Corpo, Comunicação e Cultura
SIQUEIRA, Denise da Costa Oliveira. Corpo, comunicação e cultura: a dança contemporânea em cena. Campinas, São Paulo: Autores Associados, 2006.
CORPO, COMUNICAÇÃO E CULTURA
O presente trabalho se presta a resenhar descritivamente a obra aqui intitulada, levando o corpo enquanto elemento crucial na produção da dança de modo a comunicar-se este corpo e expressar a cultura. Composto de nove capítulos, tal livro explana, nessa ordem, comunicação e complexidade (uma abordagem); corpo (instrumento de comunicação construído culturalmente); dança (objeto de estudo técnico e estético); do balé à dança contemporânea (corpos e técnicas em rede); o corpo urbano; o corpo identidade; o corpo-imagem; o corpo desconstruído; o corpo em risco.
O conceito de corpo evolui com o passar dos tempos. Assim, enquanto foi alvo de críticas, tido sob o ângulo de punição para os “infratores” durante a Idade Média, passou a ser focalizado pelo prisma estético na contemporaneidade abarcando para adquirir a almejada estética os quesitos da tecnologia. Há a dicotomia da relação corpo/alma, já que o primeiro é uma matéria fadada à morte, à deterioração em oposição à alma que é tida como infindável, desconhecida quanto às suas proporções. Nesse sentido, pontua Siqueira (2006, p.56):
Focault questiona, então, a que seria dirigida a punição, já que não mais atingiria o corpo com a mesma intensidade do período dos suplícios. Se não é ao corpo, é à alma que se volta a punição. “A expiação que tripudia sobre o corpo deve suceder um castigo que atue, profundamente, sobre o coração, o intelecto, a vontade, as disposições”. Essa mentalidade, forjada no século XVIII, reformula as formas de vigilância e dos que não seguem regras convencionais juridicamente. “O corpo e o sangue, velhos partidários do fausto são substituídos. [...] o aparato da justiça punitiva tem que ater-se, agora, a esta nova realidade, realidade incorpórea.
A autora questiona o supracitado, uma vez que persistam os métodos agressivos à ordem dos grupos sociais das prisões que afastam o “transgressor” da sociedade, maltratam o corpo deste, e conseqüentemente, a mente e os princípios de cultura dos mesmos, sendo visto o mau-trato corporal mesmo aos “menores infratores”.
Quanto às concepções de corpo, na separação entre parte física, material e a impalpável, psicológica, Siqueira (2006, p.59), pontua:
Os estudos atuais do corpo tendem a compreendê-lo de uma forma mais complexa: corpo físico, ligado à psique, à alma, ao espírito e submetido às regras sociais e culturais. O corpo, do qual provêem e se expressam as sensações, é a um só tempo físico, psíquico, cultural, social e tem como modelo o corpo do outro. Culturalmente, o corpo é símbolo e signo, portador de mensagens, de atos físicos e psíquicos. Como produto social e paradigma de práticas culturais, nele a sociedade constrói significado e espelha-se. / No mundo contemporâneo, em que predomina a imagem e, por ela, são transmitidos valores sociais, o corpo tornou-se objeto de consumo que deve ser preservado pelos tratamentos propiciados por planos de saúde e por produtos cosméticos, garantido por seguros de vida e de acidentes. Modelos e atletas fazem seguros de partes do corpo, afinal, são garantia de sua renda, de seu salário.
Neste contexto capitalista de “propaganda” do corpo, ou uso deste primando pela estética, a ginástica, confundida com educação física é tida como um meio de disciplinar e dar forma ao corpo, para que o indivíduo sinta-se adequado aos parâmetros corporais da sociedade, o que acaba por tirar a primazia de se praticar esportes por prazer, atividade lúdica, que garante melhor saúde ou longevidade.
Ademais, há cirurgias, os meios tecnológicos de se virtualizar o corpo, numa lógica de artificialidade para obtenção de efeitos estéticos desejados. Conforme Siqueira (2006, p.60):
Paralelamente, o corpo revela-se uma fonte privilegiada para estudo dos valores e “tendências” atuais. Seu estudo, hoje, requer uma visão transdisciplinar dos pressupostos teóricos. Vários são os campos de experiência que tratam da questão, entre eles o material, o social e o cultural. Reconstruído, docilizado por cirurgias, educação física, dietas, medicamentos, políticas de saúde, o corpo é impregnado de tecnologias e, por extensão, de cultura.
Passando para a abordagem da dança enquanto comunicação social – já que é uma expressão rítmica obtida pela sincronia de movimentos dos coreógrafos, acoplados a técnicas de som, de luz, de sintonia com o público por vezes – pode-se dizer que esta é tão ou mais sistemática que o processo da linguagem verbal, visto que a linguagem verbal pode ser feita no diálogo entre o falante e seu interlocutor, ao passo que uma dança coordenada, seja uma sintonia entre fatores diversos, na atualidade, ajudadas por recursos tecnológicos. Do aqui exposto, conforme Laban (1978) apud Siqueira (2006, p. 78):
Os bailarinos de todos os tempos e em todos os países pensaram e ainda pensam usando as indicações de movimentos essencialmente: espaço, tempo e energia. Por exemplo: todas as posições, passos e gestos do balé clássico podem ser descritos em termos de movimentos, sem que se faça menção aos nomes que convencionalmente lhe são atribuídos. Constituem uma forma estilizada e específica do vasto tesouro de movimentos possíveis ao corpo humano, o que é válido também para qualquer outra forma de estilo de dança nacional, de época ou histórica, incluindo aqui as danças exóticas. Cada estilo representa uma seleção especial de movimentos originados em características de épocas sociais, raciais e outras. Os movimentos livres do artista de teatro contemporâneo abarcam quaisquer das possíveis combinações de ações corporais.
O presente trabalho explana o corpo, no ato de dançar de forma mais sistemática, ou seja, planejada, como um “feito do artista”, uma vez que o movimento dançado ultrapassa o trabalho físico. Através de depoimentos de coreógrafos de renome como Márcia Milhazes, Lia Rodrigues, Deborah Colker, Paulo Caldas e João Sardanha, dos espetáculos de dança de São Paulo e Rio de Janeiro, em contato com os trabalhos de campo destes, Siqueira (2006) conclui ser este trabalho uma busca para se entender o corpo e seus movimentos no espetáculo de dança, isto do ponto de vista comunicativo, tendo por canal a linguagem contemporânea que se expressa por signos e símbolos não-verbais construídos a partir do movimento, tais como os reflexos conscientes ou inconscientes da sociedade e de seu imaginário, numa síntese de pensamentos.
A autora observa que a dança contemporânea nas companhias estudadas é de cunho abstrato, não apresentando compromisso com narrativa ou dramatização de eventos. Pontua, ainda, que é utilizado em algumas companhias um vocabulário inspirado na dança clássica, mas que os passos sofrem modificações, sendo desconstruídos de forma a sintetizar valores e comportamentos. Siqueira (2006) fala de uma possível reprodução de gestos na companhia de Deborah Colker, mas em que o esforço interpretativo não é facilitado por leituras dramáticas.
Quanto ao uso de tecnologia no palco de atuação dos mencionados coreógrafos, a autora pontua que estes vêem de forma crítica as tecnologias, usando mais freqüentemente o vídeo e tomando o cuidado por não forjarem “possíveis falhas humanas” com equipamentos técnicos.
Sendo o corpo algo “vivo e mutante”, a dança é um meio de expressá-lo, mostrando o que ficaria oculto no tempo e que não fica totalmente registrado em câmaras digitais outros meios tecnológicos, vista sua dinâmica. Uma cadeia de movimentos gerados numa dança não pode ser focalizada de forma global pelos meios eletrônicos. Conforme Siqueira (2006, p.215): “a dança é um discurso que não somente tem um conteúdo, mas que tem uma forma também portadora de elementos/sentidos ‘locais e universais’ é uma síntese de conhecimentos técnicos, corporais, filosóficos e culturais, inteligência coletiva”. Essa gama de fatores aqui mencionada permite a movimentação do corpo de modo a criar pensamentos em comum de acordo com o contexto da época.