No Trem Parador com Ferreira Gullar
Comprei o livro "Em alguma parte alguma" na livraria da Travessa, dentro do CCBB da Rua Primeiro de Março, no Centro do Rio de Janeiro. Deu vontade entrar no CCBB, pois quando passo perto de lá sinto uma transformação acontecer em minha mente. Os pensamentos sobre negócio, trabalho etc, são empurrados prá escanteio, e um sentimento de Arte me invade.
Subi as escadas pelo lado da Candelária pois dá aquela impressão de uma entrada "triunfal" no CCBB, uma entrada mais imponente.. ou seja.. parece que a gente mergulha mesmo em um ambiente aromatizado pela Arte...
A livraria da Travessa fica ali, bem na entrada do CCBB. Como para mim é impossível entrar em uma livraria e sair de mãos abanando, comprei "Em alguma parte alguma", livro recém publicado de Ferreira Gullar. Na verdade, deixa eu explicar, não comprei este livro por comprar. De fato, já me envergonhava de jamais ter lido uma obra completa de Ferreira Gullar. Já o vi inúmeras vezes em entrevistas na TV e sabia que ele era um cara importante, que certamente teria coisas boas para eu conhecer.
Li o livro em 2 dias. Impossível parar de lê-lo. Fui mastigando cada poesia, poema, sei lá o que, pois o Ferreira Gullar não declama, não enfeita. Ele simplesmente relata. Isto mesmo, eu diria que é um relato poético do que vê, sente, lembra, deseja, pensa, ri, chora e se impressiona. Enfim, é tudo de bom. O estilo é genial e rebelde. Não está nem aí para o pudor ou para o que os "outros" pensem sobre ele. Foi esta a impressão que fiquei.
"o poema / antes de escrito / não é em mim / mais que um aflito/ silêncio/ ante a página em branco."
"ou melhor/ um rumor / branco / ou um grito / que estanco / já que / o poeta / que grita / erra / e como se sabe / bom poeta (ou cabrito) / não berra" continua....
Este fragmento de "FICA O NÃO DITO POR DITO" que inaugura as páginas de seu delicioso livro, foi logo me mostrando o que eu encontraria. Tudo escrito em minúsculo e no rítmo de uma música contemporânea atonal, sem compassos e com clusters harmônicos...
Dei uma pausa em três outros livros que eu estava lendo ao mesmo tempo para abrir caminho para este.
No segundo dia continuei a leitura no trem parador do subúrbio do Rio de Janeiro, indo de Bangu para a Central do Brasil (aliás tenho um poema sobre estas minhas instigantes viagens "O Trem da Central" publicado no Recanto das Letras). Deparei com relatos poéticos que me emocionaram, sem exageros. Tive de disfarçar pois borrei as lentes de meus óculos com lágrimas de meu choro avexado... Tirei os óculos, enxuguei-os e continuei a leitura.
Acreditem, Ferreira Gullar dialoga consigo mesmo sobre o osso de sua perna em "REFLEXÃO SOBRE O OSSO DA MINHA PERNA". Simples, sincero e genial. Eu não esperava, confesso mais uma vez, encontrar um Ferreira Gullar assim, tão humano, tão pessoa, tão "eu", você, nós. Pensava encontrar um catedrático com poesias chatas e repletas de palavras do idioma dos acadêmicos. Ao contrário, encontrei um "cara legal". Um homem que faz questão, talvez, de pisar duas vezes no mesmo local para experimentar a textura do lugar.. enfim...
"O JASMIM" revela um cara singelo e sensível, que se incomoda com cheiro de uma flor "... assim de muito perto / esse aroma é um oculto verde/ (quase fedor) / que me lesiona/ as narinas ...". Li este poema três vezes. Mais à frente ele retorna a este poema, em uma desordem genial de pensamentos e sequência, e continua o seu relato sobre o jasmim.
Funguei umas duas vezes para disfarçar as lágrimas. Olha que não estou enfeitando o meu relato com frases de efeito! De fato chorei no Trem Parador que ia de Bangu para a Central do Brasil. À medida em que vai aproximando de seu destino, mais passageiros vão entrando no Trem Parador que vai de Bangu para a Central do Brasil. Cá eu saboreando os relatos poéticos de Ferreira Gullar e tendo que desviar a orelha de seu livro amarelo de uma barriga feminina que insistia em amassá-lo.
"BANANAS PODRES 3" me presenteia com as lembranças da infância do poeta, lá em São Luiz do Maranhão. Com tão poucas palavras, mas carregadas de inteligência e completeza, ele não se furta em declarar nomes completos de personagens de sua infância, que carregou durante todo este tempo em sua memória. Fui apaixonando-me pelos detalhes íntimos do dia-a-dia de Ferreira Gullar, que nem um inseto ele deixa passar. Em "INSETO" e "UMA ARANHA" ele, praticamente, berra para nós, os felizardos leitores, que tudo, exatamente tudo pode ser fonte de reflexão para um homem tão sensível às coisas vivas.
Claro que a astronomia, mesmo que de forma leiga, é assunto dos homens cultos. Ferreira Gullar poetiza sobre o universo e fecha a parte um do livro com "UMA PEDRA É UMA PEDRA" para entrar na segunda parte literalmente caminhado sobre o universo com "UNIVERSO", "A LUZ", "A ÁGUA", "O SOM", "A ESTRELA", "O ESPAÇO" e o genial "DENTRO" que reproduzo aqui:
"estamos dentro de um dentro
que não tem fora
e não tem fora porque
o dentro é tudo o que há
e por ser tudo
é o todo:
tem tudo dentro de si
até mesmo o fora se,
por hipótese
se admitisse existir
E por aí vai relatando Ferreira Gullar sobre as coisas que vê, sente, lembra e gosta.
O QUE SE FOI SE FOI
"O que se foi se foi
Se algo ainda perdura
é só a amarga marca
na paisagem escura."
"Se o que se foi regressa,
traz um erro fatal:
falta-lhe simplesmente
ser real"
"Portanto, o que se foi
se volta, é feito morte."
"Então por que me faz
o coração bater tão forte?"
Este poema tem um comportamento raro dentre os demais publicados neste livro. Inteligente e genial mostra a profundidade poética de Ferreira Gullar.
O meu Trem Parador, que vai de Bangu até a Central do Brasil, enfim chegou na estação final. Fechei o livro e o guardei em minha mochila de couro. Desci para o Metrô da Central e fui para o meu trabalho transbordando poesias. Sempre passo pelo "Arco dos Teles" antes de chegar ao meu destino árduo...
Livro obrigatório para quem curte cultura!