A CONSTRUÇÃO DA ESCRITA

Em uma análise dos textos de Cagliari (2001), Emilia Ferreiro (1997) e Iselda Feil (1993), respectivamente, verifica-se a exposição de idéias desses três autores de modo a desmistificar “preconceitos lingüísticos”. Quanto ao complexo processo de “Construção da Escrita”, seus textos visam sintonizar o pedagogo no sentido de lidar com os alfabetizandos, numa perspectiva, antes de tudo, aproximadora de alunos e mestres.

No capítulo “A Lingüística e o ensino de Português”, Cagliari (2001), ao retratar “A realidade lingüística da criança” afirma que com três anos esta é capaz de interagir com outras de sua idade e com adultos, assimilando os assuntos plenamente. E a assimilação é desenvolvida gradativamente, partindo do estágio em que esta criança usa circunlocuções para expressar o que ainda não permite seu léxico disponível. O autor menciona dificuldades específicas de aquisição da linguagem, para as quais concorrem problemas biológicos sérios, ocasionados por patologias neurofisiológicas. Para tais distúrbios bloqueadores do mecanismo da linguagem, já que o organismo se ocupa com eles em detrimento do processo intelectivo, Cagliari mostra alternativas ao alfabetizador de trocar experiências, aprender em meio às “insuficiências” dos alfabetizandos, que não raro, subsistem e alcançam êxito em sua produção.

Cagliari (2001), discorrendo sobre “O que é ensinar Português”, admite que as escolas tomam uma postura similar à que se ministra no ensino de línguas estrangeiras, ou seja, apegam-se à gramática normativa e à metodologia de exigir redações e fichas de leitura, isso em 1º e 2º graus e nos vestibulares. Questiona que a capacidade de manipulação dos fatos semânticos está expressa nas atitudes das crianças: na língua P, nas metáforas, nas argumentações lógicas. Então, a “burrice” das crianças, com relação à ortografia das palavras, nada mais é do que um apego dessas crianças às formas fonéticas da língua. O que evidencia que os dialetos devem ser adaptados às circunstancias do falante, e não banidos.

Ao abordar “O mundo da escrita”, Cagliari (2001) explicita esta como um fato cotidiano, visado no ensino de português mais pela aparência do que pelo que realmente faz e representa. No tocante às cartilhas, observa o autor que os professores dizem seguir o sistema alfabético. Em nível histórico, à medida que um sistema alfabético é utilizado por um grande número de pessoas em lugares diferentes, a forma das letras do alfabeto passa a admitir variantes (o latim, por exemplo, não tinha letras minúsculas; a escrita cursiva surgiu na Idade Média). Uma mesma letra, portanto, assume várias grafias – AAA a A..

Letra de forma e letra cursiva são motivos de debates nas escolas, uma vez que se chegue a proibir a de forma. Muitos professores supõem que se a criança começar escrevendo em letra de forma, esta terá de aprender a escrita cursiva em seguida, ou seja, o trabalho de ensinar é dobrado. Para Cagliari, isso configura um mito na educação, ao que explicita: “o sistema cursivo é o mais complicado dos sistemas de escrita que existem no mundo, porque varia enormemente, seguindo as idiossincrasias de cada usuário (...) só é menos difícil para quem está acostumado com o escrever e com o modo de traçar as letras de quem escreveu”.

Em “A história da escrita”, Cagliari (2001) divide a evolução desta em três fases: a pictórica (apresentada através de desenhos ou pictogramas), a ideográfica (apresentada através de desenhos especiais, os ideogramas que perderam traços de suas figuras a tornarem-se convenções da escrita) e a alfabética. Ao que vale recordar que os pictogramas não se associam a sons, mas à imagem representada, consistindo em simplificações de objetos da realidade. Já os ideogramas são o estágio anterior a nosso alfabeto, sendo as escritas ideográficas mais importantes a egípcia, a mesopotâmica, as da região do mar Egeu e a chinesa (da qual provém a escrita japonesa). A fase alfabética caracteriza-se pelo uso de letras, assumindo a representação puramente fonográfica. Nessa, os sistemas mais notáveis são o semítico, o indiano e o greco-latino (do qual provém o latino e o cirílico, originador do russo). Quanto à representação fonética, o sistema alfabético é o mais detalhado, uma vez que representa os sons da fala em unidades menores que a sílaba.

Ao explanar “O que é ler”, Cagliari (2001) realça, inclusive, que “É muito mais importante saber ler do que escrever. O melhor que a escola pode oferecer aos alunos deve estar voltado para a leitura”. E a leitura é definida como extensão da escola na vida das pessoas, sendo a maioria da assimilação de vida apreendida na leitura fora da escola. A abrangência da leitura está em todas as ciências; um indivíduo pode saber as regras de divisão, multiplicação e fórmulas, caso não saiba interpretar o exercício matemático, acepção da leitura, não haverá condições de resolução desse exercício. Aliás, a leitura não é, nem deve, estar restrita à literatura e ao noticiário.

Os fatos semânticos, culturais, ideológicos, filosóficos, fonéticos, acompanham a complexidade da leitura (sendo esta realização do objetivo da escrita). E existem as leituras superficiais, as lúdicas, as cinéticas, as científicas. A leitura não adquire uniformidade perante os leitores, mesmo sendo cientifica; cada um interioriza e assimila o que lê de modos distintos.

Para Ferrero (1997), participante do Projeto Principal de Educação para a América Latina e Caribe: “Conseguir antes de 1999 a escolarização de todas as crianças em idade escolar” constitui (constituiu) o primeiro objetivo de tal projeto. Essa autora cita a má qualidade da educação primaria latino-americana e caribenha como expressa em elevadas taxas de ingresso tardio na escola, repetência, deserção temporária e deserção definitiva e prematura. Nota, ainda, que as maiores taxas de repetência se situam nas três primeiras séries do 1º grau, sendo verificadas no Brasil cifras excessivas.

Ferrero (1997) aponta “o prazer da leitura” e “a compreensão das funções da língua escrita na sociedade” como objetivos da educação de qualidade; critica a ênfase voltada para a ficção no que tange ao prazer da leitura. Isso porque a escola tende a esquecer-se de textos informativos, influenciando no déficit de leitores críticos. A língua escrita é um objeto de aprendizagem. Portanto, é importante na escola por ser importante fora da escola, e não o inverso.

As diferenças educativas são bem visíveis entre crianças pobres e ricas, sendo que as primeiras freqüentam instituições públicas de ensino e as segundas as particulares. É recorrente que as crianças pobres sejam impedidas de aproximar-se da língua escrita, enquanto as que freqüentam escolas particulares sejam obrigadas a alfabetizar-se antes dos 06 ou 07 anos. Para Ferrero (1997), introduzir a língua escrita é fazer com que nenhuma metodologia tradicional predomine.

E Feil (1993) ressalta que a escrita “deve surgir do interesse e curiosidade natural da criança”. Para esta autora, o caderno de caligrafia, muitas vezes, tolhe a expressão criativa do alfabetizando. Daí defender o traço livre como etapa evolutiva de movimentos fluentes e contínuos do alfabetizando que não deve estar “restrito” a colorir desenhos feitos pelo professor – já que pode estereotipar movimentos e banir a imaginação infantil no que se relaciona a cores.

Falando em “forma de letra”, Feil (1993) defende o uso da letra cursiva pelo alfabetizando, contando que na letra script “encontram-se letras muito semelhantes, o que gera confusão”, devendo o professor ensinar o correto movimento da escrita. Esse correto movimento da escrita não deve ser confundido com a violência contra a caligrafia da criança. O privilégio precisa ser voltado “ao que se escreve” em detrimento de “como se escreve”. Esse pensar da autora rebate coma idéia de Cagliari (2001), que defende o ensino da letra de forma.

Feil (1993) relata a confusão feita por pais e, não raro, alfabetizadores, de produtividade escolar com cópia. Vê-se, erroneamente, na escrita repetitiva o desenvolvimento da alfabetização. Mas recursos como desenho, painéis, modelagem são tão ou mais eficientes como a escrita no sentido de documentar o aprendizado, sabendo-se que tais estágios sejam assimilados após observação e experimentação do alfabetizando, conforme conceituação da autora.

Defendendo a escrita como um registro de conteúdos sociais, Feil (1993) sugere uma sucessão de táticas e materiais para uma alfabetização “sem amarras” ao desempenho pessoal do aluno. Relatórios de visitas, excursões, experiências, acontecimentos, de filmes assistidos, do fim de semana, experiências realizadas, composição criadora (através de estórias e artes plásticas), histórias em quadrinhos, histórias inacabadas, são exemplos para o professor direcionar o aluno no sentido de registrar conteúdos.

O processo que rege “A Construção da Escrita” é, por tudo isso, a construção da sociedade, a organização comunitária, o respeito a regras gramaticais e de ordens diversas, desde a fisiologia dos indivíduos até seu modo de integrar o espaço.