“1822”

“1822”

Os livros colegiais, nos anos 70, narravam a História do Brasil com um forte que de irmãos Grimn e La Fontaine.

E então... Pedro Álvares Cabral descobriu o Brasil. Plim. E então... D. Pedro I proclamou a independência. Plim.

Bem aventurados os que se depararam com a jazida sob o primeiro plim. Ganharam o que se pode chamar de consciência histórica. Afortunados os que se encontraram com a obra “1822”, de Laurentino Gomes, pois a riqueza de seu trabalho mata dois coelhos com uma única pedrada. Primeiro, pulveriza o segundo plim, depois, corrobora ainda mais a tese de que toda consciência é elástica. O que equivale dizer expansão dos horizontes. Graças à pesquisa realizada pelo autor podem-se contemplar círculos e mais círculos de tempo em torno de 1822, cada círculo está repleto de fatos que, uma vez absorvidos, agem na mente tanto no vislumbre do passado como auxiliam na compreensão do Brasil presente. Ora, a consciência elástica permite também um estado de relaxamento, no sentido de sensação aliviante. É que fomos acostumados com plins. Por isso, toda vez que nos deparamos com o noticiário, levamos um susto.

“No ano de sua independência, (...) de cada três brasileiros, dois eram escravos (...). Uma população pobre e carente de tudo, que vivia à margem de qualquer oportunidade, (...) dominada pelo latifúndio e pelo tráfico negreiro. O medo de uma rebelião dos cativos assombrava a minoria branca. O anafalbetismo era geral. De cada dez pessoas, só uma sabia ler e escrever. Os ricos eram poucos e, com raras exceções, ignorantes.”

Um dos inúmeros touchées de Laurentino começa logo na dedicatória: ”Para todos os professores de História do Brasil, no seu trabalho anônimo de explicar as raízes de um país sem memória”.

O autor classifica a presente obra, praticamente uma seqüência de “1808”, como livro-reportagem, que vem a ser fruto de três anos de pesquisa em mais de 170 livros, sem mencionar outros documentos e que ganha mais vigor por estender tal levantamento ao chamado trabalho de campo, vide as visitas em locais emblemáticos dos acontecimentos citados.

“Se tu falas muito, palavras sutis, se insulflas, agitas ou tramas ardis, a lei te vigia, bandido infeliz, com seus olhos de raio xis...”. Existe uma gravação antológica dessa música – Chico Buarque e A Cor do Som, de 1979 ou perto disso, que caberia como uma luva se fosse possível reproduzi-la no cenário de 1808, data da chegada de D. João VI ao Rio de Janeiro, pois até então, e durante três séculos inteiros o Brasil viveu sob uma censura férrea, qualquer expressão passava antes por três instâncias, e se você pensa que episódios como o esquartejamento de Tiradentes foi uma ação isolada vai descobrir que esse refinamento destinado a pensadores rebeldes significava uma praxe aplicada contra todo aquele que tramasse contra a Coroa.

Com uma mão desse calibre pesando sobre uma miscigenação de raças, idéias e carências tão vastas nasceu o nosso país, que segundo o autor, tinha tudo para dar errado.

“1822” é no mínimo um avanço no panorama geral das edições, grande parte delas voltada ao segmento de auto-ajuda, aventuras de vampiros e frivolidades que beiram o rés do chão. Laurentino deu um upgrade na abordagem da compreensão da nossa história, esquecida, tripudiada, legada aos nichos acadêmicos ou transformada oficialmente em contos da carochinha.

Através de narrativa ágil e precisa, figuras como Pedro I, José Bonifácio, Imperatriz Leopoldina, e segue extensa e não menos profícua lista de indivíduos, todos finalmente adequados ao status de seres de carne e osso. Os protagonistas da independência, antes de mais nada, são vidas em transformação em determinado tempo e espaço, ora pegas de surpresa, ora voando às cegas, e impelidas por forças as mais diversas, mas cujas ações traçaram o destino de uma coletividade. Esse upgrade se estende também ao âmbito dos historiadores, pois se o autor passa pelos clássicos, como Otávio Tarquínio de Sousa e Sérgio Buarque de Holanda, realça com justeza os modernos, inúmeros, trazidos à baila, os que nos últimos anos lançaram mais esclarecimentos para um país que, se comparado com a América do Norte, esta completamente no escuro no que tange a documentação dos tempos idos.

“Entender o passado em toda a sua complexidade é uma forma de adquirir sabedoria, humildade e um senso trágico a respeito da vida”. Palavras do historiador americano Gordon S. Wood e usadas por Laurentino na introdução, que sabiamente tece a melhor das comparações entre os dois países. “Descobertos” ao mesmo tempo e com independências não muito distantes uma da outra, todo estudante de segundo grau se depara com a mesma indagação - o motivo do abismo entre uma civilização e outra. Para começo de conversa, em 1668 já havia universidade na colônia inglesa. Por aqui, somente no século XX. Eis um dado sintomático sobre como as coisas foram conduzidas, desde o início.

Com 25 capítulos espalhados em 352 páginas, esse best-seller revela os bastidores por trás do Grito do Ipiranga e deve saciar todo brasileiro e brasileira com sede de conhecer um Brasil além de praias&ronaldos&bumba-meu-boi.

Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 04/01/2011
Reeditado em 22/08/2012
Código do texto: T2707838
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