A mulher desencarnada
A mulher desencarnada
“Alguma coisa terrível aconteceu... não consigo sentir meu corpo... eu me sinto esquisita... desencarnada...” (Christina-paciente)
Oliver Sacks, autor do livro: “O homem que confundiu sua mulher com um chapéu”, relata nos textos que inseriu em seu livro, casos específicos de pacientes que sofreram perdas sensoriais e perceptivas, como a propriocepção e doenças congênitas ou de ordem traumática, via acidentes ou inflamações graves. O que ele nos coloca, a saber, sobre tais casos, são as curiosidades dos mesmos e peculiaridades da evolução clínica e pessoal.
Especificamente neste texto/caso a que me refiro no início, “A mulher desencarnada”, trata-se de uma paciente que estando aos cuidados de um hospital devido a um diagnóstico preciso e cálculos biliares, aguardava a cirurgia, já medicada de acordo com os procedimentos pré-operatórios. O que o Dr. Sacks revela em seu relato, seria sua surpresa e perplexidade perante o que se deu depois da internação da mesma.
Christina, uma mulher ativa, já mãe e de bom preparo físico, procurou cuidados médicos devido às dores que sentia no abdômen. Examinada, descobriu-se que se tratava de cálculos na vesícula biliar, o que lhe causava muito mal estar. O cirurgião em uma conversa entre médico e paciente, disse que ela precisava passar por uma intervenção cirúrgica para remoção da vesícula. Até então, coisa que para ela parecia normal, causou-lhe uma inquietação. Dias antes da cirurgia, já internada, passou pelos procedimentos pré-operatórios, como interrupção alimentar e de água, ingestão de medicação de antibióticos. Quando adormeceu, sentiu-se como se não tivesse em seu corpo, tentava tocar, sentir, mas era como se flutuasse sobre o mesmo. Quando acordou, informou o médico sobre seu pesadelo, e este, a tranqüilizou, embora preocupado, que seria normal este comportamento diante de uma situação como esta, diferente para ela. Seu quadro de ansiedade fora do normal, talvez estivesse reproduzindo um comportamento confuso em relação a seus próprios sentidos, como a histeria. Mas, para a surpresa de Christina e também dos médicos, inclusive de um psiquiatra, seu pesadelo se tornou real, seus comandos de voz, movimentos de pernas, braços e visão já não correspondiam ao normal. Em um desabafo ela disse com uma voz meio que fantasmagórica: “alguma coisa aconteceu... não consigo sentir meu corpo... eu me sinto esquisita... desencarnada!”
Realmente, neste desabafo, ela indica o que está acontecendo com ela. Em uma explicação mais técnica, interrogado por médicos residentes, Dr. Sacks revela que poderia sim ser uma histeria, conforme o Psiquiatra havia subentendido, mas também o preocupou o fato de Christina continuar a sentir as coisas, mas de um jeito diferente, não havia dor, mas uma interrupção dos sentidos, ou melhor, a propriocepção estava falhando, como se seus sentidos não tivessem mais uma direção. Seus movimentos e voz não acompanhavam sua “vontade”, enternecera.
Para entender o que se passava com esta paciente, Dr. Sacks e uma equipe do hospital, reavaliaram a mesma deste seu primeiro diagnostico e perceberam que ela sofrera uma neurite, um processo inflamatório grave, é uma lesão inflamatória ou degenerativa dos nervos, da qual decorre paralisia e compromete a atividade no sistema nervoso, que num quadro de ansiedade fora do comum, poderia sim causar sérios danos nas células sensórias de Christina, como a perda da propriocepção, que seria a ausência da sensibilidade própria aos ossos, músculos, tendões e articulações e que fornece informações sobre a estática, o equilíbrio, o deslocamento do corpo no espaço, fazendo com que a paciente não sinta mais dentro de si mesma, como ela mesma fala: “sinto, que meu corpo está cego e surdo, para ele mesmo...”, esse silêncio sensorial à qual está condenada, causar-lhe-ia um grande transtorno em sua vida. A falta de percepção dava a impressão de estar realmente fora do seu próprio corpo. Havia os sentidos, mas estes não mais correspondiam ao que lhe foi adquirido e aguçado com o passar dos anos. Talvez danos irreparáveis, ou com significativa evolução.
Sabe-se, por meio de estudos científicos, que a perda ou ausência de um dos órgãos dos sentidos, faz com que outro tente suprir a falta do mesmo, mas não o substitui, pois cada um é responsável por uma parte sensorial. O que muda a maneira que se percebe no ambiente e o que sofrerá mediante a sua evolução, pois o que nos é dado como comportamento inato, pode às vezes ser alterado, modificado, aguçado, mas nem sempre corresponde em alguns casos. Como casos de pacientes que perderam um órgão do seu corpo, e continuam a senti-lo, mas não o vêem ou tocam. O que nos faz sermos, quem realmente somos como agimos e nos locomovemos, como interagimos em nosso “meio”, são nossos sentidos, movidos por meio da percepção, que seria o acto de apreender pelos sentidos, uma reação de um sujeito a um estímulo exterior, que se manifesta por fenômenos químicos, neurológicos, ao nível dos órgãos dos sentidos e do sistema nervoso central, e por diversos mecanismos psíquicos tendentes a adaptar esta reação a seu objeto, como a identificação do objeto percebido (ou seu reconhecimento), sua diferenciação por ligação aos outros objetos.
Para a psicologia, a neurociência e ciências cognitivas, percepção é a função cerebral que, atribui significado aos estímulos sensoriais, a partir de histórico de vivências passadas. Através da percepção um indivíduo organiza e interpreta as suas impressões sensoriais para atribuir significado ao seu meio. Consistem na aquisição, interpretação, seleção e organização das informações obtidas pelos sentidos. A percepção pode ser estudada do ponto de vista estritamente biológico e/ou fisiológico, envolvendo estímulos elétricos evocados pelos estímulos nos órgãos dos sentidos. Do ponto de vista psicológico ou cognitivo, a percepção envolve também os processos mentais, a memória e outros aspectos que podem influenciar na interpretação dos dados percebidos.
O que aconteceu com Christina, já aconteceu com outras pessoas de maneira diferente, porém com perdas irrecuperáveis, outras reversíveis ou passivas de evolução clínica, mediante tratamento. Ela iniciou um tratamento e, aos poucos foi recuperando alguns movimentos, e também a percepção leve em alguns sentidos, como andar, sentar, falar, mas tudo de maneira ensaiada, quase que treinada. Sua voz soava meio teatral e seus movimentos sutis e lentos, meio desajeitados, sua visão ainda não estava normal, o que lhe causava certo desconforto ao andar e ler era muito difícil, mas seu quadro clínico evoluiu muito, o que foi considerado importante devido suas perdas.
Muitos não conseguiram essa evolução e ficam estagnados em sua vida “fantasma” dependendo de outros para viver.
Estamos inseridos em uma busca pela compreensão de alguns fatos invisíveis ao entendimento concreto. A ciência da Psicologia e outras, como a neurologia, nos direciona e nos dá parâmetro ao que é e o que não é palpável. O que é extra-sensorial está além do que vemos. O pesadelo de Christina é um indício deste sentido. Para a psicologia e psicanálise, trata-se de algo a ser estudado e avaliado de acordo com a “importância” e grau da referida perda. Muitos que não tiveram ou não terão a oportunidade de receber um tratamento como o que Christina recebeu, são deixados de lado, ignorados e esquecidos. Processos como estes, que não receberam o devido cuidado passam despercebidos por muitos, mas não de quem tem que “sobreviver” com esta perda. Os que mesmo estando vivos, se sentem como mortos.
Bibliografia
Sacks O. “O homem que confundiu sua mulher com um chapéu”. 1ª Ed SP Cia das Letras, 1997
Texto sugerido: “A mulher desencarnada”
Bibliografia complementar
Myers, D. Intr. geral à Psicologia. RJ LTC, 2006 – Capítulo “Sensação e Percepção”
Atkinson, RL et. AL Intr. à Psic. (Hildegard) 13ed. Porto Alegre Artmed, 2002. Cap 4
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