TEIA LITERÁRIA 3: RESENHAS
Fernando de Castro Branco
Universidade do Porto
MELÍCIAS, Jorge. Disrupção. Maia: Cosmorama Edições, 2009).
Jorge Melícias e a Ciência Estrita do Relâmpago
Toda a poesia de Jorge Melícias reencontra-se agora em sua actualíssima plenitude no volume disrupção (2009), obra magnífica trazida à luz com a qualidade e a sobriedade que a editora Cosmorama tem habituado os leitores de poesia. Um pouco mais de uma década de trabalho minucioso no duro material da linguagem, percurso estético e ascético, numa concepção profundamente eivada de uma ética obsessiva e radical do acto poético. Teia de linguagens escrupulosamente vigiadas por uma voz uníssona, centralizadora, onde a original fonte se liberta num delta de significações perfeitamente assimiláveis e identificáveis no diálogo que entre elas continuamente empreendem. Assinale-se que Jorge Melícias é um poeta que sobressai na nitidez da sua originalidade criativa, possuidor de um território poético claramente demarcado no interior da nova geração da poesia portuguesa, nomeadamente dos finais da última década do séc. XX e desta primeira década do séc. XXI. Destaca-se o autor de agma (2008) por um dizer pessoal, idiossincrático, fortemente condensado, de um minucioso labor executado no interior dos filamentos da palavra, verdadeiramente submetida à acção de uma espécie de nanotecnologia da escrita, circulando activa e invisível nas nervuras das sílabas, nos ritmos dos silêncios. Poeta de raiz simbolista, de um simbolismo reactualizado à luz das lições estéticas, éticas e filosóficas dos sobrepostos segmentos de modernidade que contaminaram o final do séc. XIX e séc. XX nos espaços português e europeu, e reencarnando a atitude decadentista inscrita igualmente na transição dos séculos referidos, para a repor e refazer nesta indecisa e ainda imponderável transição entre os séculos XX e XXI. Recolhe dos novos tempos sobretudo a lição vitalista que o inscreve como um poeta do seu tempo e traz na sua escrita a marca de quem assimilou as vanguardas pelo lado de dentro, sem que aí se tivesse deixado bloquear no pântano de heteróclitas e anódinas experimentações que o levassem a destino algum, mas recolhendo na sua bagagem de escritor as lições da ruptura e da continuidade, plasmadas na viva consciência de que nenhuma aventura terá sucesso no desbravar de caminhos novos sem os mapas orientadores desenhados pela cartografia das lições passadas.
De novo, neste volume, só, e não é pouco, o excepcional último livro escrito pelo autor – que seguindo a ordem inversa do tempo de publicação aparece a abrir o conjunto - sob o subtilíssimo título de agma. E em relação a este recentíssimo livro reincide na exploração de mais uma ínvia possibilidade rumo a uma suicidária ascese do dizer, bem como na exploração imagética e semântica das profundezas da palavra.
Os seus livros assumem a textura e a consistência de peças inteiriças, fundidas unissonamente em aço carburado à mais alta temperatura, redondas e lisas, sem encaixes ou costuras enxergáveis a olho nu algum. Parece pois inconsequente tentar explicar os processos oficinais da mão incansável e demiúrgica que os originou. Seria como se na verdade se agitasse a infrutífera chama de candeias nas margens de um sol a prumo, ou na órbita de uma incandescente cratera cósmica. Ler simplesmente. Contemplar estes feixes de partículas poéticas intensamente carregadas de significância, ou o rasto inflamável de uma chispa atómica em resultado do atrito originado pela força de impacto entre o objecto e a superfície de um mundo, que à sua maneira não deixa de representar e modelar. Deixe-se o leitor arrastar por esta exuberante imaginação sígnica e reflexiva que lenta e paulatinamente engendra a teia movente da expressão e extrai o poema intacto da pedra bruta de uma linguagem indivisa. Não é Jorge Melícias um poeta da comunicação, lá isso não. Expressa-se, deflagra o sentido intensidade a intensidade, numa onda verbal que irradia de um núcleo combustível e iridescente. Mas atenção, não se depreenda desta constatação que o autor de a luz nos pulmões (2000) é um puro esteta, entrincheirado na sua solitária torre de uma qualquer alienação umbilical, o mundo está verdadeiramente ali, fragmentado, partido, decomposto, retomado e recomposto, aberto ao bisturi letal, dissecado nas suas mais obscuras vísceras, lançando sobre as suas chagas purulentas a endoscopia regeneradora de seus raios infra-vermelhos ou violetas. “Só até certo ponto serei em relação ao que faço um sujeito ausente. Estão lá todos os meus fascínios, todas as minhas obsessões e medos, tudo aquilo que, em suma, me escreve”, (Cosmorama 07, p. 10), confessa o poeta, assim no-lo apresentando em suas nuances expressivas, intermediando o visível, o dizível, e o lisível. Como toda a verdadeira poesia, também esta segrega o real nas suas entranhas, sem necessidade de regressar a lugares de onde, evidentemente, nunca partiu.
É visível que de livro para livro vai paulatinamente Jorge Melícias ultrapassando, como se ainda fosse possível, mais uma lábil fronteira rumo a um dizer essencial, tão desnudo e vibrátil que certamente um dia o arrostará a encontrar-se face a face com a noite da linguagem, reflectindo-se no vidro do silêncio enquanto rosto. De há muito, aliás, o poeta parece pressentir essa voz que o arrasta rumo à cegueira, à brancura, ao nada, ou a uma ausência de dizer. Já nos primórdios da sua escrita conclui que “ a cegueira é ainda uma forma de ver” (iniciação ao remorso, 2004, p. 150) porque também as palavras “são por dentro da ideia” (agma, 2008, p. 12), numa espécie de trágica serenidade, pré-babélica, ou um leito enquanto foz na qual um rio morresse por excesso de fogo, “porque todo o objecto aspira / a exceder a sua exactidão (incǔbus, 2004, p. 52). Assim, essa opção desde sempre assumida por uma poética da síntese, da essencialidade, anti-discursivista por excelência, tem-se vindo a refinar, repito, de livro para livro. Se em iniciação ao remorso, por exemplo, ainda nos deparamos com poemas minimamente expandidos, de treze, catorze ou quinze versos, nos livros posteriores a ascese verbal vai desbastando com implacável cinzel poemas, estrofes, versos. Em a longa blasfémia (2006) raro é o poema que transborda da estrofe solitária e nenhum poema excede os oito versos, exíguos de sílabas, comprimidos por dedos de uma “ferocidade acúlea” (a longa blasfémia, p. 44) ou a rigorosa necessidade de um “timbre em que deus susteve a nota”, (ibidem, p. 44) e em agma esse minimalismo atomiza-se até uma rarefacção ferozmente epigramática.
Estamos perante um poeta exemplar, enquanto exemplum, em ordem a uma coerência indomável à prova de toda e qualquer hesitação ou cedência, resistindo no seu abismo expressivo aos ventos adversos de outras arestas do Real. Homem da abstracção exacta, em tempos onde o figurativo esbatido parece tomar decisivamente a palavra, avança num fechamento estóico, minimalista e elíptico, cada vez mais cerrado a manifestar-se nos seus últimos livros, com destaque para a longa blasfémia ou agma, onde deparamos com dois autênticos poemas-livro, enquanto fluxo contínuo de uma fala impulsionada por um intacto sopro poético, que jamais cede na sua intensíssima força tensional. Minimalista nas palavras, na fisionomia do poema, na mancha gráfica, na brevidade do clarão ou do relâmpago sígnicos, que não se manifestam no espectáculo da combustão que se esvai, mas que queimam, que ferem as cordas de qualquer sensibilidade estética, submetida a esta “incisiva / mecânica dos clarões”, (a longa blasfémia, 2006, p. 34).
A coesão rítmica e significante avança no fio da mais rija têmpera, manuseando a matéria verbal através de uma acção sistemática sobre o corpo do poema, despojando-o discursiva ou narrativamente, lapidando-o até uma fria e dura luminosidade. E essa dureza vai manifestar-se na dureza do seu lirismo, em que a voz poética assume uma avassaladora durabilidade, porque dura na sua consistência e textura e porque dura no tempo da sua força significante, visto que se esculpe na memória e na sensibilidade do leitor, que desta experiência estética não tem a mínima possibilidade de sair ileso. Palavras que cortam, que rasgam, que arrastam na fúria da sua corrente os descoloridos escombros do aborrecimento e as múltiplas faces de academismos eruditos e filosofantes que hoje nos submergem, ou de lugares comuns a caminho da evaporação do próximo estio. Mas essa voz íntegra e integral parece caminhar, como se disse, na senda última do silêncio, erguendo muralhas e desencadeando ferrolhos sobre a estrutura superficial do sentido; elipse a caminho do eclipse? Disto se dá conta valter hugo mãe quando, numa entrevista, lhe coloca uma questão tão elementar quão decisiva para esta poética da luz e do abismo ou, talvez, do abismo da luz: “O rigor parece estar sempre perto do silêncio. Será possível que venha a matar o poeta, como se lhe impusesse um limite além do qual se torna impossível escrever?” (Cosmorama 07, p. 11). O autor de o dom circunscrito (2003) defende, num primeiro momento, a sua obsidiante poética da síntese, mas acaba por enfrentar na força da sua humana fraqueza a encruzilhada ostensiva:
aquilo que noutras poéticas acaba por ser um horizonte sempre sabiamente
adiado, no meu caso aproxima-se, vertiginosamente, do inevitável passo
seguinte. Por isso acredito que sim, que o silêncio, como sempre, sobrevirá.
Para mim ele acontecerá apenas mais cedo, (Cosmorama, 07, p. 11).
Todavia, sejamos claros, Jorge Melícias não é um poeta do silêncio, antes um poeta da expressão em excesso de si mesma, que implode ou “transborda para dentro”, (iniciação ao remorso, 2004, p. 148). O silêncio não é aqui a consequência de uma melodia inefável, enquanto conquista platónica de uma beleza delicada e intangível, mas o gesto ontológico de quem envereda por um caminho abrupto e se prepara para daí tirar todas as consequências. A intensidade expressiva sobe de grau em grau, a filtragem vocabular aperta-se rumo às correntes avassaladoras de um rio estreito, mas violento, embora, também aqui, mais "violentas são as margens que o comprimem".
Também noutro momento da entrevista aqui convocada o autor de a cobrição das filhas (2001) coloca-lhe outra questão que reputamos de central, como aliás já se deixou entrever pela forma como esta poética tem vindo a ser caracterizada. E essa questão tem a ver com o sangue profundo e comum que escorre no interior das diferentes artes, como já na mais remota antiguidade perceberam os gregos e a modernidade retomou com renovada ênfase: “poderias substituir a poesia por uma outra arte se tecnicamente estivesses apto para te satisfazeres com ela?” A resposta não poderia ser mais assertiva:
Absolutamente. A escultura, por exemplo. Aquilo que Chillida empresta ao
que faz é, sob alguns aspectos, semelhante ao que eu persigo na poesia. Os
seus trabalhos (e, sobretudo quando integrados na paisagem, essa dimensão
adensa-se) tratam e relacionam vários conceitos que acho fascinantes: o
movimento, a inércia e a reincidência. Como se na sua obra fosse possível
‘reduzir a fluidez à consumação do atrito' (resposta concedida durante uma
entrevista).
Jorge Melícias desvenda desta forma linear o âmago da sua laboriosa acção oficinal, da arte da sua poética: ou seja, qual poeta-escultor vai página a página erigindo o seu objecto, desbastando excessos e impurezas, esculpindo as formas das suas esculturas verbais, adequando-as e integrando-as na sua ambiência de luz e sombra, fixando o movimento e imprimindo dinamismo à matéria inerte. Como amplamente demonstra Luís Adriano Carlos ao colocar Melícias na peugada de Vulcano, deus que “pratica a refinada arte da metalurgia no centro dos vulcões”, caracterizando-o precisamente como o “ o homo artifex” aquele “que bate nas palavras com os martelos” (Carlos, Cosmorama 07, p. 14). Lendo os versos, as palavras, as sílabas rugosas, ásperas, pontiagudas, que compõem esta poesia, o leitor parece ainda surpreender o eco da maça e do cinzel modelando os excrescentes materiais da linguagem, também eles não só madeira, pedra, ferro ou aço, mas sobretudo luz, penumbra, sombra, névoa, treva, até deixar o poema enquanto objecto exposto em sua nudez violenta e radical: liso, íntegro, cristalizado no seu núcleo atómico indivisível. Mas nem só com a escultura confina a dinâmica da convergência estética de Jorge Melícias, parece óbvio que para este autor a “arte é todas as artes”, como teoriza Étienne Souriau, e parece repercutir na sua poesia essa longínqua tradição interartística que sustenta uma estreita correspondência entre os diversos materiais que suportam as diferentes artes. Parece sem dúvida revestir-se esta temporalidade poética de uma genuína espacialidade, conferindo à escrita uma dimensão icónica, fruto de uma transformação alquímica onde se imbricam indissoluvelmente o visual e o verbal, o espacial e o temporal. Além da escultura, já aqui convocada, também a pintura e o cinema são fontes onde esta poesia se vai abastecer na consecução de uma rede de equivalências onde a justaposição destes múltiplos códigos estéticos se manifesta na exuberância de imagens obscuras, indefinidas, alucinadas, na medida em que também aqui contribuem para a alucinação da linguagem, numa ilimitada tendência para o alargamento significante que acompanha a expansão dos signos.
Poética obsessiva, devoradora de luz do ponto de vista da densidade significante que não da nitidez da sua fala cristalina e epigramática que, na inversa, a exala, o poema ergue-se enquanto corpo complexo e completo, ou o grande animal aristotélico que respira o fogo convulsivo da criação: “Se o animal se ergue da vasa / há um pulmão arcaico / eriçado no dorso”, (a longa blasfémia, 2006, p. 36), ou ainda “O animal sobreleva-se no que sangra. / Canta se na raiz do bafo / surgem as mós da blasfémia. / Ele está diante do abismo / e projecta-se inteiro na heresia” (idem, p. 38).
De poucos poetas se poderá falar com mais a propósito de uma poética que se inscreve sob o regime do sublime, teorizado por Kant ou Burke, como Jorge Melícias, porque garimpeiro da tenebrosa beleza do horror, ou de uma espécie de anti-beleza enquanto “admirável impurificação”, (a longa blasfémia, 2006, p. 45), verdadeiramente disputada “nas corolas do apocalipse”, (a longa blasfémia, 2006, p. 44). Uma representação bela ainda que do feio, do grotesco ou do horrível, como preconiza Kant na sua Crítica da Faculdade do Juízo (1790). Neste óbvio fundamento, Pedro Marqués de Armas invoca “a sublimidade do horror”, (Cosmorama 07, p.17) numa linha negra que passa por Gottfried Benn, Poe, Lautréamont ou Witkin. Outras fontes poéticas, e não só, poderíamos aqui invocar, e as lições de Pessanha, já atrás entreaberta, e Herberto Helder não seriam de todo descabidas, mas não me interessa tanto ler Melícias sob o plano das influências, um dos múltiplos rios que desaguam nesta como noutra qualquer escrita, nem tampouco a referencialidade de um mundo em colapso: da violência, do crime, da indigência, das pós-modernas consciência infeliz ou náusea existencial; mas antes a da “fúria rigorosa”, de que nos dá conta Manuel Gusmão, em última análise da violência outra contra as fibras profundas do sentido, das palavras e da linguagem, revolvendo-os com um nietscheano “amor profundo pela impiedade”, (agma, 2008, p. 15). Poesia dura, subtil, peculiar, escrupulosa, resiste no rigor em que assenta a sua perfeita simetria, a sua soberba ossatura, sugerindo, mais que invocando, um tempo de náusea, de loucura, de fealdade, do crime gratuito. O poeta em três singelos versos expõe toda a sua arte poética, o mesmo é dizer o seu plano de acção e de reacção: “Procuro a antecipação de uma veia. / Disponho os ferros / sobre a premeditação do movimento” (a longa blasfémia, 2006, p.35). Depois da cirurgia a um corpo exposto, das vísceras abertas, contemplar a monstruosidade do mundo à solta em suas horríficas metamorfoses: “Vi as crias à solta pela insídia. / Na fronte ostentavam a longa blasfémia” (idem, p. 46).
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Jorge Valentim
Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)
GOMES, Simone Caputo. Cabo Verde: literatura em chão de
cultura. Cotia, SP: Ateliê Editorial; Praia: Instituto da
Biblioteca Nacional e do Livro, 2008.
Em entrevista a Mário Mesquita, nos anos 70, Eduardo Lourenço, reconhecido ensaísta português, tecia uma afirmação no mínimo instigante sobre a função do intelectual e os efeitos colaterais de sua produção textual. Segundo ele,
um intelectual age através dos seus escritos, através de pouca ou muita
repercussão que aquilo que escreve ou comunica vai tendo sobre os outros.
A função do intelectual não é tanto a de modificar a realidade, [...] mas a de
modificar o olhar dos outros e o seu próprio olhar sobre a realidade.
(Entrevista concedida a Mário Mesquita).
E tal atuação escrita efetiva circunscreve-se no universo do ensaísmo, já que, de acordo com Eduardo Lourenço, o ensaísta é aquele que se debate, por vezes, contra as suas próprias perspectivas, gerando com isso um duplo e dinâmico movimento, qual seja, o de “criar modelos abstratos de opções, de esquemas, de idéias, nos quais os outros se encontram e não se encontram, mas capazes de suscitar da parte deles um movimento de interesse.” (Eduardo Lourenço: cultura e política na época marcelista. Entrevista de Mário Mesquita. Lisboa: Cosmos, 1996, p. 80-81).
Pois bem, recupero a voz do ensaísta português como mote alheio para tecer alguns comentários sobre o mais recente livro de Simone Caputo Gomes, cujo tema central é exatamente a literatura e a cultura cabo-verdianas. E trago o alicerce lourenciano, por acreditar que suas palavras encontram ressonância no trabalho crítico de Simone Caputo. Reconhecida pesquisadora da literatura e da cultura de Cabo Verde, a professora universitária vem militando há mais de 30 anos na ampla divulgação do arquipélago em território brasileiro, bem como nos estreitos laços de ligação entre os dois países.
O seu livro vem, de certa forma, enriquecer as estantes do mercado editorial brasileiro sobre Cabo Verde, além, é claro, de fornecer um rico material não só para os estudiosos das literaturas africanas, mas também aos africanistas, de uma forma geral. Isto porque, ao lado de outros autores brasileiros, como Benjamin Abdalla Júnior, Benilde Justo Caniato, Maria Aparecida Santilli e Leila Leite Hernandez, que também dedicaram uma atenção especial a determinados aspectos do arquipélago, a escrita de Simone Caputo vem referendada pelos seus 32 anos de dedicação aos estudos literários cabo-verdianos. Seus artigos, resenhas e ensaios, além de orientações de dissertações de mestrado e teses de doutorado e seu incansável trabalho de magistério bem podem comprovar as afirmações que teço sobre o seu papel como intelectual das literaturas africanas de língua portuguesa no Brasil e no exterior.
Trata-se, portanto, de uma obra madura, resultado de intensas e sérias pesquisas sobre o tema, cuja estrutura confirma a sua competência na área dos estudos cabo-verdianos. Com uma breve chamada de Mário Lugarinho, ex-orientando da professora e, atualmente, colega seu na Universidade de São Paulo, a obra é apresentada por Benjamin Abdalla Júnior e prefaciada por Manuel Veiga. Já pelo elenco dos críticos de abertura, poderíamos dispensar quaisquer comentários sobre o mérito do livro de Simone Caputo.
No entanto, acrescento ainda que os seus ensaios (com origem e datas indicadas no final da obra) têm uma atuação vital sobre os seus leitores, no sentido mesmo como propôs Eduardo Lourenço, qual seja, de operar uma mudança significativa do olhar lançado sobre a literatura do arquipélago. Neste sentido, desviando-se do lugar comum de um certo comparatismo restrito, que minimiza as relações entre Cabo Verde e Brasil a partir de determinados títulos, como Os flagelados do vento leste (Manuel Lopes) e Vidas Secas (Graciliano Ramos), por exemplo, Simone mostra que a literatura cabo-verdiana é bem mais que tal comparatismo redutor. Talvez, e não gratuitamente, por isto, resolve a autora adotar uma feliz sub-divisão tripartida, observando aspectos geográficos e culturais que definem e estruturam o próprio alicerce identitário cabo-verdiano: o milho, o batuque e o vulcão.
Na primeira parte (“Milho: semeando caminhos”), a autora aposta numa metáfora vegetal, como que fornecendo aos escritores contemplados na seção a categoria mesmo de alimento e fundamentação primordial, posto que se constituem como matrizes da literatura de Cabo Verde. Nestas, inclui as suas próprias raízes cabo-verdianas, já que traz à tona a figura do poeta Daniel Felipe, tema de sua dissertação mestrado, publicada em Cabo Verde, em 1993. Interessante sublinhar que, ainda que voltando ao seu espaço de origem acadêmica, a autora tece um outro olhar crítico sobre os textos poéticos de Daniel Felipe, bem como as recuperações operadas sobre a obra do poeta cabo-verdiano não só pela crítica literária dos anos 70 e 80, mas também pelos discursos cibernéticos dos blogs e websites. Parece mesmo estar a autora nos indicando o caminho de que todos os discursos recaem invariavelmente no literário, e este se torna uma fonte inesgotável de recursos, quando bem compreendido e absorvido nos seus fins. Ao lado de Daniel Felipe, outra semente recuperada do intelectualismo militante cabo-verdiano é Amílcar Cabral, nome tutelar de uma postura protagonizadora dos caminhos da história, em que, segundo a autora, os “africanos recuperariam a condição de atores da História, de interventores sobre a sua própria condição de vida, capazes de formular um sentido que excedesse e transcendesse o presente” (p. 80). Sensível à poesia do líder africano, Simone reivindica a importância de Amílcar Cabral como intelectual atuante e decisivo para a liberdade, a expressão cultural e a produção da História em África pela própria África. Tanto que, para autenticar a sua investida, recupera também outras raízes, as de outros escritores da geração do poeta, que a ele dedicaram obras de teor valorativo, tais como Mário Pinto de Andrade, Gabriel Mariano e Alda do Espírito Santo, dentre outros.
O terceiro poeta da matriz cultural cabo-verdiana, resgatado do esquecimento por Simone Caputo Gomes, está diretamente ligado ao próprio berço linguístico do arquipélago. Trata-se de Sergio Frusoni, poeta que adotou o crioulo como língua literária e que, segundo a autora, “constitui o elemento cultural que mais assume, fixa e expressa os valores cabo-verdianos” (p. 98). Entendendo a necessidade de disseminar a fala poética crioula do escritor, Simone opta, muito justamente, por recuperar também a fala de Mesquitela Lima, um dos principais responsáveis pela tradução e acesso da poesia frusoniana em língua portuguesa.
Ainda integram esta primeira parte, dois outros artigos. Um dedicado ao escritor multifacetado Daniel Spínola, apontando-o como uma espécie de ressonância das três raízes culturais e literárias recuperadas anteriormente, vislumbradas a partir de sua prosa de ficção Os avatares das ilhas (2008). Nesta resenha, Simone Caputo já ensaia a sua aventura pelo território da análise comparativa entre literatura e outras artes, aqui especificamente a pintura. O último texto desta primeira parte centraliza-se no diálogo literário entre Cabo Verde e Brasil, colocando os pressupostos dos escritores da Claridade em plena sintonia com as propostas vanguardistas do primeiro Modernismo brasileiro.
Se na primeira parte, a autora demonstra a sua perspicácia na recuperação de raízes fundamentais para a matriz identitária cabo-verdiana, nas duas partes que se seguem, temos a oportunidade de observar porque a autora é um dos nomes de citação obrigatória no ensaísmo literário sobre a cultura cabo-verdiana. Se em “A poesia em Cabo Verde: um trajeto identitário” e em “Cabo Verde: mulher, cultura, literatura”, a autora apresenta, respectivamente, de maneira panorâmica a poesia produzida no arquipélago e a escrita literária cabo-verdiana de autoria feminina, nos outros dois textos que compõem a segunda parte do livro (“Batuque: encontrando som e sintonia”), encontramos um olhar cuidadoso que desenvolve as relações diretas entre literatura e outras artes em Cabo Verde, especificamente, a música e a pintura.
Neste sentido, “Ecos da cabo-verdianidade: literatura e música no arquipélago” apresenta-nos a morna como aquele “patrimônio cultural crioulo” e “traço de união dos cabo-verdianos espalhados pelo mundo” (p. 149). Com uma escrita de nítido teor ekprásico, Simone passeia da poesia de Eugenio Tavares, Corsino Fortes e Jorge Barbosa, à prosa de Manuel Lopes (“Galo cantou na baía”), Dina Salústio (Mornas eram as noites) e Fátima Bettencourt (Semear em pó), mostrando as representações literárias da mais autêntica expressão musical do homem ilhéu, a morna, além de também investir numa leitura em diálogo com as faces de Vênus, encontradas plasticamente nas obras dos autores pesquisados.
Neste caminho, é com intimidade que Simone recupera uma das raízes da literatura cabo-verdiana do século XX no seu ensaio “Manuel Lopes: o nascimento de Vênus, a gênese da cultura e da literatura em Cabo Verde”. Consegue a autora fugir exatamente dos caminhos comuns que conduzem uma certa crítica exclusivamente àquela literatura de pendor político-ideológico. Não que o conto analisado do autor (“Um galo cantou na baía”) não propicie tal possibilidade de leitura, mas, prefere a autora investir numa ponderação de caráter interdisciplinar, trazendo à tona a construção plástica e a experiência descritiva do autor claridoso na criação de espaços e situações ficcionais. É com esta preocupação que a autora procura reunir o material analisado numa linha inter-artística de análise, apostando na junção morna – ficção – pintura para comprovar que “um rico percurso da relação Morna-Literatura (associada, frequentemente, à relação Morna-Vênus) se vai assim pontuando no panorama cultural crioulo” (p. 186). Assim, da Vênus ensaiada no conto de Manuel Lopes, somos conduzidos a outras representações venusianas, como a de Dina Salústio e, sobretudo, a de Daniel Spínola, no seu conto surrealista “O púbis da Vênus”.
Por fim, na terceira e última parte da obra (“Vulcão: soltando a voz”), gosto de pensar que a autora não poderia ter outra escolha a não ser a da metáfora do espaço do fogo em ebulição, posto que a seção dedica-se exclusivamente à produção literária de autoria feminina, aliás, tema a que vem se dedicando nos últimos anos. Aqui, não apenas as vozes das mulheres se soltam, como lavas ferventes de um vulcão em erupção, mas também a voz de Simone Caputo, enquanto ensaísta e, sobretudo, como mulher que lê com declarado interesse os escritos de mulheres.
Dina Salústio, Vera Duarte e Fátima Bettencourt, portanto, são as eleitas pela autora para a construção deste cenário vulcânico. Já devidamente referendadas em ensaios anteriores, aqui, Simone expande a sua linha de pensamento sobre a produção destas escritoras, a sua importância e o espaço que elas ocupam dentro do corpus literário cabo-verdiano.
Para além dos aspectos eróticos que, inevitavelmente, as escritas de autoria feminina podem suscitar, a autora sublinha o caráter contestador que Dina Salústio, por exemplo, desenvolve em suas obras, sobretudo quando tematiza uma certa “monotonia e dureza da vida, em busca de uma solução ou possibilidade de mudança” (p. 220). Ou seja, a mulher reivindica o seu papel ativo e atuante na sociedade ilhoa, sem, contudo, ficar restrita às fronteiras aquáticas das ilhas. Entendendo a complexidade formadora do sujeito cabo-verdiano, assim também ela se assume como tal e “ultrapassa o tópico da cabo-verdianidade para adquirir um estatuto de discurso que se coloca como reflexão sobre a questão humana” (p. 228).
Da mesma forma como a autora dedica um espaço expressivo a Dina Salústio, também inscreve a escrita poética de Vera Duarte no seu território ensaístico. Sobre a autora de Amanhã amadrugada, O arquipélago da paixão e Preces e súplicas ou os cânticos da desesperança, Simone Caputo dedica dois textos. Neles, destaca a paixão maior da poetisa, leitmotiv recorrente de sua escrita: o arquipélago de Cabo Verde. Assim, temas como a cultura crioula, os vínculos irmanados de língua portuguesa, como os de Angola e Brasil, e a interlocução intertextual com as gerações claridosa à contemporânea encontram-se entre o repertório desenvolvido por Vera Duarte, que, segundo Simone Caputo, reitera a “presença marcante da mulher na construção de um mundo diferente” (p. 262), onde “tempos novos/ideais recuperados” (Ibidem) alicerçariam a sua participação inconteste.
Com Fátima Bettencourt, a ensaísta resgata a relevância do gênero da crônica, sobretudo no que diz respeito ao seu aproveitamento na recriação de um Cabo Verde, onde o “resgate da tradição” encontra-se atrelado a “o tempo e o espaço social em que se insere” (p. 267) a escritora cabo-verdiana. Procura Simone Caputo, assim, ratificar o exercício literário de Fátima Bettencourt, sublinhando que, “de fatos e feitos da vida emocionalmente despertados pela concentração pode surgir a crônica” (p. 267).
Já no limiar de sua aventura pelo arquipélago literário, Simone encerra com um instigante painel da escrita feminina, com “O texto literário de autoria feminina escreve e inscreve a mulher e(m) Cabo Verde”. Neste, a autora insere generosamente o seu leitor no território histórico, político e social ilhéu, dá um cuidadoso painel das mulheres que se inscrevem no cenário literário e, por fim, apresenta uma “galeria de cenas e de vozes da margem” (p. 284), onde as mulheres, para além dos trabalhos de ordem doméstica, tem também a responsabilidade “no resgate, na preservação e na transformação do patrimônio cultural crioulo” (p. 298).
Também como mulher, pesquisadora e professora universitária, Simone Caputo Gomes reivindica o seu espaço, não apenas nas fronteiras do arquipélago, mas também nas do próprio meio acadêmico brasileiro. Com este Cabo Verde: literatura em chão de cultura, a sua autora suscita entre seus leitores, como bem pretendeu Eduardo Lourenço, um intenso movimento de interesse. Isto porque, em grande parte, Simone Caputo, a exemplo de Vera Duarte, tem, felizmente, realizado vários voos literários “para lá do horizonte / com os pés fincados na areia” dos dois lados do Atlântico.
Encerro com uma nota pessoal. Conheci Simone Caputo, em 1990, quando aluno do curso de Graduação em Letras na UFRJ. Na época, partilhamos juntos uma mesa-redonda num grande congresso. Ela falava sobre Gastão Cruz, e eu sobre Albano Martins. Dez anos depois, em 2000, reencontramo-nos, agora, como aluno seu no curso de Doutorado em Literatura Portuguesa na UFRJ. Para além da primeira admiração, somou-se a sintonia e a afinidade pela cultura e pela literatura cabo-vedianas, apresentadas pela mestra. E, agora, quase vinte anos depois, coube-me a responsabilidade de tecer algumas linhas sobre o seu trabalho, que, com reiterado prazer e interesse, venho acompanhando, ainda que de longe, pelos seus textos produzidos e pelas suas falas em encontros e congressos. Acredito que bem pouco teria a acrescentar, o seu livro fala por si só. Bem haja, minha cara mestra e amiga.
Fernando de Castro Branco
Universidade do Porto
MELÍCIAS, Jorge. Disrupção. Maia: Cosmorama Edições, 2009).
Jorge Melícias e a Ciência Estrita do Relâmpago
Toda a poesia de Jorge Melícias reencontra-se agora em sua actualíssima plenitude no volume disrupção (2009), obra magnífica trazida à luz com a qualidade e a sobriedade que a editora Cosmorama tem habituado os leitores de poesia. Um pouco mais de uma década de trabalho minucioso no duro material da linguagem, percurso estético e ascético, numa concepção profundamente eivada de uma ética obsessiva e radical do acto poético. Teia de linguagens escrupulosamente vigiadas por uma voz uníssona, centralizadora, onde a original fonte se liberta num delta de significações perfeitamente assimiláveis e identificáveis no diálogo que entre elas continuamente empreendem. Assinale-se que Jorge Melícias é um poeta que sobressai na nitidez da sua originalidade criativa, possuidor de um território poético claramente demarcado no interior da nova geração da poesia portuguesa, nomeadamente dos finais da última década do séc. XX e desta primeira década do séc. XXI. Destaca-se o autor de agma (2008) por um dizer pessoal, idiossincrático, fortemente condensado, de um minucioso labor executado no interior dos filamentos da palavra, verdadeiramente submetida à acção de uma espécie de nanotecnologia da escrita, circulando activa e invisível nas nervuras das sílabas, nos ritmos dos silêncios. Poeta de raiz simbolista, de um simbolismo reactualizado à luz das lições estéticas, éticas e filosóficas dos sobrepostos segmentos de modernidade que contaminaram o final do séc. XIX e séc. XX nos espaços português e europeu, e reencarnando a atitude decadentista inscrita igualmente na transição dos séculos referidos, para a repor e refazer nesta indecisa e ainda imponderável transição entre os séculos XX e XXI. Recolhe dos novos tempos sobretudo a lição vitalista que o inscreve como um poeta do seu tempo e traz na sua escrita a marca de quem assimilou as vanguardas pelo lado de dentro, sem que aí se tivesse deixado bloquear no pântano de heteróclitas e anódinas experimentações que o levassem a destino algum, mas recolhendo na sua bagagem de escritor as lições da ruptura e da continuidade, plasmadas na viva consciência de que nenhuma aventura terá sucesso no desbravar de caminhos novos sem os mapas orientadores desenhados pela cartografia das lições passadas.
De novo, neste volume, só, e não é pouco, o excepcional último livro escrito pelo autor – que seguindo a ordem inversa do tempo de publicação aparece a abrir o conjunto - sob o subtilíssimo título de agma. E em relação a este recentíssimo livro reincide na exploração de mais uma ínvia possibilidade rumo a uma suicidária ascese do dizer, bem como na exploração imagética e semântica das profundezas da palavra.
Os seus livros assumem a textura e a consistência de peças inteiriças, fundidas unissonamente em aço carburado à mais alta temperatura, redondas e lisas, sem encaixes ou costuras enxergáveis a olho nu algum. Parece pois inconsequente tentar explicar os processos oficinais da mão incansável e demiúrgica que os originou. Seria como se na verdade se agitasse a infrutífera chama de candeias nas margens de um sol a prumo, ou na órbita de uma incandescente cratera cósmica. Ler simplesmente. Contemplar estes feixes de partículas poéticas intensamente carregadas de significância, ou o rasto inflamável de uma chispa atómica em resultado do atrito originado pela força de impacto entre o objecto e a superfície de um mundo, que à sua maneira não deixa de representar e modelar. Deixe-se o leitor arrastar por esta exuberante imaginação sígnica e reflexiva que lenta e paulatinamente engendra a teia movente da expressão e extrai o poema intacto da pedra bruta de uma linguagem indivisa. Não é Jorge Melícias um poeta da comunicação, lá isso não. Expressa-se, deflagra o sentido intensidade a intensidade, numa onda verbal que irradia de um núcleo combustível e iridescente. Mas atenção, não se depreenda desta constatação que o autor de a luz nos pulmões (2000) é um puro esteta, entrincheirado na sua solitária torre de uma qualquer alienação umbilical, o mundo está verdadeiramente ali, fragmentado, partido, decomposto, retomado e recomposto, aberto ao bisturi letal, dissecado nas suas mais obscuras vísceras, lançando sobre as suas chagas purulentas a endoscopia regeneradora de seus raios infra-vermelhos ou violetas. “Só até certo ponto serei em relação ao que faço um sujeito ausente. Estão lá todos os meus fascínios, todas as minhas obsessões e medos, tudo aquilo que, em suma, me escreve”, (Cosmorama 07, p. 10), confessa o poeta, assim no-lo apresentando em suas nuances expressivas, intermediando o visível, o dizível, e o lisível. Como toda a verdadeira poesia, também esta segrega o real nas suas entranhas, sem necessidade de regressar a lugares de onde, evidentemente, nunca partiu.
É visível que de livro para livro vai paulatinamente Jorge Melícias ultrapassando, como se ainda fosse possível, mais uma lábil fronteira rumo a um dizer essencial, tão desnudo e vibrátil que certamente um dia o arrostará a encontrar-se face a face com a noite da linguagem, reflectindo-se no vidro do silêncio enquanto rosto. De há muito, aliás, o poeta parece pressentir essa voz que o arrasta rumo à cegueira, à brancura, ao nada, ou a uma ausência de dizer. Já nos primórdios da sua escrita conclui que “ a cegueira é ainda uma forma de ver” (iniciação ao remorso, 2004, p. 150) porque também as palavras “são por dentro da ideia” (agma, 2008, p. 12), numa espécie de trágica serenidade, pré-babélica, ou um leito enquanto foz na qual um rio morresse por excesso de fogo, “porque todo o objecto aspira / a exceder a sua exactidão (incǔbus, 2004, p. 52). Assim, essa opção desde sempre assumida por uma poética da síntese, da essencialidade, anti-discursivista por excelência, tem-se vindo a refinar, repito, de livro para livro. Se em iniciação ao remorso, por exemplo, ainda nos deparamos com poemas minimamente expandidos, de treze, catorze ou quinze versos, nos livros posteriores a ascese verbal vai desbastando com implacável cinzel poemas, estrofes, versos. Em a longa blasfémia (2006) raro é o poema que transborda da estrofe solitária e nenhum poema excede os oito versos, exíguos de sílabas, comprimidos por dedos de uma “ferocidade acúlea” (a longa blasfémia, p. 44) ou a rigorosa necessidade de um “timbre em que deus susteve a nota”, (ibidem, p. 44) e em agma esse minimalismo atomiza-se até uma rarefacção ferozmente epigramática.
Estamos perante um poeta exemplar, enquanto exemplum, em ordem a uma coerência indomável à prova de toda e qualquer hesitação ou cedência, resistindo no seu abismo expressivo aos ventos adversos de outras arestas do Real. Homem da abstracção exacta, em tempos onde o figurativo esbatido parece tomar decisivamente a palavra, avança num fechamento estóico, minimalista e elíptico, cada vez mais cerrado a manifestar-se nos seus últimos livros, com destaque para a longa blasfémia ou agma, onde deparamos com dois autênticos poemas-livro, enquanto fluxo contínuo de uma fala impulsionada por um intacto sopro poético, que jamais cede na sua intensíssima força tensional. Minimalista nas palavras, na fisionomia do poema, na mancha gráfica, na brevidade do clarão ou do relâmpago sígnicos, que não se manifestam no espectáculo da combustão que se esvai, mas que queimam, que ferem as cordas de qualquer sensibilidade estética, submetida a esta “incisiva / mecânica dos clarões”, (a longa blasfémia, 2006, p. 34).
A coesão rítmica e significante avança no fio da mais rija têmpera, manuseando a matéria verbal através de uma acção sistemática sobre o corpo do poema, despojando-o discursiva ou narrativamente, lapidando-o até uma fria e dura luminosidade. E essa dureza vai manifestar-se na dureza do seu lirismo, em que a voz poética assume uma avassaladora durabilidade, porque dura na sua consistência e textura e porque dura no tempo da sua força significante, visto que se esculpe na memória e na sensibilidade do leitor, que desta experiência estética não tem a mínima possibilidade de sair ileso. Palavras que cortam, que rasgam, que arrastam na fúria da sua corrente os descoloridos escombros do aborrecimento e as múltiplas faces de academismos eruditos e filosofantes que hoje nos submergem, ou de lugares comuns a caminho da evaporação do próximo estio. Mas essa voz íntegra e integral parece caminhar, como se disse, na senda última do silêncio, erguendo muralhas e desencadeando ferrolhos sobre a estrutura superficial do sentido; elipse a caminho do eclipse? Disto se dá conta valter hugo mãe quando, numa entrevista, lhe coloca uma questão tão elementar quão decisiva para esta poética da luz e do abismo ou, talvez, do abismo da luz: “O rigor parece estar sempre perto do silêncio. Será possível que venha a matar o poeta, como se lhe impusesse um limite além do qual se torna impossível escrever?” (Cosmorama 07, p. 11). O autor de o dom circunscrito (2003) defende, num primeiro momento, a sua obsidiante poética da síntese, mas acaba por enfrentar na força da sua humana fraqueza a encruzilhada ostensiva:
aquilo que noutras poéticas acaba por ser um horizonte sempre sabiamente
adiado, no meu caso aproxima-se, vertiginosamente, do inevitável passo
seguinte. Por isso acredito que sim, que o silêncio, como sempre, sobrevirá.
Para mim ele acontecerá apenas mais cedo, (Cosmorama, 07, p. 11).
Todavia, sejamos claros, Jorge Melícias não é um poeta do silêncio, antes um poeta da expressão em excesso de si mesma, que implode ou “transborda para dentro”, (iniciação ao remorso, 2004, p. 148). O silêncio não é aqui a consequência de uma melodia inefável, enquanto conquista platónica de uma beleza delicada e intangível, mas o gesto ontológico de quem envereda por um caminho abrupto e se prepara para daí tirar todas as consequências. A intensidade expressiva sobe de grau em grau, a filtragem vocabular aperta-se rumo às correntes avassaladoras de um rio estreito, mas violento, embora, também aqui, mais "violentas são as margens que o comprimem".
Também noutro momento da entrevista aqui convocada o autor de a cobrição das filhas (2001) coloca-lhe outra questão que reputamos de central, como aliás já se deixou entrever pela forma como esta poética tem vindo a ser caracterizada. E essa questão tem a ver com o sangue profundo e comum que escorre no interior das diferentes artes, como já na mais remota antiguidade perceberam os gregos e a modernidade retomou com renovada ênfase: “poderias substituir a poesia por uma outra arte se tecnicamente estivesses apto para te satisfazeres com ela?” A resposta não poderia ser mais assertiva:
Absolutamente. A escultura, por exemplo. Aquilo que Chillida empresta ao
que faz é, sob alguns aspectos, semelhante ao que eu persigo na poesia. Os
seus trabalhos (e, sobretudo quando integrados na paisagem, essa dimensão
adensa-se) tratam e relacionam vários conceitos que acho fascinantes: o
movimento, a inércia e a reincidência. Como se na sua obra fosse possível
‘reduzir a fluidez à consumação do atrito' (resposta concedida durante uma
entrevista).
Jorge Melícias desvenda desta forma linear o âmago da sua laboriosa acção oficinal, da arte da sua poética: ou seja, qual poeta-escultor vai página a página erigindo o seu objecto, desbastando excessos e impurezas, esculpindo as formas das suas esculturas verbais, adequando-as e integrando-as na sua ambiência de luz e sombra, fixando o movimento e imprimindo dinamismo à matéria inerte. Como amplamente demonstra Luís Adriano Carlos ao colocar Melícias na peugada de Vulcano, deus que “pratica a refinada arte da metalurgia no centro dos vulcões”, caracterizando-o precisamente como o “ o homo artifex” aquele “que bate nas palavras com os martelos” (Carlos, Cosmorama 07, p. 14). Lendo os versos, as palavras, as sílabas rugosas, ásperas, pontiagudas, que compõem esta poesia, o leitor parece ainda surpreender o eco da maça e do cinzel modelando os excrescentes materiais da linguagem, também eles não só madeira, pedra, ferro ou aço, mas sobretudo luz, penumbra, sombra, névoa, treva, até deixar o poema enquanto objecto exposto em sua nudez violenta e radical: liso, íntegro, cristalizado no seu núcleo atómico indivisível. Mas nem só com a escultura confina a dinâmica da convergência estética de Jorge Melícias, parece óbvio que para este autor a “arte é todas as artes”, como teoriza Étienne Souriau, e parece repercutir na sua poesia essa longínqua tradição interartística que sustenta uma estreita correspondência entre os diversos materiais que suportam as diferentes artes. Parece sem dúvida revestir-se esta temporalidade poética de uma genuína espacialidade, conferindo à escrita uma dimensão icónica, fruto de uma transformação alquímica onde se imbricam indissoluvelmente o visual e o verbal, o espacial e o temporal. Além da escultura, já aqui convocada, também a pintura e o cinema são fontes onde esta poesia se vai abastecer na consecução de uma rede de equivalências onde a justaposição destes múltiplos códigos estéticos se manifesta na exuberância de imagens obscuras, indefinidas, alucinadas, na medida em que também aqui contribuem para a alucinação da linguagem, numa ilimitada tendência para o alargamento significante que acompanha a expansão dos signos.
Poética obsessiva, devoradora de luz do ponto de vista da densidade significante que não da nitidez da sua fala cristalina e epigramática que, na inversa, a exala, o poema ergue-se enquanto corpo complexo e completo, ou o grande animal aristotélico que respira o fogo convulsivo da criação: “Se o animal se ergue da vasa / há um pulmão arcaico / eriçado no dorso”, (a longa blasfémia, 2006, p. 36), ou ainda “O animal sobreleva-se no que sangra. / Canta se na raiz do bafo / surgem as mós da blasfémia. / Ele está diante do abismo / e projecta-se inteiro na heresia” (idem, p. 38).
De poucos poetas se poderá falar com mais a propósito de uma poética que se inscreve sob o regime do sublime, teorizado por Kant ou Burke, como Jorge Melícias, porque garimpeiro da tenebrosa beleza do horror, ou de uma espécie de anti-beleza enquanto “admirável impurificação”, (a longa blasfémia, 2006, p. 45), verdadeiramente disputada “nas corolas do apocalipse”, (a longa blasfémia, 2006, p. 44). Uma representação bela ainda que do feio, do grotesco ou do horrível, como preconiza Kant na sua Crítica da Faculdade do Juízo (1790). Neste óbvio fundamento, Pedro Marqués de Armas invoca “a sublimidade do horror”, (Cosmorama 07, p.17) numa linha negra que passa por Gottfried Benn, Poe, Lautréamont ou Witkin. Outras fontes poéticas, e não só, poderíamos aqui invocar, e as lições de Pessanha, já atrás entreaberta, e Herberto Helder não seriam de todo descabidas, mas não me interessa tanto ler Melícias sob o plano das influências, um dos múltiplos rios que desaguam nesta como noutra qualquer escrita, nem tampouco a referencialidade de um mundo em colapso: da violência, do crime, da indigência, das pós-modernas consciência infeliz ou náusea existencial; mas antes a da “fúria rigorosa”, de que nos dá conta Manuel Gusmão, em última análise da violência outra contra as fibras profundas do sentido, das palavras e da linguagem, revolvendo-os com um nietscheano “amor profundo pela impiedade”, (agma, 2008, p. 15). Poesia dura, subtil, peculiar, escrupulosa, resiste no rigor em que assenta a sua perfeita simetria, a sua soberba ossatura, sugerindo, mais que invocando, um tempo de náusea, de loucura, de fealdade, do crime gratuito. O poeta em três singelos versos expõe toda a sua arte poética, o mesmo é dizer o seu plano de acção e de reacção: “Procuro a antecipação de uma veia. / Disponho os ferros / sobre a premeditação do movimento” (a longa blasfémia, 2006, p.35). Depois da cirurgia a um corpo exposto, das vísceras abertas, contemplar a monstruosidade do mundo à solta em suas horríficas metamorfoses: “Vi as crias à solta pela insídia. / Na fronte ostentavam a longa blasfémia” (idem, p. 46).
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Jorge Valentim
Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)
GOMES, Simone Caputo. Cabo Verde: literatura em chão de
cultura. Cotia, SP: Ateliê Editorial; Praia: Instituto da
Biblioteca Nacional e do Livro, 2008.
Em entrevista a Mário Mesquita, nos anos 70, Eduardo Lourenço, reconhecido ensaísta português, tecia uma afirmação no mínimo instigante sobre a função do intelectual e os efeitos colaterais de sua produção textual. Segundo ele,
um intelectual age através dos seus escritos, através de pouca ou muita
repercussão que aquilo que escreve ou comunica vai tendo sobre os outros.
A função do intelectual não é tanto a de modificar a realidade, [...] mas a de
modificar o olhar dos outros e o seu próprio olhar sobre a realidade.
(Entrevista concedida a Mário Mesquita).
E tal atuação escrita efetiva circunscreve-se no universo do ensaísmo, já que, de acordo com Eduardo Lourenço, o ensaísta é aquele que se debate, por vezes, contra as suas próprias perspectivas, gerando com isso um duplo e dinâmico movimento, qual seja, o de “criar modelos abstratos de opções, de esquemas, de idéias, nos quais os outros se encontram e não se encontram, mas capazes de suscitar da parte deles um movimento de interesse.” (Eduardo Lourenço: cultura e política na época marcelista. Entrevista de Mário Mesquita. Lisboa: Cosmos, 1996, p. 80-81).
Pois bem, recupero a voz do ensaísta português como mote alheio para tecer alguns comentários sobre o mais recente livro de Simone Caputo Gomes, cujo tema central é exatamente a literatura e a cultura cabo-verdianas. E trago o alicerce lourenciano, por acreditar que suas palavras encontram ressonância no trabalho crítico de Simone Caputo. Reconhecida pesquisadora da literatura e da cultura de Cabo Verde, a professora universitária vem militando há mais de 30 anos na ampla divulgação do arquipélago em território brasileiro, bem como nos estreitos laços de ligação entre os dois países.
O seu livro vem, de certa forma, enriquecer as estantes do mercado editorial brasileiro sobre Cabo Verde, além, é claro, de fornecer um rico material não só para os estudiosos das literaturas africanas, mas também aos africanistas, de uma forma geral. Isto porque, ao lado de outros autores brasileiros, como Benjamin Abdalla Júnior, Benilde Justo Caniato, Maria Aparecida Santilli e Leila Leite Hernandez, que também dedicaram uma atenção especial a determinados aspectos do arquipélago, a escrita de Simone Caputo vem referendada pelos seus 32 anos de dedicação aos estudos literários cabo-verdianos. Seus artigos, resenhas e ensaios, além de orientações de dissertações de mestrado e teses de doutorado e seu incansável trabalho de magistério bem podem comprovar as afirmações que teço sobre o seu papel como intelectual das literaturas africanas de língua portuguesa no Brasil e no exterior.
Trata-se, portanto, de uma obra madura, resultado de intensas e sérias pesquisas sobre o tema, cuja estrutura confirma a sua competência na área dos estudos cabo-verdianos. Com uma breve chamada de Mário Lugarinho, ex-orientando da professora e, atualmente, colega seu na Universidade de São Paulo, a obra é apresentada por Benjamin Abdalla Júnior e prefaciada por Manuel Veiga. Já pelo elenco dos críticos de abertura, poderíamos dispensar quaisquer comentários sobre o mérito do livro de Simone Caputo.
No entanto, acrescento ainda que os seus ensaios (com origem e datas indicadas no final da obra) têm uma atuação vital sobre os seus leitores, no sentido mesmo como propôs Eduardo Lourenço, qual seja, de operar uma mudança significativa do olhar lançado sobre a literatura do arquipélago. Neste sentido, desviando-se do lugar comum de um certo comparatismo restrito, que minimiza as relações entre Cabo Verde e Brasil a partir de determinados títulos, como Os flagelados do vento leste (Manuel Lopes) e Vidas Secas (Graciliano Ramos), por exemplo, Simone mostra que a literatura cabo-verdiana é bem mais que tal comparatismo redutor. Talvez, e não gratuitamente, por isto, resolve a autora adotar uma feliz sub-divisão tripartida, observando aspectos geográficos e culturais que definem e estruturam o próprio alicerce identitário cabo-verdiano: o milho, o batuque e o vulcão.
Na primeira parte (“Milho: semeando caminhos”), a autora aposta numa metáfora vegetal, como que fornecendo aos escritores contemplados na seção a categoria mesmo de alimento e fundamentação primordial, posto que se constituem como matrizes da literatura de Cabo Verde. Nestas, inclui as suas próprias raízes cabo-verdianas, já que traz à tona a figura do poeta Daniel Felipe, tema de sua dissertação mestrado, publicada em Cabo Verde, em 1993. Interessante sublinhar que, ainda que voltando ao seu espaço de origem acadêmica, a autora tece um outro olhar crítico sobre os textos poéticos de Daniel Felipe, bem como as recuperações operadas sobre a obra do poeta cabo-verdiano não só pela crítica literária dos anos 70 e 80, mas também pelos discursos cibernéticos dos blogs e websites. Parece mesmo estar a autora nos indicando o caminho de que todos os discursos recaem invariavelmente no literário, e este se torna uma fonte inesgotável de recursos, quando bem compreendido e absorvido nos seus fins. Ao lado de Daniel Felipe, outra semente recuperada do intelectualismo militante cabo-verdiano é Amílcar Cabral, nome tutelar de uma postura protagonizadora dos caminhos da história, em que, segundo a autora, os “africanos recuperariam a condição de atores da História, de interventores sobre a sua própria condição de vida, capazes de formular um sentido que excedesse e transcendesse o presente” (p. 80). Sensível à poesia do líder africano, Simone reivindica a importância de Amílcar Cabral como intelectual atuante e decisivo para a liberdade, a expressão cultural e a produção da História em África pela própria África. Tanto que, para autenticar a sua investida, recupera também outras raízes, as de outros escritores da geração do poeta, que a ele dedicaram obras de teor valorativo, tais como Mário Pinto de Andrade, Gabriel Mariano e Alda do Espírito Santo, dentre outros.
O terceiro poeta da matriz cultural cabo-verdiana, resgatado do esquecimento por Simone Caputo Gomes, está diretamente ligado ao próprio berço linguístico do arquipélago. Trata-se de Sergio Frusoni, poeta que adotou o crioulo como língua literária e que, segundo a autora, “constitui o elemento cultural que mais assume, fixa e expressa os valores cabo-verdianos” (p. 98). Entendendo a necessidade de disseminar a fala poética crioula do escritor, Simone opta, muito justamente, por recuperar também a fala de Mesquitela Lima, um dos principais responsáveis pela tradução e acesso da poesia frusoniana em língua portuguesa.
Ainda integram esta primeira parte, dois outros artigos. Um dedicado ao escritor multifacetado Daniel Spínola, apontando-o como uma espécie de ressonância das três raízes culturais e literárias recuperadas anteriormente, vislumbradas a partir de sua prosa de ficção Os avatares das ilhas (2008). Nesta resenha, Simone Caputo já ensaia a sua aventura pelo território da análise comparativa entre literatura e outras artes, aqui especificamente a pintura. O último texto desta primeira parte centraliza-se no diálogo literário entre Cabo Verde e Brasil, colocando os pressupostos dos escritores da Claridade em plena sintonia com as propostas vanguardistas do primeiro Modernismo brasileiro.
Se na primeira parte, a autora demonstra a sua perspicácia na recuperação de raízes fundamentais para a matriz identitária cabo-verdiana, nas duas partes que se seguem, temos a oportunidade de observar porque a autora é um dos nomes de citação obrigatória no ensaísmo literário sobre a cultura cabo-verdiana. Se em “A poesia em Cabo Verde: um trajeto identitário” e em “Cabo Verde: mulher, cultura, literatura”, a autora apresenta, respectivamente, de maneira panorâmica a poesia produzida no arquipélago e a escrita literária cabo-verdiana de autoria feminina, nos outros dois textos que compõem a segunda parte do livro (“Batuque: encontrando som e sintonia”), encontramos um olhar cuidadoso que desenvolve as relações diretas entre literatura e outras artes em Cabo Verde, especificamente, a música e a pintura.
Neste sentido, “Ecos da cabo-verdianidade: literatura e música no arquipélago” apresenta-nos a morna como aquele “patrimônio cultural crioulo” e “traço de união dos cabo-verdianos espalhados pelo mundo” (p. 149). Com uma escrita de nítido teor ekprásico, Simone passeia da poesia de Eugenio Tavares, Corsino Fortes e Jorge Barbosa, à prosa de Manuel Lopes (“Galo cantou na baía”), Dina Salústio (Mornas eram as noites) e Fátima Bettencourt (Semear em pó), mostrando as representações literárias da mais autêntica expressão musical do homem ilhéu, a morna, além de também investir numa leitura em diálogo com as faces de Vênus, encontradas plasticamente nas obras dos autores pesquisados.
Neste caminho, é com intimidade que Simone recupera uma das raízes da literatura cabo-verdiana do século XX no seu ensaio “Manuel Lopes: o nascimento de Vênus, a gênese da cultura e da literatura em Cabo Verde”. Consegue a autora fugir exatamente dos caminhos comuns que conduzem uma certa crítica exclusivamente àquela literatura de pendor político-ideológico. Não que o conto analisado do autor (“Um galo cantou na baía”) não propicie tal possibilidade de leitura, mas, prefere a autora investir numa ponderação de caráter interdisciplinar, trazendo à tona a construção plástica e a experiência descritiva do autor claridoso na criação de espaços e situações ficcionais. É com esta preocupação que a autora procura reunir o material analisado numa linha inter-artística de análise, apostando na junção morna – ficção – pintura para comprovar que “um rico percurso da relação Morna-Literatura (associada, frequentemente, à relação Morna-Vênus) se vai assim pontuando no panorama cultural crioulo” (p. 186). Assim, da Vênus ensaiada no conto de Manuel Lopes, somos conduzidos a outras representações venusianas, como a de Dina Salústio e, sobretudo, a de Daniel Spínola, no seu conto surrealista “O púbis da Vênus”.
Por fim, na terceira e última parte da obra (“Vulcão: soltando a voz”), gosto de pensar que a autora não poderia ter outra escolha a não ser a da metáfora do espaço do fogo em ebulição, posto que a seção dedica-se exclusivamente à produção literária de autoria feminina, aliás, tema a que vem se dedicando nos últimos anos. Aqui, não apenas as vozes das mulheres se soltam, como lavas ferventes de um vulcão em erupção, mas também a voz de Simone Caputo, enquanto ensaísta e, sobretudo, como mulher que lê com declarado interesse os escritos de mulheres.
Dina Salústio, Vera Duarte e Fátima Bettencourt, portanto, são as eleitas pela autora para a construção deste cenário vulcânico. Já devidamente referendadas em ensaios anteriores, aqui, Simone expande a sua linha de pensamento sobre a produção destas escritoras, a sua importância e o espaço que elas ocupam dentro do corpus literário cabo-verdiano.
Para além dos aspectos eróticos que, inevitavelmente, as escritas de autoria feminina podem suscitar, a autora sublinha o caráter contestador que Dina Salústio, por exemplo, desenvolve em suas obras, sobretudo quando tematiza uma certa “monotonia e dureza da vida, em busca de uma solução ou possibilidade de mudança” (p. 220). Ou seja, a mulher reivindica o seu papel ativo e atuante na sociedade ilhoa, sem, contudo, ficar restrita às fronteiras aquáticas das ilhas. Entendendo a complexidade formadora do sujeito cabo-verdiano, assim também ela se assume como tal e “ultrapassa o tópico da cabo-verdianidade para adquirir um estatuto de discurso que se coloca como reflexão sobre a questão humana” (p. 228).
Da mesma forma como a autora dedica um espaço expressivo a Dina Salústio, também inscreve a escrita poética de Vera Duarte no seu território ensaístico. Sobre a autora de Amanhã amadrugada, O arquipélago da paixão e Preces e súplicas ou os cânticos da desesperança, Simone Caputo dedica dois textos. Neles, destaca a paixão maior da poetisa, leitmotiv recorrente de sua escrita: o arquipélago de Cabo Verde. Assim, temas como a cultura crioula, os vínculos irmanados de língua portuguesa, como os de Angola e Brasil, e a interlocução intertextual com as gerações claridosa à contemporânea encontram-se entre o repertório desenvolvido por Vera Duarte, que, segundo Simone Caputo, reitera a “presença marcante da mulher na construção de um mundo diferente” (p. 262), onde “tempos novos/ideais recuperados” (Ibidem) alicerçariam a sua participação inconteste.
Com Fátima Bettencourt, a ensaísta resgata a relevância do gênero da crônica, sobretudo no que diz respeito ao seu aproveitamento na recriação de um Cabo Verde, onde o “resgate da tradição” encontra-se atrelado a “o tempo e o espaço social em que se insere” (p. 267) a escritora cabo-verdiana. Procura Simone Caputo, assim, ratificar o exercício literário de Fátima Bettencourt, sublinhando que, “de fatos e feitos da vida emocionalmente despertados pela concentração pode surgir a crônica” (p. 267).
Já no limiar de sua aventura pelo arquipélago literário, Simone encerra com um instigante painel da escrita feminina, com “O texto literário de autoria feminina escreve e inscreve a mulher e(m) Cabo Verde”. Neste, a autora insere generosamente o seu leitor no território histórico, político e social ilhéu, dá um cuidadoso painel das mulheres que se inscrevem no cenário literário e, por fim, apresenta uma “galeria de cenas e de vozes da margem” (p. 284), onde as mulheres, para além dos trabalhos de ordem doméstica, tem também a responsabilidade “no resgate, na preservação e na transformação do patrimônio cultural crioulo” (p. 298).
Também como mulher, pesquisadora e professora universitária, Simone Caputo Gomes reivindica o seu espaço, não apenas nas fronteiras do arquipélago, mas também nas do próprio meio acadêmico brasileiro. Com este Cabo Verde: literatura em chão de cultura, a sua autora suscita entre seus leitores, como bem pretendeu Eduardo Lourenço, um intenso movimento de interesse. Isto porque, em grande parte, Simone Caputo, a exemplo de Vera Duarte, tem, felizmente, realizado vários voos literários “para lá do horizonte / com os pés fincados na areia” dos dois lados do Atlântico.
Encerro com uma nota pessoal. Conheci Simone Caputo, em 1990, quando aluno do curso de Graduação em Letras na UFRJ. Na época, partilhamos juntos uma mesa-redonda num grande congresso. Ela falava sobre Gastão Cruz, e eu sobre Albano Martins. Dez anos depois, em 2000, reencontramo-nos, agora, como aluno seu no curso de Doutorado em Literatura Portuguesa na UFRJ. Para além da primeira admiração, somou-se a sintonia e a afinidade pela cultura e pela literatura cabo-vedianas, apresentadas pela mestra. E, agora, quase vinte anos depois, coube-me a responsabilidade de tecer algumas linhas sobre o seu trabalho, que, com reiterado prazer e interesse, venho acompanhando, ainda que de longe, pelos seus textos produzidos e pelas suas falas em encontros e congressos. Acredito que bem pouco teria a acrescentar, o seu livro fala por si só. Bem haja, minha cara mestra e amiga.