RESENHA DO LIVRO 1808, de Laurentino Gomes

RESENHA DO LIVRO 1808, de Laurentino Gomes

Joabe Tavares de Souza¹

BIBLIOGRAFIA BÁSICA:

GOMES, Laurentino. 1808: como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a história de Portugal e do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2007.

Laurentino Gomes é jornalista formado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) com pós-graduação em Administração pela niversidade de São Paulo (USP), além de outros cursos. Trabalhou como repórter e editor para alguns dos principais veículos de comunicação do Brasil, incluindo o jornal O Estado de São Paulo e a revista Veja. Publicou os livros 1808 – o qual resenharei – e 1822, que retrata o Brasil Imperial da Proclamação da Independência a Proclamação da República. A presente obra – 1808 – ilustra, a modo do autor, o período que marca a fuga da família real portuguesa para o Brasil. O autor organizou sua obra em 29 capítulos, seguindo uma ordem predominantemente cronológica dos acontecimentos, iniciando-se nA Fuga da família real portuguesa [GOMES, 2007, p. 29] e finalizando-se nO Segredo de Joaquina Santos Marrocos [op. cit., p. 346].

No dia 29 de novembro de 1807, por pressão do cerco de Napoleão e por estratégia, a Coroa portuguesa e sua corte empreendiam – de modo a pegar o povo português de surpresa – a sua transferência para uma de suas colônias – a maior de todas elas: o Brasil. No século XIX, com a ameaça napoleônica, os reis europeus costumavam ser perseguidos, destituídos, aprisionados, exilados, deportados ou mesmo executados em praça pública [op. cit., p. 38], o que, na maioria da vezes, provocava um quadro de loucuras semelhantes aos da esquizofrenia e da psicose maníaco-depressiva [op. cit, p. 37]. Além disso, havia o fator religioso, que contribuía, ainda mais, para o desenvolvimento desse quadro de loucuras. Mediante a isso, Dom João, influenciado pelo Conselho de ministros, principalmente pelo britânico Lord Canning (o qual forneceu, além do apoio político-financeiro, a disponibilização das frotas marinhas – elaborando O Plano de fuga [op. cit., p. 45]). Embora nesse período houvessem conquistas nas nações européias, em Portugal iniciava-se um quadro de decadência.

¹Aluno do 3º ano do curso de Licenciatura Plena em História pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Email: poetavares@hotmail.com

A princípio, os fatores demográfico e econômico não eram favoráveis; em decorrência das limitações geográficas e, consequentemente, pela pouca população, Portugal precisava de mais mão de obra para produzir riquezas, e devido à sua limitação territorial não era mais capaz de manter controle sobre suas muitas colônias. Outro motivo que levou Portugal a essa decadência foi o fator político e religioso. Portugal, a essa época, talvez fosse, das nações européias, a mais católica, a mais conservadora e a mais avessa às ideias libertárias que produziam revoluções e transformações em outros países [op. cit., p. 58] e, por outro lado, politicamente, era dependente da Inglaterra, que possuía interesse comercial com Portugal e suas colônias. Daí o apoio incondicional – ou quase – à partida da família real portuguesa e sua corte para a colônia brasileira. Tal fato priorizou uma determinada ordem na navegação rumo às Américas, uma vez que a marinha inglesa organizou a família real portuguesa da seguinte forma:

Às 7 horas da manhã, a nau Príncipe Real inflou as velas e começou a deslizar em direção ao Atlântico. Levava a bordo o príncipe regente, Dom João, sua mãe, a rainha louca Dona Maria I, e os dois herdeiros do trono, os príncipes Dom Pedro e Dom Miguel. O restante da família real estava distribuído em outros três navios. O Alfonso de Albuquerque transportava a princesa Carlota Joaquina, mulher do príncipe regente, e quatro das suas seis filhas. As duas filhas do meio – Maria Francisca e Isabel Maria – viajavam no Rainha de Portugal. A tia e a cunhada de Dom João seguiam no Príncipe do Brasil. Mais quatro dezenas de barcos seguiam atrás da esquadra real.

[op. cit., p. 67-68]

Embora o plano de fuga para o Brasil fosse antigo, a viagem foi decidida às pressas e executada de forma improvisada [op. cit., p. 69]. Além disso, a fúria da natureza atrapalhou bastante a viagem, que não foi fácil. Muitas dificuldades surgiram em auto-mar. As doenças acometiam a população. Mesmo assim, o sucesso foi inevitável. No plano de viagem havia o “ponto de reparo”. Esse ponto era a ilha de Cabo-Verde, no qual as embarcações danificadas atracariam; após o retorno, deveriam seguir viagem rumo ao Rio de Janeiro, mas aportaram em Salvador, na Bahia. Depois de finalmente chegar ao Rio, houve a necessidade das províncias fundir-se numa real unidade política [op. cit., p. 121], pois [...] o Brasil era um amontoado de regiões mais ou menos autônomas, sem comércio ou qualquer outra forma de relacionamento, que tinham como pontos de referência apenas o idioma português e a Coroa portuguesa, sediada em Lisboa, do outro lado do Oceano Atlântico. Cada capitania tinha o seu governante, sua pequena milícia e seu pequeno tesouro; a comunicação entre elas era precária, sendo que geralmente uma ignorava a existência da outra. [op. cit, p. 120]

Além disso, quando a família real portuguesa e sua corte chegaram, o Brasil não passava de um imenso território virgem, escassamente povoado [op. cit., p. 122]. Além da ignorância e o isolamento serem resultados de uma política deliberada do governo português, que tinha como objetivo manter o Brasil [...] longe dos olhos e da cobiça dos estrangeiros [op. cit., 125], o déficit crescia sem parar, a ponto de provocar um buraco no orçamento [que] tinha aumentado mais de vinte vezes no ano de 1821 [op. cit., p. 190]. Com a assinatura da carta régia de abertura dos portos [op. cit., p. 203], houve um acordo comercial entre o Brasil e a Inglaterra, que culminou na fundação da Sociedade dos Negociantes Ingleses que Traficam para o Brasil [op. cit., p. 204]. Graças às novas técnicas de produção desenvolvidas pela Revolução Industrial e ao bloqueio continental, a Inglaterra – considerada o maior império que a humanidade tinha conhecido até o momento –, despachava [seus produtos] para o Brasil e outros países da América do Sul, onde desembarcavam por uma pechincha [op. cit., p. 204-205]. Dom João ambicionava mudar o Brasil para reconstruir nos trópicos o sonhado império americano de Portugal [op. cit., p. 215]. Para tanto, foi necessário que tomasse algumas medidas, tais como a abertura dos portos e a liberdade de comércio e indústria manufatureira no Brasil [op. cit.]. Essa combinação caracterizou o fim do sistema colonial [...] de três séculos de monopólio português que se integrava ao sistema internacional de produção e comércio como uma nação autônoma [op. cit.]. Houve, também, a criação de [...] uma escola superior de Medicina, outra de técnicas agrícolas, um laboratório de estudos e análises químicas e a Academia Real Militar [...]. Estabeleceu [-se] ainda o Supremo Conselho Militar e de Justiça, a Intendência Geral de Polícia da Corte [...], o Erário Régio, o Conselho de Fazenda e o Corpo da Guarda Real [...], a Biblioteca Nacional, o Museu Nacional, o Jardim Botânico e o Real Teatro de São João [além da], Gazeta do Rio de Janeiro, primeiro jornal publicado em território nacional. [op. cit.]

Dom João também dedicou-se aos “empreendimentos civilizatórios” [de modo a] promover as artes, a cultura, e tentar infundir algum traço de refinamento e bom gosto nos hábitos atrasados da colônia [op. cit., p. 219]. Mas, apesar de todos os feitos de Dom João, transformar o Brasil seria uma tarefa muito mais árdua do que se poderia imaginar observando as lojas e a pompa das famílias nas ruas da nova sede da corte portuguesa [op. cit., p. 227]. Com a abertura dos portos e com a liberdade de comércio os estrangeiros descobriram o Brasil, ainda que com três séculos de atraso [op. cit., p. 259]. Isso possibilitou um vasto registro sobre o Brasil, que rendeu diversas obras, de grande repercussão, acerca do último grande pedaço habitado do planeta ainda inexplorado pelos europeus que não fossem portugueses [op. cit., p. 260].

Um fator de suma importância – e de grande preocupação – na gestão governamental de Portugal sobre o Brasil foi o processo dA Escravidão negreira [op. cit., p. 238]. O desembarque, a compra e a venda de escravos faziam parte da rotina da colônia brasileira havia quase três séculos [op. cit., p. 240]. O negro – tratado como mercadoria e tido como uma espécie de animal de carga – caracterizava-se como um negócio gigantesco, que movimentava centenas de navios e milhares de pessoas dos dois lados do Atlântico [op. cit., p. 242]. O tráfico negreiro [...] envolvia grandes riscos [...]. A taxa de mortalidade no percurso até o Brasil era altíssima [...]. Na África, cerca de 40% dos negros escravizados morriam no percurso entre as zonas de captura e o litoral. Outros 15% morreriam na travessia do Atlântico, devido às péssimas condições sanitárias nos porões dos navios negreiros.

[op. cit., p. 243]

Pelo bem – da sociedade branca – a alforria não era vista com bons olhos pelo poder público, que considerava a escravidão uma instituição e um fator econômico a ser preservado [op. cit., p. 257]. Mas, de qualquer modo, A liberdade não significava melhoria de vida. [...] Livres, no entanto, os negros forros ficavam entregues à própria sorte, marginalizados por completo de qualquer sistema de proteção legal e social. Em muitos casos, a liberdade era um mergulho no oceano de pobreza composto por negros libertos, mulatos e mestiços, à margem de todas as oportunidades, incluindo educação, saúde, moradia e segurança – um problema que, 120 anos depois da abolição oficial da escravidão, o Brasil ainda não conseguiu resolver.

[op. cit., p. 258]

Nesse momento começava a surgir um cenário conturbador na província de Pernambuco. Os comerciantes pernambucanos – descontentes com a administração portuguesa [op. cit., p 287] –, sentiam-se prejudicados pelos autos impostos, além do agravante aumento do preço da mão de obra escrava aliada as ideias abolicionistas. Os comerciantes – apoiados pelos ideais liberais americano e francês – instalaram na província um forte sentimento de resistência, que logo foi sufocado pelas tropas da coroa portuguesa, como aconteceu em vários cantos da República.

Porém, esse cenário de revoluções não se deu apenas em território brasileiro, mas também em território português. No ano de 1820, desencadeou-se uma revolução na cidade do Porto – a chamada Revolução do Porto² –, que, por sua vez, fez com que Dom João e a família real, no dia 26 de abril de 1820, retornassem a Portugal. Mas, no entanto, para que Dom João pudesse regressar a Portugal seria necessário que, antes disso, deixasse alguém de sua confiança para administrar o Brasil. Foi quando Dom João decidiu deixá-lo sobre os cuidados de Dom Pedro, seu filho mais velho e herdeiro da cora, então com 22 anos [op. cit., p. 319]. No entanto, para desespero de Dom Pedro, quando Dom João partiu para Portugal, raspou os cofres do Banco do Brasil e levou embora o que ainda restava do tesouro real que havia trazido para a colônia em 1808 [op. cit., p. 321].

Para Dom Pedro ficou a difícil tarefa de unificar o Brasil numa só nação. Independente do “anfitrião” ter abandonado o Brasil, tem-se que admitir que foi graças a Dom João VI, [que] o Brasil se manteve como um país de dimensões continentais, que hoje é o maior herdeiro da língua e da cultura portuguesas [op. cit., p. 331]. Dessa maneira, Dom João deixava contudo o Brasil maior do que o encontrara [op. cit.], o que ocasionou o processo emancipatório brasileiro, ainda no ano de 1822. Mesmo assim, apesar da “independência”, era preciso a qualquer custo impedir que o Brasil se tornasse uma república [op. cit., p. 332]. Para evitar que isso acontecesse, Dom Pedro teve de manter a monarquia centralizada e com poderes fortes, capaz de impedir insurreições populares e movimentos separatistas [op. cit., p. 333]. Por isso, o caminho escolhido em 1822 não era republicano nem genuinamente revolucionário. Era apenas conciliatório. Em vez de enfrentadas e resolvidas, as antigas tensões sociais foram todas adiadas e amortecidas [op. cit., p. 334]. Por diversos motivos, os problemas sociais e de exclusão perduraram nos duzentos anos seguintes [op. cit., p. 335]. Como se pode perceber no discurso do autor acerca desse “atraso social”,

²A chamada Revolução do Porto foi um movimento liberal que acarretou consequências tanto na História de Portugal como na História do Brasil. Iniciado na cidade do Porto, no dia 24 de agosto de 1820, cuja burguesia mercantil se ressentia dos efeitos do Decreto de Abertura dos Portos às Nações Amigas, em 1808, que deslocara para o Brasil parte expressiva da vida econômica metropolitana, o movimento reivindicatório logo se espalhou, sem resistências, para outros centros urbanos de Portugal, consolidando-se com a adesão de Lisboa. Iniciado pela guarnição do Porto, irritada com a falta de pagamento, e por comerciantes descontentes daquela cidade, conseguiu o apoio de quase todas as camadas sociais: o clero, a nobreza e o exército português. Entre as suas reivindicações, foi exigido: o imediato retorno da Corte para o reino, visto como forma de restaurar a dignidade metropolitana; o estabelecimento, em Portugal, de uma Monarquia constitucional; e a restauração da exclusividade de comércio com o Brasil (reinstauração do Pacto Colonial). Diante do progressivo aumento da pressão para a recolonização do Brasil, este proclamou a sua independência em 1822. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Revolucao_liberal_do_Porto

Em nome dos interesses da elite agrária, a escravidão permaneceria como uma chaga na sociedade brasileira até sua abolição, em 1888, com a lei assinada por uma bisneta de Dom João VI, a princesa Isabel. As divergências regionais reapareceriam de tempos em tempos, de forma violenta, como na Confederação do Equador, de 1824, na Guerra dos Farrapos, em 1835, e na Revolução Constitucionalista, em 1932. A participação popular nas decisões do governo se manteria como um conceito figurativo. Em 1881, quando a chamada Lei Saraiva estabeleceu, pela primeira vez, a eleição direta para alguns cargos legislativos, somente 1,5% da população tinha direito ao voto. Eram apenas os grandes comerciantes e proprietários rurais. Entre a enorme massa de excluídos estavam as mulheres, os negros, os mulatos, os pobres, os analfabetos e destituídos em geral.

[op. cit., p. 334-335]

Essa obra envolve, de forma prazerosa, a atenção do leitor. Como deixa claro Antonietta d’Aguiar Nunes³,

Trata-se não de um romance histórico, mas de uma obra histórica escrita de forma leve, fluida, gostosa de ler, e que cativa a atenção do leitor, ao tempo em que, fundamentada em ampla pesquisa realizada, traz à tona importantes fatos históricos pouco conhecidos da grande maioria das pessoas e que valem a pena ser considerados.

A historiografia brasileira se enriquece cada vez mais com a coragem de pessoas que se dedicam a lapidar a história do Brasil, seja por interesse financeiro ou simplesmente por querer mostrar o que realmente aconteceu, embora seja difícil de se fazer. 1808 é uma obra rica em detalhes que, muitas das vezes, não são perceptíveis nos livros didáticos. Pensando nisso, me atrevo a indicar essa obra, ou melhor, não só ela, mas todas as obras que falem da história do Brasil, como uma leitura obrigatória aos acadêmicos – especialmente na área das Ciências Humanas, de modo a enriquecer ainda mais o saber de futuros profissionais que visem trabalhar esse conteúdo – ou paralela ao livro didático – para o caso dos alunos de Ensino Médio, de modo a possibilitar aos mesmos uma base para que eles possam melhor entender os fatos ocorridos na história do Brasil.

Como historiador, tenho como obrigação salientar o cuidado que devemos ter com as fontes, visto que há muitas visões diferentes. Não podemos desmerecê-las, muito menos desconsiderá-las.

³NUNES, Antonietta d’Aguiar. Resenha do livro 1808, Como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a História de Portugal e do Brasil. Revista HISTEDBR On-line, Campinas, n.28, p.311-315, dez. 2007 – ISSN: 1676-2584. Disponível para download em: http://www.histedbr.fae.unicamp.br/revista/edicoes/28/res01_28.pdf

Joabe o poeta
Enviado por Joabe o poeta em 01/11/2010
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