Ética da Vida: A Nova Centralidade, de Leonardo Boff - Parte 1: Desafios Ético-Sociais da Ecologia
Na Parte 1 de seu livro, o teólogo, professor universitário e escritor Leonardo Boff – um dos expoentes da Teologia da Libertação no Brasil – convida a refletir sobre os desafios ético-sociais da ecologia, ciência que até não muito tempo atrás não passava de mero discurso regional como subcapítulo da biologia, mas que hoje assume importante papel de alcance universal, de gigantesca força mobilizadora neste início de novo milênio.
No cerne dessa questão, o ser humano e sua quase ilimitada capacidade de transformação – para construir ou para destruir – agindo sobre o planeta que o acolhe, esse sistema tão complexo quanto limitado, e que por isso mesmo não permite nenhum tipo de aventura antiecológica, sob o risco de comprometimento do equilíbrio que propicia as condições mínimas para a subsistência da vida na Terra, em última instância.
Boff, com muita propriedade, chama a atenção para as quatro vertentes de enquadramento da questão ecológica: a ecologia ambiental, voltada ao meio ambiente em si, desvinculado da sociedade humana; a ecologia social, que insere o homem e a sociedade dentro da natureza como partes diferenciadas dela; a ecologia mental, também conhecida como “ecologia profunda”, que considera que a questão ecológica transcende o plano da sociedade humana, abrangendo também o tipo de mentalidade vigente e que está por trás das ações do homem; e, por fim, a ecologia integral, pela qual a Terra, como que vista do espaço por um astronauta, é uma entidade única, onde o planeta e os seres vivos são um só, cabendo ao homem, como ser inteligente que é, despertar em si a consciência de sua função primordial dentro dessa imensa totalidade, numa visão global, holística e responsável, tão essencial à nossa própria sobrevivência.
Nesse contexto, salienta o autor que “nós, seres humanos, podemos ser o satã da Terra, como podemos ser seu anjo da guarda bom. Somos corresponsáveis pelo destino de nosso planeta, de nossa biosfera, de nosso equilíbrio social e planetário”. E, prosseguindo, opina: “essa visão exige uma nova civilização e um novo tipo de religião, capaz de re-ligar Deus e mundo, mundo e ser humano, ser humano e espiritualidade do cosmos”, e ainda, “o cristianismo é levado a aprofundar a dimensão cósmica que sempre esteve presente na sua fé. Deus está em tudo e tudo está em Deus”. Para tanto, necessário se faz superarmos nossa irresistível atração pelo antropocentrismo, em favor de uma postura “cosmocêntrica”, assim como cultivarmos uma intensa vida espiritual, buscando entender o universo, a Terra e cada um de nós como um nó de relações voltado para todas as direções.
Fenômenos como o da inversão térmica, que ocorre geralmente no inverno em megalópoles como São Paulo e Cidade do México, e as chuvas ácidas, no verão, são provas inequívocas de que, como nunca, o homem precisa fazer uma urgente reflexão buscando ver o planeta como um grande sacramento de Deus, como o templo do Espírito, o lugar da criatividade responsável do ser humano, a morada de todos os seres criados no Amor, como de fato ele é (ou deveria ser).
A pretexto de buscar a felicidade humana pela via do progresso e do desenvolvimento a qualquer custo, sem uma consciência preservacionista voltada ao meio ambiente e ao social de forma integrada e responsável, podemos estar simplesmente incorrendo no que Boff, do ponto de vista teológico, nomina de “pecado ecológico”, algo que é social e histórico, particularmente no que tange aos últimos quatro séculos, onde a revolução industrial deu início a essa corrida tresloucada e inconsequente pelo “progresso”. E, o que é mais grave, esse pecado ecológico não afeta somente o presente; mais que isso, é um legado indesejável e desonesto que estamos deixando às próximas gerações – dos nossos filhos e netos, inclusive. A seguir assim, as futuras gerações certamente amargarão dias de trevas, com rigorosa escassez de recursos naturais – água potável e ar respirável, em particular – e tudo o que de nocivo disso decorrerá, não se descartando, numa visão menos otimista, a extinção da vida na Terra. Conforme lembra o autor, o preceito bíblico “Não matarás” (Êx, 20, 13) envolve também o biocídio e o ecocídio futuros. Não nos é permitido criar condições ambientais e sociais que produzam futuramente doenças e morte aos seres vivos, humanos ou não. Cumpre-nos, antes, como seres inteligentes que somos, nossa solidariedade incondicional para com aqueles que ainda não vieram a este mundo.
A consequência dessa nova consciência ética é a assim chamada reconversão da dívida externa dos países devedores, em função de políticas protetoras do meio ambiente natural e social. No entanto, tem vindo a reboque de algo tão nobre na essência uma (in)disfarçada transferência de “tecnologias sujas” dos países ricos para os pobres, a fim de que estes sigam produzindo para seus mercados internos, e para os internacionais também, produtos ainda consumíveis, porém, feitos a uma taxa considerável de prejuízos ecológicos. Na visão de Boff, é a polarização capitalista “norte-sul” dominando o cenário, pela qual os países industrializados e opulentos se opõem aos países pobres e tecnicamente atrasados, compondo um quadro de desigualdade social crescente, de cores fortes e contrastantes.
Propõe o autor que se faça uma crítica do paradigma capitalista e ocidental, marcado pelo que ele chama de mito do desenvolvimento capitalista, que vem trazendo, como efeito colateral, a destruição de suas próprias fontes de riqueza, do ser humano e da natureza. Esse modelo não seria universalizável, uma vez que se aplica aos poucos países que detêm o poder econômico. E isso cria, na concepção de Boff, um fosso cada vez maior entre os países ricos, centrais, e os pobres, periféricos – o que pode vir a originar problemas éticos e organizacionais insolúveis e humanamente insuportáveis (algo como um “apartheid social” seria intolerável...). Como consequência desse modelo, a qualidade de vida global é muito ruim, já que nos países ricos o consumismo acaba gerando a destruição da identidade humana, pelo individualismo, pela droga, pelo alcoolismo, pela permissividade sexual desbragada e pelos altos níveis de solidão, incomunicabilidade e suicídio; e, nos países pobres, a destruição se dá pelas sequelas da miséria, das doenças, da favelização e do desemprego, gerando violência, tentativas de rebeliões por desespero, desestruturação dos laços familiares e desorganização social.
A solução estaria no resgate do sentido originário da “economia” – traduzido em “gestão das carências” –, contrapondo o sentido que acabou imperando no mundo capitalista globalizado dos últimos tempos, cujo foco está no mercado, no crescimento linear da produção de bens materiais e de serviços. Seria passar da economia da produção material ilimitada, como hoje acontece, para uma economia voltada à produção humana integral, suficiente para todos, por meio da consciência de “uma sociedade sustentada que a si mesma dá as formas de desenvolvimento integral das pessoas e das comunidades, com a natureza e nunca contra ela, complementar a outros tipos de desenvolvimento e solidária com o destino de todos os povos da Terra”, nas palavras do autor.
Das palavras do título do livro de Boff, “a nova centralidade” seria garantir o futuro da Terra e da humanidade. Para tanto, imperativa se faz uma ética do cuidado a ser vivida em todas as instâncias, uma reeducação da humanidade pela via da autoconscientização de cada um de nós, de modo que seja possível, ao mesmo tempo, a satisfação das necessidades humanas pelo uso dos recursos naturais do nosso planeta (ainda azul) e a convivência pacífica com a Terra, como filhos dela que somos, e não como seus meros habitantes. Numa perspectiva radical, observa o autor: “somos a própria Terra, que em seu processo de evolução alcançou, por meio do ser humano, a capacidade de sentir, de pensar, de amar e de preocupar-se consigo mesma”.
Independentemente de se concordar ou não com o declarado viés anticapitalista de Boff, há que se reconhecer a importância de seu livro, pois ele nos chama àquela que seguramente deve ser uma de nossas urgentes reflexões do momento: os desafios ético-sociais da ecologia. Mais que refletir sobre o assunto, devemos procurar agir sem mais perda de tempo, caso contrário nos veremos forçados a buscar, talvez num futuro mais próximo do que hoje se imagina, a colonização de Marte como saída para a perpetuação da espécie humana – algo que já encabeça a lista das próximas missões espaciais conduzidas pelos países que, há apenas cinco décadas, pilotam a nave-mãe da corrida espacial do ser humano. Depois de Marte...