O DESAPARECIMENTO DA INFÂNCIA

O professor titular do Departamento de Comunicação da Universidade de Nova York, Neil Postman, retrata neste livro, não só o tema determinado como o desaparecimento da infância, como também, de forma clara e concisa, documenta historicamente o surgimento e a consagração da infância como etapa importante do desenvolvimento humano.

Postman mostra claramente, que a infância como fase de desenvolvimento humano, da forma que a vivenciamos hoje, é uma descoberta recente, que surgiu na Renascença, após a revolução promovida pela palavra impressa que socializou a necessidade de alfabetização e hierarquizou o conhecimento por faixas etárias.

Essa demarcação do território do conhecimento dificultou o acesso a diversas etapas de informação à criança, de forma a ‘excluí-la e protegê-la’ de conhecimentos que só se destinava ao homem adulto, dando origem à infância.

A criança como é vista hoje não existia na idade média. Naquela época, eram vistas como homens em miniatura e eram expostos ao convívio de todo tipo de comportamento adulto, desde palavrões, assédios sexuais, enforcamentos e trabalhos forçados. Na outra extremidade, no entanto, haviam os homens-infantilizados, incapazes de se desenvolverem plenamente pela falta de acesso ao conhecimento escrito.

Mas não foi sempre assim. Na Grécia antiga e depois no Império romano, as crianças gozavam de tratamentos diferenciados e havia uma certa preocupação com sua formação moral, embora o conhecimento da linguagem escrita não fosse acessível a todos.

Com a invasão dos bárbaros do norte, o colapso do Império Romano, o sepultamento da cultura clássica e a imersão da Europa na chamada Idade das Trevas e depois na Idade Média, o conceito de criança deixou de existir por mais de trezentos anos.

No período a qual permaneceu extinta, a infância foi vítima de quatro aspectos importantes: o primeiro é o desaparecimento da capacidade de ler e escrever da população, devido ao uso restrito do alfabeto grego. O segundo ponto é o desaparecimento da educação, restrita aos escribas. O terceiro é o desaparecimento do sentido de vergonha, que com isso, passou a expor a criança a todo tipo de comportamento adulto, sem restrição. E o quarto, conseqüência dos três primeiros, é o próprio desaparecimento da infância, na idade média.

Com a invenção da tipografia de caracteres móveis, por Gutenberg, houve uma revolução e disseminação de toda forma de conhecimento escrito, através da publicação de livros e jornais, que determinou a necessidade de se criar escolas para dar aos jovens uma nova perspectiva do saber e do desenvolvimento humano.

O surgimento do conceito de criança, segundo Postman, trouxe consigo, inevitavelmente, o conceito de adulto e suas definições: adulto é aquele que possui o conhecimento. Criança é aquele que, protegido, ainda não alcançou o desenvolvimento necessário para apossar-se de todo conhecimento exposto ao adulto.

O conhecimento descrito nos livros era facilmente ordenado, de forma a ocultar dos mais jovens os segredos pertinentes ao mundo dos adultos, criando assim, etapas de desenvolvimento onde os jovens tinham acesso, na grande maioria das vezes, ao saber destinado à sua faixa etária. Surgiu assim o conceito atual de criança, jovem e adulto. Ser adulto significa então, ter acesso a segredos culturais codificados em símbolos não naturais.

No mundo letrado as crianças precisam transformar-se em adultos, apossando-se paulatinamente dos significados desses símbolos, de forma a terem ‘o tempo suficiente para deglutirem’ esse significado, criando assim, quando adultos, suas próprias convicções a respeito do conhecimento.

No mundo não letrado não há distinção de conhecimento, portanto, não há distinção entre criança e adulto, visto que, não há segredos a serem desvendados: a criança vivifica constantemente o mundo dos adultos, sendo ignorada por eles, como criança, deixando assim de existir.

O conhecimento exposto à criança através da forma escrita, paulatinamente ordenada, desenvolve sua capacidade de reflexão e de imaginação, criando um mundo particular, onde conhecer os segredos dos adultos aguça a curiosidade e cria o conceito de vergonha, sem o qual, não existe infância.

No período de 1850 a 1950 a infância se fortalece e se define, ocupando seu lugar na família e na sociedade.

No entanto, Postman defende neste livro a idéia de que, nesse mesmo período a ambiência simbólica que deu vida à infância começou a ser desmontada vagarosa e imperceptivelmente, determinando o início do seu fim.

Mais uma vez, a infância está desaparecendo. Postman aponta como ponto principal uma outra revolução: a da comunicação elétrica/eletrônica, iniciada com o telégrafo de Samuel Morse, onde a informação ganhou a velocidade da luz, culminando na televisão e em todos os meios eletrônicos de comunicação hoje existentes.

Até então, o conhecimento disseminado nos livros obrigava a criança a desenvolver sua capacidade de reflexão para compreendê-los, de forma a utilizar-se de todos seus aparatos de percepção e raciocínio lógico, numa forma sequencial e ordenada, distribuídos ao longo da vida por faixas etárias.

Isso não acontece quando uma criança assiste televisão. A TV utiliza-se do processo visual, o qual não necessita desenvolver nenhuma forma de conhecimento para usufruí-lo. Ela entrega tudo pronto, numa quantidade e velocidade em que é impossível para o ser humano criar e desenvolver qualquer conceito a respeito do que foi mostrado.

Outro ponto crucial é a não determinação de que tipo de conhecimento é apropriado para a criança ou para o adulto, eliminando assim, ‘os segredos’ dos adultos, sobre os quais as crianças só tinham acesso no decorrer do seu crescimento intelectual, não distinguindo o mundo dos adultos do mundo das crianças. Sem essa distinção, perde-se novamente o conceito de infância.

Postman exemplifica muito bem esse desvendar dos mistérios do adulto, pelos meios eletrônicos de comunicação quando afirma: que a mídia desempenhou importante papel na campanha para apagar as diferenças entre a sexualidade infantil e adulta. A televisão, em particular, não só mantém toda a população num estado de grande excitação sexual como também sublinha uma espécie de igualitarismo do desempenho sexual; de obscuro e profundo mistério adulto o sexo é transformado em produto disponível para todos – digamos, como um anti-séptico bucal ou desodorante para axilas.

A obrigatoriedade do consumo infantil, imposto pelos apelativos comerciais, os jogos de sedução, a exclusão do sentimento de ingenuidade e, por conseqüência, a adultificação da criança mostrada como pequenos adultos em diversas propagandas, a abolição tanto da moda infantil como também das canções e brincadeiras inerentes à idade, a ausência da mãe na educação dos filhos – imposta pelo mercado de trabalho feminino - a participação cada vez maior de menores em crimes, o constante crescimento do uso de drogas e de armas de fogo entre os mais jovens, a antecipação da puberdade feminina e a precoce iniciação sexual, a institucionalização e a profissionalização dos jogos infantis, a homogeneidade da linguagem, entre tantos outros motivos, comprovam que a infância está desaparecendo.

No entanto, não se faz necessário sermos doutores, psicólogos ou pedagogos para termos tal percepção. Basta-nos abrir as janelas e termos um olhar um pouco mais aguçado para nossas crianças para compreendermos o quanto as adultificamos com nossos atos cotidianos, ou até mesmo, e principalmente, com nossa indiferença.

“Ouça o silêncio daqueles que te cercam;

Há nele um grito que ecoa.

Ao ouvi-lo, entenderás como deves proceder em teu auxílio.

Caso não o ouça, faças tu o silêncio necessário.”

(Nivaldo Donizeti Mossato)

POSTMAN, Neil. O desaparecimento da infância. Rio de Janeiro: Graphia Editorial, 2006