A BELEZA FEMININA COMO ELEMENTO NOCIVO NO POEMA “SANGUE-MAU”, DE ARTHUR DE SALLES

Desde a Antiguidade Clássica a mulher é alvo de (pre)conceitos. Muitos autores retrataram a mulher a partir de um estereótipo: mulheres bonitas e sensuais, mulatas, vivendo num ambiente marginal e socialmente inferior. Sabemos que parte desse preconceito foi concebido por uma estratégia de dominação masculina, que adveio principalmente da religião. A visão religiosa sobre as mulheres tinha, geralmente, um viés negativo. Segundo a visão cristã, Deus criou a mulher (Eva) e deu-lhe imensa beleza, mas ela “se perdeu” ao comer a maçã, incitada pela cobra (o diabo); partindo dessa idéia, a mulher era vista como diabólica, uma serpente, como o mal na vida do homem. Essa visão está registrada na Bíblia Sagrada: “Foi pela mulher que começou o pecado, e é por culpa dela que todos morremos” (Eclesiastes, 25, 25).

Na Idade Média, período também em que ocorreu a Inquisição, sabe-se que a mulher foi o grande centro desse genocídio. Foi um período em que o demônio estava impregnado no imaginário das pessoas. E demônio tinha a ver com a mulher, já que foi este que a tentou; existe até a idéia de ela seria a “porta do demônio; a mulher foi comparada com o diabo, numa equivalência entre mulher / diabo / sexualidade; portanto, era preciso ter controle sobre ela, para que esta não fosse seduzida pelo mal e, assim, o homem não seria atingido.

Podemos observar que em alguns contextos, essa idéia de mulher como símbolo do mal foi mais tendencioso que outros, cada lugar, seja por questões geográficas, seja por questões sociais ou religiosas, seja por crenças e superstições locais, elaborou sua própria visão sobre as mulheres, mas sempre de maneira preconceituosa. Independente da intenção do autor, pode-se perceber no poema narrativo “Sangue-Mau”, do grande poeta baiano Arthur de Salles, uma narrativa norteada em direção a esse viés de belo e sensual ligado a “algo” negativo. No caso do poema, porém, essa ligação da beleza feminina com o mal está restrito a um lugar específico: uma região praiana e suas crenças.

Consideramos que esse trabalho do autor deve ser visto como uma obra-prima, não apenas pela excelência da narrativa que o compõe, pela densidade do poema, mas pela maestria no uso do vocabulário, que utiliza uma linguagem específica de um local – o litoral do recôncavo baiano, e de sua gente humilde e simples – os pescadores e outros nativos. O poeta Arthur Gonçalves de Salles veio de uma origem humilde e foi muito influenciado pelas vivências da infância entre as pequenas cidades da região de pesca do recôncavo baiano, mas especificamente Passé, lugar preferido do poeta, onde sua mãe nascera. Conhecia os costumes, as lendas e os fatores econômico-sociais que caracterizavam o local. Sendo assim, seus trabalhos não se distanciaram daquilo que lhe era relevante, que lhe tocava intensa e continuamente: a infância.

Nesse “poema dramático”, como assinala Gama (1981) no prefácio do livro, fica muito claro que a paisagem predominante é o mar, e os personagens que fazem parte dessa narrativa poética são justamente os homens humildes que vivem do mar, os pescadores. Superstições e lendas permeiam o imaginário desses personagens (e provavelmente do poeta) e o vocabulário usado pelo autor relaciona-se com a realidade deles e de outros nativos da região. Num primeiro momento, esse vocabulário pode causar uma incompreensão por parte do leitor, mas a continuação da leitura e o desenrolar do enredo vai facilitando a compreensão; além disso, todas as palavras estão cercadas por uma rede de associações que as ligam a outros termos, deixando-as interligadas por essa rede associativa que gira em torno do mar, por isso todas as palavras utilizadas pelo poeta têm uma relação direta ou indireta com o ele. A linguagem refere-se justamente às coisas da terra, da gente, da paisagem de um lugar específico.

O enredo destaca a história de um amor que foi interrompido pela crença numa superstição que gira em torno do significado da palavra composta sangue-mau, que dá título ao poema narrativo. Uma pessoa que tem sangue-mau, segundo a idéia supersticiosa dos pescadores, causa infelicidade, desgraça e ruína aos que convivem com ela. Segundo Gama (1981, p.10), esse poema dramático, publicado em 1928 e reeditado em 1948, composto de um prólogo e dez partes, tem como fonte de inspiração uma superstição bastante generalizada no Recôncavo Baiano: a influência do sangue-mau da mulher amada sobre seu companheiro. No contexto, a beleza feminina, mas especificamente de Teresa, foi vista de forma negativa; seu companheiro, Saúna, passou a acreditar que ela tinha um sangue ruim por causa da beleza que a fazia desejada por tantos homens. A beleza de Teresa foi o motivo gerador do mal na sua vida, segundo sua própria crença, fazendo recair sobre ele toda a sorte de situações difíceis, a ponto do fazê-lo abandonar a esposa e arranjar outra mulher, agora feia e indesejável.

O poema retrata a vida de Sauna em três fases: antes do casamento, durante o casamento e depois da separação, encerrando-se com a morte de Teresa. A narrativa poetica se inicia com uma conversa entre Saúna e Caieira sobre os efeitos malignos do sangue-mau na vida de um outro pescador, Zé ventura, a quem o sangue-mau de Flora, sua companheira, só causou malefícios. No fragmento abaixo (fala de Caieira) podemos perceber claramente que essa idéia negativa está diretamente ligada à beleza:

A Sancha deixou tudo.

Tocada a pontapé porque era magra e feia,

Veio a Flora. Que mais?... É a rosa, a sereia...

Mas lá se foi também a felicidade.

É a vazante da vida. Tem razão, na verdade,

Quem o chama Baixa-mar. Ali feliz vivia;

Mas a desgraça entrou naquele mesmo dia

Em que a Flora chegou para o lugar de Sancha.

Tudo se foi então: canoas, redes, lancha.

A saúde fugiu espantada de casa,

A maré começou a vazar e inda vaza.

E nunca mais a enchente.

Sangue-mau!... O maior inimigo da gente

(SALLES, 1981, p.117)

Desde esses primeiros versos podemos visualizar idéias supersticiosas que crêem que algumas pessoas têm um sangue tão ruim que são capazes de trazer má sorte, avareza, doenças e toda a sorte de malefícios para a vida daqueles com quem convivem. Foi o caso de Flora, uma mulher tão bela quanto uma rosa ou uma sereia, mas que só trouxe infortúnios para a vida do seu companheiro. Fica muito claro aí o quanto está enraizado a idéia da beleza feminina versus a desgraça do homem, pois ao trocar Sancha, magra e feia, por Flora, que tinha muita beleza, Zé Ventura tudo perdeu. Aconteceu o oposto com Saúna, entretanto, a beleza feminina continua sendo o cerne da questão.

A continuação do diálogo nos leva a pensar que Caieira, aparentemente, parece está prevenindo Saúna sobre acontecimentos futuros quando diz: “Saúna há sangue-mau. Guarde isto bem no fundo / da alma e do coração. Nunca duvide disto. / Muito longo contar tudo que tenho visto / dos efeitos fatais de sangue-mau no mundo” (SALLES, 1981, p.117-118).

Saúna, porém, estava muito apaixonado para perceber qualquer aviso. Mas, após o casamento com Teresa, seu grande amor, de uma vida financeira tranqüila, ele passa a outra de muitas dificuldades. Acontecem-lhe muitas desgraças: primeiro ele adoece, perde o ânimo para o trabalho, sente-se sempre cansado, depois começa a vender os barcos, sua “riqueza”. Inicialmente, ele acredita que foi “coisa feita”, que alguém pegou “seu rasto” e o jogou no mar, como dissera “o velho” à Teresa. O trecho do poema que retrata essa cena é tão forte, e de tamanha profundidade, que parece real, podendo fazer o leitor sentir a emoção do personagem Saúna, como no diálogo que este tem com o mar, quando suas ondas o açoitaram ao chão:

Tu também meu amigo?

Eu que levei a vida a labutar contigo...

Tu também contra mim, fazendo guerra,

Como os homens em terra?

Você deve ter dó da minha desfortuna.

Devia dar meu rasto. E, no entanto, a Saúna

Mete os pés deste modo. Ingrato mar!

(SALLES, 1981, p.202)

A sorte de Saúna foi-se embora, agora só o azar faz parte dos seus dias depois que fora “enfeitiçado”. “O velho” acaba convencendo-o de que foi o sangue-mau de Teresa que o fez cair em desgraça: “É mentira. Não creia./Não se canse em deitar presente à sereia./Rasto no mar? ... História./Eu lhe digo a verdade./O mal é outro e velho./(...)./Este mal tudo aniquila e arrasa./Este mal você tem dentro de casa” (SALLES, 1981, p.213).

E foi assim que Saúna, como todo pescador supersticioso, passou a acreditar que sua infelicidade vinha do “Sangue-mau da mulher./ Bonita, muito boa, e fiel... mas que quer?/ Sangue-mau, eis o caso” (SALLES, 1981, p.213). Convenceu-se que só conseguiria a cura se deixasse Tereza. Saiu de casa, abandonou a esposa à própria sorte. Ele realmente acreditara que a mulher foi seu castigo, sua praga, seu azar, um mal que reduziu seu corpo a “osso e pele” e o fez perder todo dinheiro que tinha; foi-se embora, pois não podia habitar aquela casa maldita onde a desgraça – Teresa – habitava.

Esse preconceito em torno da mulher aconteceu de várias formas. Constitui-se como verdade que o gênero feminino não tinha corpo nem rosto, apenas sexo para a procriação. As imagens femininas que visíveis no acervo discursivo brasileiro (mais antigos) situam-se nos papéis de esposa e mãe, identidade inquestionável de toda mulher de bem na tradição da cultura ocidental. Quando esses papéis perpassam essa identidade, a mulher é vista como um indivíduo degenerado, que transgrediu as leis da moral e do bom costume.

A mulher doce e angelical que se cultuava nas poesias do passado, nos primeiros romances, nos folhetins, era a mulher idealizada, subalterna às regras, submissa ao homem. Destarte, alguns autores começaram a criar outras personagens femininas, associadas a uma visão aparentemente negativa, na qual sua sexualidade as colocava numa postura sedutora e cruel, cujas vítimas eram os homens. Portanto, quando as narrativas não colocavam a mulher como mãe, pura e submissa ao homem, a colocava como sensual, diabólica, capaz de fazer ou trazer o mal para a sua vida.

Assim foi se perpetuando conceitos e preconceitos sobre a mulher relegando-lhe um lugar equívoco de inferioridade. A mulher com sua cobiça carnal insaciável atingia nocivamente o homem, cuja sexualidade é ponto de vulnerabilidade, é por aí que ele cai em tentação. O homem é inocente. A mulher é pecadora. E, como já foi dito, essa idéia de pecado veio da religião, que aconselha os homens a desviarem seu olhar da boniteza feminina: “Desvie seu olhar de uma mulher bonita e não fite uma beleza que não pertence a você. Muitos já se perderam por causa de uma mulher, porque o amor por ela queima como fogo” (ECLESIASTE, 9, 8). Essa idéia se perpetuou. Em algumas culturas mais que em outras, mas em todas elas há sempre um olhar de superioridade em relação ao homem sobre a mulher.

E como em outras histórias em que se retrata a mulher bonita e sensual como diabólica, como uma serpente do mal, portanto, como sangue-mau, esse poema narrativo, dramático, conta a história de uma delas, uma sereia capaz de encantar todos os homens, fazê-los cair aos seus pés, mas que também podia destruí-los, levá-los à ruína. Teresa, a personagem central da narrativa, grávida e sozinha, pagou o preço por sua “boniteza maldita”. O sofrimento foi tanto, que ela também passou a acreditar que tinha um sangue mau; teve a chance de sair da miséria através de Mareta, um pescador que a amava, mas não o fez. A infeliz chegou a pedir ao mar que esgotasse de suas veias, uma a uma, as gotas daquele sangue desgraçado.

Sozinha, destruída pelo “seu sangue-mau”, Teresa já não podia mais “esplandecer a gruta do coração dos pescadores”, então, desapareceu na enchente. Sua beleza causou “azar” também para ela, levou-a a morte. Enquanto isso, Saúna vivia feliz, pois agora encontrou no sangue-bom de Sofia a saúde, a fartura, a alegria. Sofia que, ao contrário de Teresa, era “alta, extremamente magra, caolha, os cabelos avermelhados e poucos, arranjados em trunfa, a face desbotada e inexpressiva” (SALLES, 1981, p.246); era tão feia que a apelidaram de “Sofia fantasma”. Isto é algo interessante na narrativa porque, geralmente, os conceitos e preconceitos ligam a idéia de beleza à infidelidade, e de feiúra à fidelidade, mas no poema ocorre que Sofia, apesar de muito feia, consequentemente menos desejada, era infiel, enquanto Teresa era bela e fiel ao seu amado.

A vida de Saúna agora era outra, pois Teresa não mais o assustava com a força de sua beleza, ele agora se sentia novamente um rei, e se achava dono da situação. Nesse contexto, é possível dizer que a narrativa do poema parte da idéia preconceituosa do povo daquele litoral de que a beleza feminina advém do mal, e é capaz de seduzir o homem, enfraquecê-lo e levá-lo à desgraça. Essa crença foi metaforizada no título do poema Sangue-mau, que é a crença dos pescadores de que o sangue-mau da bela mulher amada fatalmente trará o mal para a vida do seu homem.

Esse é apenas um dos vários (pre)conceitos que foram se formando ao longo da história, da humanidade em relação à mulher que, felizmente, tem conseguido diminuí-los. Porém, apesar de muitas vitórias, ainda há muito a ser conquistado. É necessário que autores, a exemplo Machado de Assis, Aluisio Azevedo, Arthur de Salles, possa estar colocando em pauta situações vividas pelas mulheres em seu percurso ao longo da história, para que se possa refletir o quanto os preconceitos são nocivos à vida de qualquer ser humano.

Arthur Gonçalves de Salles é um dos representantes da fase de transição pré-modernista; também foi um dos fundadores da Academia Baiana de Letras, onde ocupou cadeira de número 03 (GAMA, 1981, p.07), mas não conseguiu se situar como cânone em nossa literatura. Segundo Veiga, ser baiano fora prejudicial a Arthur de Salles no que concernia a divulgação de sua obra, apesar do poeta ter olhado além dos horizontes de sua província, ter se deixado influenciar por outras leituras, e ter acolhido influências tanto simbolistas quanto parnasianas que, provavelmente, foram benéficas ao seu trabalho:

Embora radicado em sua província, circunstancia que prejudicou a divulgação de sua poesia, alargou os seus horizontes para além da província. Conservou-se fiel a Castro Alves, mas voltou-se também para poetas mais recentes, de outros estados, como Cruz e Souza, e de outros países, como os simbolistas e parnasianos franceses. Pertenceu à comunidade dos grandes escritores que não se arreceiam em deixar-se influenciar por necessárias e fecundas leituras. (VEIGA, 1986, p. 124-125)

Ao escrever este belíssimo poema-narrativo, Salles contribui para uma reflexão sobre as diversas culturas dentro de uma mesma sociedade; no Brasil, composto de uma diversidade rica e historicamente miscigenada, onde se integram vários olhares, etnias e situações sociais, climáticas, religiosas e econômicas, há uma miríade de possibilidades para estudos culturais.

No contexto específico da obra trabalhada vê-se a cultura de um povoado litorâneo em pauta, ricamente trabalhado e, fonte inesgotável de interpretações e reflexões. Um estudo sobre o autor traz à tona à idéia de que este pretendeu ser um poeta popular e interpretar a alma do seu povo. Percebe-se que o autor escrevia com cuidado e riqueza vocabular, numa incrível engenhosidade, parecendo querer chegar à perfeição; esta é uma característica parnasiana, mas isto, porém, não inibiu seus impulsos, pois se percebe que o autor escreve com a alma, uma alma sonhadora e amorosa, livre pra se deixar levar pelas emoções. Entretanto, deixar-se levar pelas emoções não é ser banal, é saber captar nas linhas e entrelinhas da vida, situações peculiares, pertinentes, que trazem possibilidade de reflexões sobre a vida e os vários contextos culturais em que vive o ser humano, como se vê registrado nesta obra prima de Arthur de Salles.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFIA:

BÍBLIA SAGRADA. São Paulo: Sociedade Bíblica Internacional e Paulus, 1990, p. 908/922.

DUARTE, Rosinês de Jesus. De Passé a Candeias: uma viagem através do vocabulário. Orientada por Célia Marques Teles. Salvador, Universidade Federal da Bahia, 1981.

SALLES, Arthur de. Sangue-Mau. GAMA, Nilton Vasco da (coord.). Edição crítica. Salvador: Universidade Federal da Bahia, 1981.

VEIGA, Claudio. Prosadores e poetas na Bahia. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1986.