no site de Frederico Barbosa, o criador do auto de Natal se surpreendeu com a acolhida que o texto teve nos meios intelectuais, o que chegou a confessar a Vinícius de Moraes, quando o poeta se disse maravilhado com a obra: “Vinícius, eu não escrevi Morte e vida severina para intelectuais como você (...) Escrevi para os sujeitos analfabetos que ouvem cordel na feira de Santo Amaro, no Recife".
Parece-nos, portanto, cabível concluir que as inúmeras concessões do autor à sintaxe culta tenham, talvez, contribuído para a aceitação da obra entre os eruditos sem lhe diminuir a profunda identificação com o povo distante das letras, o que, sob certo sentido, denuncia o fascínio que a língua culta exerce sobre aqueles que não a dominam, mas são capazes de intuitivamente compreendê-la como precioso veículo na descrição de suas mazelas.