60 LIÇÕES DOS AOS 90
A livro 60 lições dos 90 uma década de neoliberalismo, escrito por José Luis Fiori e lançado pela Editora Record em 2001 com uma segunda edição em 2002, se propõe a apresentar através de sessenta artigos o desenrolar da crise ocorrida nos anos noventa, que embora tenha conhecido o seu ápice nesta década, já vinha se abatendo sobre o mundo desde 1970.
Conforme nos é informado na própria apresentação, o livro não teve nenhuma pretensão acadêmica, se tratando, na realidade, da coletânea de 60 artigos que tratam dos grandes temas da economia nos anos 90, escritos no período compreendido entre 2000 e 2001 para o site da Agência de Notícias “Carta Maior”, com o objetivo de difundir pela Internet algumas informações históricas e reflexões críticas sobre os acontecimentos daquela década, tendo como público alvo, especialmente, “a população jovem e movida pela indignação social”, razão pela qual, de um modo geral, foram escritos em linguagem bastante simples e acessível, evitando o “academicismo econômico” que acaba por subtrair da parcela leiga da população o conhecimento de fatos nacionais e internacionais que afetam a vida diária de cada um. E não se pretendendo diminuir o valor da obra do professor Fiori, talvez resida aqui o seu mérito maior: a apresentação de forma quase didática aproximando o cidadão comum da realidade econômica.
Segundo o próprio autor, os artigos foram escritos sem um roteiro pré-determinado e “ao sabor das lembranças de cada semana”. Embora todos independentes guardam inteira coerência entre si e muitas das vezes, devido à necessidade de esclarecimentos adicionais sobre o tema proposto, o artigo corrente acaba retomando assuntos já comentados em artigos anteriores, o que torna difícil à tarefa de ordená-los em função dos acontecimentos como se faz habitualmente em uma obra narrativa. Mas, de uma maneira geral, eles versam sobre os acontecimentos ocorridos em todo o mundo na década de noventa que costumam normalmente apresentados como influência ou como conseqüência para a referida crise.
O foco desta resenha se situa nos artigos de nºs 49 ao 56 que tratam especialmente da crise aqui no Brasil. Sobre estes, o professor Fiori tem a seguinte opinião:
Inicialmente, no artigo “Brevíssimo balanço” o professor Fiori nos fala que é muito difícil fazer um balanço do período de 1937 a 1990 tendo em vista o fato de que o mesmo foi um período extremamente conturbado, marcado principalmente pela ditadura militar e pela considerável desigualdade na distribuição da riqueza e da renda, mas que por outro lado, abrigou um grande crescimento da economia, graças principalmente a coalização de capitais estatais somados aos capitais privados nacionais e privados estrangeiros, cujo principal marco foi à consolidação do setor I - que já vinha sendo implantado desde 1920 – “a ponto do mesmo em 1980 quando a crise dava os seus primeiros sinais, contar com um parque industrial extenso, uma industria de bens de produção forte e um setor de exportação muito bem articulado,” respondendo já, nesta mesma época, por mais 60% das exportações, o que deixou o Brasil em uma posição muito confortável em relação aos seus vizinhos. Todavia, apesar de toda esta indústria pesada, não se poderia dizer que a economia brasileira conseguia ter uma estabilidade, uma vez que em função da variação cambial – perfeitamente explicada pela crise no resto do mundo - alternavam-se os períodos de expansão e desaceleração, estes últimos acompanhados sempre de medidas que acabavam por agravar sempre a questão da distribuição de riquezas, tendo em vista que, a fragilidade do Estado frente ao capital estrangeiro e as oligarquias, que na realidade foram as grandes responsáveis pelo projeto desenvolvimentista, mas que nunca tiveram nenhum projeto ou comprometimento com o crescimento do país, daí, quando sobreveio a crise e com ela a necessidade de reestruturação, o Estado ficou paralisado, uma vez que nenhuma destas frações de capital estava disposta a abrir mão de seus lucros, forçando então o Estado, para resolver a crise ou diminuir o seu impacto, a tomar medidas que acabavam por aumentar ainda mais as diferenças sociais, ou seja, mais uma vez o povo pagou a conta. A explicação que o professor Fiori encontra é que talvez tudo tenha acontecido desta forma tendo em vista que, diferentemente de outros países da Europa e da Ásia, no Brasil nunca houve um real envolvimento entre as classes – elites e o povo - num tipo de ideologia nacionalista que fizesse com que o país se unisse em torno de um objetivo comum.
Sobre o “Pacto Conservador”, o professor Fiori tenta nos mostrar que o aumento da desigualdade social não foi responsabilidade da crise, algo inevitável como sempre nos foi mostrado, mas sim uma opção das próprias elites empresariais e principalmente do Estado, que apesar de sua intervenção no mercado de trabalho, nunca foi capaz de obrigar estas elites a atrelar o desenvolvimento econômico ao desenvolvimento social. Para o professor Fiori, estas elites enriqueceram graças, sobretudo, à exploração do trabalhador através de salários baixos, de não especialização do mesmo, do aumento da população urbana que expulsa do campo pelos grandes complexos agroexportadores, passou a “mendigar” por qualquer salário, aceitando qualquer condição que lhe permitisse aos menos comer. E tudo isso avalizado pelo Estado e por sua política de “salário mínimo” obrigatório para o empregador e não salário mínimo condizente com uma subsistência digna. Daí a criação do conceito criado por Celso Furtado de subdesenvolvimento, ou seja, crescimento econômico, mas aumento da pobreza.
Já no artigo intitulado “Ajuste latino-americano”, afirma que este “ajuste” foi à forma visualizada pelos países centrais - que encontraram nas elites políticas e econômicas latino americanas uma rápida adesão - para liberar empréstimos que visavam “solucionar” os problemas que os países de economia periférica enfrentavam. Para tanto os mesmos deveriam aderir a um pacote de medidas impostas pelos financiadores, principalmente no tocante ao abandono do modelo desenvolvimentista adotado por elas desde a 2ª guerra mundial. Todavia, o mesmo remédio que curou a doença no início serviu como veneno para acirrar a crise e jogar estes países em uma miséria ainda maior, com o aprofundamento das desigualdades sociais, visto que, com o desmonte de seu setor I aumentou ainda mais à sua dependência em relação ao capital estrangeiro e a importação de bens de capital e de tecnologia, principalmente esta última, que se encontrava concentrada nos países centrais e só os países periféricos mais bem sucedidos conseguiam ter acesso a elas, mesmo assim de uma maneira muito restrita, se obrigando ainda a se submeterem cada vez mais à política dos paises centrais, “esticando ainda mais a corda” no estrangulamento do crescimento o que só fazia crescer a desigualdade social.
Com o artigo “A utopia dos novos ricos”, o professor Fiori nos fala que diante do fracasso do projeto neoliberal, as elites passaram a sonhar com um estreitamento de laços com os EUA, uma relação quase filial, com a adoção inclusive da moeda deste país, uma vez que viam na dolarização uma saída para a manutenção de seus privilégios, pouco se importando com o agravamento da crise social do país, mas se esqueceram do protecionismo do próprio sistema americano que nunca abriria mão de seu próprio bem estar em benefício outro país.
No artigo intitulado “A coalização tucana”, o autor nos fala do papel desenvolvido pelo PSDB para a implementação das reformas neoliberais, que conseguiu aglutinar importantes intelectuais paulistas e cariocas, grupos marxistas e defensores do liberalismo econômico, - algo até então julgado impensável – e se coalizou com as forças de centro-direita onde estavam presentes todos os setores da burguesia e das oligarquias regionais de poder que haviam apoiado e usufruído do governo militar e do desenvolvimentismo e que se encontravam órfãs desde o fracasso do governo Collor. Tal coalização só teria sobrevivido enquanto havia as grandes privatizações, mas foi suficiente para levar a uma perda de identidade do próprio partido que fez muitas concessões para aglutinar toda esta gente em torno de seu projeto.
Em Estado, capital e trabalho, o professor Fiori, tece uma crítica aos três governos da década de 1990 (Collor e FHC) que iniciaram seus governos com prometendo renovar o Estado acabando com o “intervencionismo” praticado por este junto ao empresariado e com o mundo do trabalho de forma a deixar que as próprias forças do mercado regulassem estas relações, mas o que acabou fazendo foi praticar o que o professor Fiori chama de um “populismo destinado à conquista do apoio da classe média e de todos os setores que puderam usufruir a abertura comercial e da sobrevalorização cambial”, principalmente as instituições financeiras, do lado empresarial e nas relações de trabalho, aqui sim teve forças suficientes para reduzir os direitos trabalhistas, para congelar os salários do setor público, de modo a reduzir significativamente a participação salarial na renda nacional. Novamente aqui o resultado foi desastroso com o aumento da concentração da riqueza e da desigualdade social que, segundo o autor teria sido tão ou mais anti-social do que o período desenvolvimentista.
Sobre “Modernização política e democracia”, afirma que a coalização neoliberal brasileira não deu certo, primeiro porque ao se aliar a forças tão heterogêneas e com interesses distintos tiveram de fazer concessões de todo o tipo que acabaram por afastá-los de seu objetivo maior, e segundo, devido ao próprio modelo que foi adotado que não comportava nenhuma mudança de rumo e que era incompatível com a democracia brasileira já existente há muito tempo.
E, no último artigo sobre o qual se dirige nosso olhar - “Soberania e interesse nacional” – o autor fala do mito que se criou sobre o entendimento do que vem a ser a soberania: “um poder supremo, absoluto, perpétuo, indivisível e inalienável” , e aqui cabe ressaltar que tal pode ser assim até no dicionário, todavia, quando se trata de questões políticas e econômicas, a soberania assume um caráter negocial entre os Estados, sempre foi assim. Nos fala que durante os anos noventa muito se falou no quanto à globalização tendia a eliminar os Estados, todavia o que aconteceu foi somente uma redefinição das hierarquias como sempre foi em todos os tempos, onde aqueles que se submetem perdem o direito de questionar a atitude do outro, citando o caso brasileiro, onde, os socioliberais promoveram uma “transacionalização” tão violenta da estrutura política-econômica, que não só o Estado como também a economia brasileira ficaram extremamente fragilizados e dependentes do capital privado estrangeiro e do apoio do governo norte-americano nas situações de crise. Lembra,
“que o governo reatou relações de cooperação militar com os
Estados Unidos que haviam sido interrompidas em 1977 pelo
General Geisel. Recriou o Grupo de Trabalho Bilateral de Defesa Brasil-Estados Unidos, alugou sua base espacial de Alcântara e assinou – no dia 2 de julho de 2000 0 o Protocolo 505, que devolveu ao Brasil o “direito” de receber em forma de doação, todo o material bélico de segunda mão dos Estados Unidos, que poderá ser inspecionado pelos militares norte-americanos, que passam a ter acesso regular aos quartéis brasileiros “
E conclui: “Nessas condições, é fácil perceber que o Estado brasileiro perdeu qualquer capacidade de sustentar seus interesses, nos foros internacionais, quando enfrenta conflitos com aqueles países que sustentam nossa moeda, que compraram nossa infra-estrutura de comunicações e energia e que armam e municiam nossos quartéis”.
O livro “60 lições dos 90” uma década de neoliberalismo conseguiu ir bem mais longe do que a modéstia do seu autor o permitiu pensar. Na realidade é um livro que apesar de datado nos parece atual, e isso, porque não mudou praticamente nada de lá para cá. As elites continuam determinando o que é bom para o país (ou para elas?), o governo Lula mais parece uma continuidade do de FHC e a desigualdade na distribuição de riqueza e renda só tende a ser cada vez maior.