RESENHA ANALÍTICA DO LIVRO FEIJÃO DE CEGO – CONTOS SERGIPANOS, DE VLADIMIR SOUZA CARVALHO

teacherginaldo@hotmail.com

Feijão de Cego – Contos sergipanos, escrito por Vladimir Souza Carvalho em 2009 e publicado pela Editora Juruá, reúne contos que por si só, representam diversas histórias que marcam com maestria, diversos mundos e costumes, abordando temas universais e regionais, contados de forma simples e implícita, o que torna a obra tão verossímil.

Todos os contos, 33 ao todo, são ambientados em diferentes lugares e nos remete a causos que são apresentados de forma direta, como se estivéssemos ouvindo o próprio narrador em uma roda de conversa entre amigos, como se fazia em noites de luar em diversas cidades do interior sergipano. A veracidade se dá pelo fato de serem histórias do cotidiano, que impressionam e fazem com que o leitor descubra um universo que para muitos não é desconhecido. Para isso Vladimir utiliza-se de uma linguagem brejeira com humor, drama, perdão e luxúria, variando a narrativa em primeira e terceira pessoa.

O tempo é descrito com precisão, dando destaque para a memória. Diferentes personagens se destacam por serem tão ligados ao ambiente em que vivem. Ganha destaque neste contexto, o sertão nordestino, a fazenda de gado, a rua do povoado, a terra, a cana-de-açúcar e o carro de boi, tornando a obra rica em características sertanistas, numa intertextualidade literária com romances da geração de 30, com Graciliano Ramos e em seguida com Guimarães Rosa, contribuído assim para a continuidade de temas regionalista na literatura brasileira.

O primeiro conto, intitulado, Herança, traz a problemática da velhice, numa crítica direta a subcondição humana. A narrativa é em terceira pessoa e a história inicia-se com a saída da avó para um asilo. O ambiente é restrito à pobreza. Neta e avó dividem o mesmo espaço depois que a filha Renalda vai embora para São Paulo, abandonando-as. A linguagem das personagens, apesar de pobres, é padrão da norma culta em que o discurso se dá dentro da própria narração. Questionamentos de valores são abordados pela neta, que se vê no impasse de deixar a avó terminar seus dias em um asilo. Não há uma obrigatoriedade e sim, uma necessidade pelo fato de não poder ter tempo disponível e condições para cuidar da avó. Com a saída, rompe-se essa obrigatoriedade. O uso do travessão, único caracterizando o discurso direto, representa a fala da avó num apelo direto à neta, que também pode ser direcionada ao leitor: ___ e você vai me visitar? Esse apelo deixa claro o medo da avó sobre o que a espera no asilo. O medo da solidão. Para a neta fica apenas o vazio do quarto da avó e a herança deixada por esta: a velha casa e o colchão velho em que dormia a avó.

O segundo conto, Júri de vítima viva, é composto com a predominância do humor em sua narrativa. Narrado em primeira pessoa, em que o próprio narrador-personagem Manilton Couvo Catuninho, relata a sua insatisfação pela visita inesperada de Valdenísio em sua casa, pois percebe que o mesmo é portador noticias ruins. Trata-se de uma intimação mandada pelo doutor juiz. A acusação era por tentativa de homicídio. O tom do hilário se dá, por não haver uma vítima, já que não houve homicídio algum. Matador profissional, sem instrução nenhuma, analfabeto, casado com Sinézia, agora se vê acusado pelo crime contra Austro que não cometeu, levando-o a introspecção do que fora a sua vida. Sua maior indignação é pelo fato de nunca ter errado nenhum tiro, com exceção a este que estava sendo julgado. Há uma enumeração de antigos crimes efetuados por ele, os quais são relatados como uma profissão comum e efetuados com exímia competência e sem arrependimento algum. Confessa não conhecer as leis, somente a da pontaria. Nota-se que Manilton não está preocupado com a intimação e sim pela vergonha que o acomete pelo seu erro, afinal não seria essa a primeira vez em que se apresentaria a um júri. Depois de tanto refletir chega à conclusão de que já que estava sendo acusado por um crime que não chegou a cometer, era preciso então cumpri-lo. Procura então sua arma de volta com Sinézia. A velha chama do matador volta à tona com um desejo exclusivo de se fazer o crime. Não aceita ir a júri sem o crime efetuado. Vai à casa de Autro na esperança de encontrá-lo e matá-lo. Para sua surpresa e desespero, descobre que ele não se encontra na cidade. Resta-lhe então voltar para casa e esperar o momento de ter que se apresentar ao júri.

O terceiro conto, O rosto do noivo, é narrado em primeira pessoa. A temática é a do casamento. A protagonista se vê prestes a casar com alguém que ela não conhece. O primeiro contato, o noivado, é iniciado e oficializado através de uma carta. Em momento algum na narrativa a noiva vê o rosto do noivo, nem mesmo no dia do casamento. Não há presença de romantismo. O casamento é, sobretudo, um negócio familiar, que agradara a toda a família. Para a protagonista haveria tempo, depois do casamento, para conhecer e ver o rosto de seu marido. Para ele o rosto não tinha importância alguma, já que era composto da mesma forma que qualquer outro, e sim que ela soubesse que ele a amava. Infere-se daí, que o noivo já a conhecia e a amava platonicamente. A consumação do casamento também se dá sem que a noiva veja o rosto do marido, incorporando o papel de uma vítima que se submete ao seu castigo, que sem nenhuma saída, aceita o seu destino cruel. . Este é um comportamento típico de muitas famílias pertencentes ao Realismo, onde o casamento nada mais era que um negócio rentável.

No quarto conto, A Espera, o narrador utiliza-se da memória de uma velha que já se considera morta. Narrado em primeira pessoa, o conto é caracterizado por expressar a solidão de Altina e a sua triste realidade: velha, doente, que toma remédios e tem medo de tudo. O medo é a sua insegurança em relação ao que lhe vai acontecer ainda, pois para a personagem, nada mais pode surpreendê-la. Questiona-se a presença do novo em relação ao obsoleto. O tempo, que é a realidade, o instante já, dá espaço para as memórias e recordações da personagem, numa reflexão sobre a adolescência, a família, o pai e seus costumes. Há um regresso da personagem aos diferentes lugares que conviveu: Aracaju, Propriá (especialmente o Colégio das Freiras) onde sua irmã Santina estudou, numa linguagem que oscila entre o padrão e o coloquial, tecendo assim um painel de lembranças e cenas tão distantes e perdidas em sua infância. A não aceitação da velhice está vinculada a sua tristeza. Olha-se num espelho e o que vê a decepciona: “as pelancas se desgrudando e caindo”. Questiona-se quem foi. E atribui ao tempo a reponsabilidade de tê-la transformado no que agora é. Pergunta-se para que viver mais, se nada mais lhe resta. Não casou, não teve filhos e o resultado dessa desventura é que agora se encontra sozinha a espera da morte. Outra personagem, Ida, se destaca na narrativa por ser ela quem cuida de Altina e de suas terras. É ela quem lhe dá remédios e a leva para o médico. Não sabe explicar a tristeza que sente, mas lembra-se da vida dura que tivera junto a seus familiares, a partir da morte de seu irmão mais novo Odoniel, fato que todos atribuem ser o motivo de sua tristeza. Com o casamento das duas irmãs, resta-lhe cuidar do velho pai até sua morte. Essa triste sina é considerada parte das histórias das famílias. Lembra-se de outros membros de sua família quando sentavam juntos a mesa para as refeições: o pai ao lado da cabeceira, Prediliano na cabeceira, por ser o lugar de honraria na mesa e ser ele o único que se formara. Ao redor da mesa: Graciano, Dorotéo, Odoniel e Seráfico. Do outro lado: Ela, Rinalva e Anuzia. Na outra cabeceira da mesa sentava-se Pedrina. A mãe comia na cozinha. Não se lembra, no entanto, das irmãs mais velhas sentada à mesa: Alvanete e Santina, ambas casaram-se ainda mocinhas. Sente medo da casa grande e vazia, por ser ela parte de sua vida e, ser também ela, que esconde a sua juventude. A Espera é um conto que nos remete a enredo de filmes do diretor espanhol Pedro Almodóvar, que sabe retratar tão bem o psicológico de suas personagens.

O quinto conto, Uma cumbuquinha de café, traz de volta o humor recheado de um causo que se conta em roda de conversa. O título é um convite direto do personagem velho curandeiro, Janjão, que usava remédios feitos de forma caseira, com uso de ervas (mastruz com mel, casca de pau, raízes e folhas), segundo sua tradição empírica. Ciência e misticismo se entrecruzam num combate para provar a sua verdadeira eficiência. O trabalho do velho curandeiro era gratuito. Sua satisfação se dava por ver o resultado: a saúde reestabelecida de quem o procurava com seus males. Produzia, de forma artesanal, suas garrafadas, que dependendo do mal, eram distribuídas como remédio milagroso que a tudo curava. O narrador, em primeira pessoa, é um farmacêutico que se vê num embate existencial: sua crença na medicina versus a prática do curandeirismo, tão medieval. Depois da festa de reisado aumentava-se o índice de doenças venéreas, transmitidas por uma mulher que abria as pernas para tudo que era homem. O saldo dessa epopeia sexual era a contaminação. A procura era grande, tanto pela mulher devassa, como pela injeção (Penicilina) salvadora dos sofrimentos genitais. O papel do farmacêutico era ter em estoque a injeção para vendê-la aos desesperados. Para isso ia a Aracaju para abastecer-se do antídoto sempre que chegava a época de festa de reis. Se a Penicilina era a salvação, Edeltrudes era a causadora da epidemia venérea. Já sabia que todo ano era a mesma coisa. Surpresa mesmo foi quando descobriu que o filho Heliogabalo estava entre os infectados. Depois de diagnosticado a doença o filho começa a definhar em cima de uma cama. Tentou-se de tudo. Foi a vários médicos em Aracaju e o resultado era o mesmo. A mãe Benivalda agarrou-se a promessas para ver o filho curado. Nem na religião, nem na ciência o farmacêutico encontrou a cura para Heliogabalo. Restou-lhe apenas ir à procura do velho curandeiro, o qual lhe entregou uma garrafada e em seguida a receita que deveria ser seguida. Com a recuperação do filho, o farmacêutico passou a visitar o velho Janjão, levando sempre garrafas vazias para que ele continue preparando suas garrafadas milagrosas.

Em Ciúme, sexto conto narrado em primeira pessoa, retrata o drama do personagem narrador, sem nome, que nutre um ódio em demasia por Jeconias. A causa do ódio é Marinete, que fora namorada de Jeconias. O que surpreende é que Jeconias está morto e vive atormentando o narrador, por este ter se casado com a sua ex-namorada. A partir deste quadro a história é apresentada através do relato revoltoso e inconformado da personagem. Jeconias desde menino namorou com Marinete e tinha muito ciúmes, não permitindo que homem nenhum se aproximasse dela. Somente com sua morte numa aposta com Moldestino na bodega de Severino, para ver quem beberia e aguentaria mais cachaça, é que se dá a libertação de Marinete para ser cortejada e casar com o narrador. O que parecia ser uma vitória do narrador, por se ver agora livre de Jeconias, passa a ser o seu tormento. Depois do casamento, na noite de núpcias, o inesperado acontece: o defunto Jeconias aparece, numa visão espírita-fantasma, para atormentá-lo e reclamar o que de direito era seu: a donzelice da noiva viva. A não consumação do ato torna-se a frustração do narrador. O defunto interfere de forma direta na vida da protagonista ao ponto de desfazer o casamento do narrador ao ser abandonado por Marinete, numa intertextualidade com o livro Dona Flor e seus dois maridos de Jorge amado. Para o narrador, depois de muito tempo e velho, só lhe resta uma esperança: um dia poder se vingar do defunto Jeconias mesmo que seja depois de morto.

No sétimo conto, Soldado do Fisco, o narrador em terceira pessoa, retrata de forma hilária, a posição de Ingracindo da Conceição, que trabalha a serviço do Fisco. Famoso por sua atuação como fiscal de consumo, recordista em autuações e feliz por aplicar duras penas a favor da justiça e contra os infratores, entusiasma-se pelo novo desafio que tem que cumprir: uma diligência, após uma denuncia anônima, contra o coronel Trazíbulo Redenção. Sua impecável atuação como fiscal causou antipatia para a maioria dos comerciantes, tornando-se alvo de reclamação para a sua esposa D. Valdilena. Ao sair de casa, bem cedo, usando uma bicicleta para não chamar atenção, descobre que o caminho é árduo até chegar à usina. Mesmo com tantos percalços, para ele o que importava era realizar o seu objetivo. Tinha a ideia fixa da autuação contra o coronel, tornando-se uma psicose. Nota-se uma crítica direta aos órgãos do governo, revelando a politicagem exercida para se evitar as multas e os processos. Escolhe um lugar apropriado, com uma vista privilegiada que o permite ver toda a usina, de posse do livro e código na mão, fica a espera do momento certo para poder agir. Antes, porém, faz uma análise sobre o seu plano e aponta várias falhas desde a elaboração até o planejamento do flagrante. O desfecho é surpreendente e inesperado, tanto para protagonista, quanto para o leitor: Ingracindo recebe uma marmita com comida, de uma pessoa que o informa ter sido enviada pelo coronel Trazíbulo Redenção, para que ele não ficasse mais com fome, revelando-se assim que o coronel tinha a todo o momento ciência de sua presença escondida no mato.

O oitavo conto é intitulado Perdão. Escrito em primeira pessoa, em forma de memória, mostra um narrador, velho, que sofreu um derrame e está inválido em uma cadeira de rodas. O tema é variado: abandono, velhice, adultério, revolta e a indignação pela invalidez. Essa indignação faz com que o conto seja, sobretudo, um desabafo do personagem narrador, o qual vai nos revelando os motivos de sua triste sina. A principio é revelado a sua condição de viúvo e o abandono por parte de seus filhos, com exceção do mais novo, Vambério. Em seguida revela sua antiga profissão, vaqueiro casado com Joelina, que viajava pelos serões de Minas Gerais e da Bahia. Depois de muito tempo de ter tido seus filhos, quatro ao todo: Adileno, Sinfrônio, Perolina e Edernival, se surpreende ao chegar em casa e a sua esposa comunicar-lhe uma nova gravidez. Esta noticia dita à queima roupa, desperta no personagem a desconfiança de uma possível traição, já que ele passava muito tempo fora de casa em suas viagens. Ao nascer Vambério, logo percebeu a diferença entre ele e os irmãos, o que fica claro em seu comportamento. Tudo que há em Vambério, desde sua característica física ao seu comportamento, gestos e fala, faz com que se diferencie dos demais irmãos e do próprio pai. Nessa diferença está a ausência do pai, de casa, ao tempo de sua concepção. A personagem está também ciente das traições de Joelina. Apesar de tudo que Joelina lhe fez, não sente raiva dela. Lembra-se do tempo em que viviam como marido e mulher. O confronto entre os dois se dá no leito de morte de Joelina, vítima de câncer, que lhe pede perdão. Não chega a lhe dizer o motivo do pedido, mas ele sabe intimamente qual é. Depois da viuvez, o derrame. A ironia é que quem o ajuda durante o ataque e passa a cuidar dele é o filho que não é seu. Sente-se incapaz de dizer-lhe o quanto queria que ele fosse realmente o seu filho de sangue. Mas a sua mudez, em consequência do derrame, impossibilita-o de falar. O conto finaliza com mais uma revelação surpreendente do narrador: ele sempre soube que o filho Vambério era filho de Joelina com o escrivão Potâmio Marimbondo. Para ele, depois de tudo, o que importa realmente é a certeza da sorte que tivera por ter tido um filho, que não é seu, mas que o ama e que cuida dele como se assim o fosse.

O nono conto, Intervenção é sobre a honra e a dignidade. Narrado em terceira pessoa, e ambientado em um fórum, para um julgamento. A acusação é o defloramento de uma menor. Na sala encontram-se o Juiz, o promotor em defesa da vítima, o advogado do acusado, Ele o acusado e Ela a vítima. Questões são abordadas com exímio conhecimento de causa, tais como o cotidiano em um fórum numa ação jurídica, assim como a linguagem utilizada entre os advogados, tornando a narrativa verossímil. De um lado a vítima se encontra a procura de justiça. Do outro a defesa, que através da manipulação de fatos, tais como, a indução de testemunhas a mentirem, para acusarem a vítima, a favor do acusado. A honra da vítima é questionada e falsas acusações são elaboradas para difamá-la perante o juiz. O preconceito em relação à posição da mulher na sociedade é visível. Durante o julgamento as duas partes foram ouvidas. O desfecho do conto surpreende pelo fato do acusado assumir a autoria do crime e na mesma sala faz-se o casamento. Intervenção mostra os bastidores do poder judiciário, principalmente a posição de um advogado de defesa e o que é capaz de fazer para livrar o seu cliente de um processe, mesmo sendo este o verdadeiro culpado.

Em Parto da vaca Rajada, décimo conto narrado em terceira pessoa, retrata o disparate de um bêbado (Tertulino), que ao sair de casa para a bodega de Adefácio para comprar uma caixa de fósforos, vê sua vida transformada, ao encontrar Manoel Aplônio e seu amigo Elisvaldo, ouvindo histórias do Dr. Luiz, sentados numa mesa da bodega. O diálogo se dá de forma corriqueira e pessoal, típico da região do interior, onde todos se conhecem, nem que seja apenas de vista. Causos são contados na mesa com ritmo descontraído e mesclado com certo exagero e humor, como se fossem histórias de pescador, onde percebemos a presença do real e do imaginário. Tertulino se permite ficar entre histórias e um copo a mais de cachaça, e não percebe o tempo passar. Como não tinha o costume de beber, acaba embriagado pelo álcool que lhe corrói as veias. Há um momento na narrativa, entre o estado conflituoso em que a personagem se encontra: em estar num momento de descontração, e outro de obrigação por ter ciência que a qualquer momento sua vaca Rajada poderia parir. E esta certeza faz com que Tertulino trave dentro de si uma batalha entre o prazer e o dever da responsabilidade, a qual é vencida pelo instinto da obrigação. Ao chegar a casa Tertulino traz dentro de si o resultado do prazer realizado: depois de uma sessão de vômito, procurou a sua rede para tentar dormir. Aqui há outra batalha que Tertulino tem que enfrentar: agora a luta é para vencer o sono, provocado pela bebida e o latido do cachorro Estopa, que se esforça numa tentativa, em vão, para chamar a atenção de seu dono. Nota-se o relacionamento do homem com o animal, num grau de entendimento recíproco. Tetulino só desperta no outro dia com os gritos de sua esposa. A realidade é acompanhada pela desgraça: ao parir, a vaca Rajada morre deixando o bezerro que tenta manter-se em pé. Do outro lado encontra-se Estopa, que com a língua para fora, demonstra o cansaço, por ter passado a noite toda na tentativa de despertar o seu dono e a sensação de que tinha feito algo de errado.

Em Turbulência, décimo primeiro conto narrado em primeira pessoa, traz uma narrativa de teor psicológico. O ambiente se destaca em dois lugares: primeiro em uma fila de caixa de supermercado, e depois no estacionamento. A personagem se vê envolvido em uma discussão ao surpreender um desconhecido tirando as compras de um carrinho de supermercado e colocando em um carro, que ele afirma ser o seu. Dessa discussão resulta na prisão do personagem por acusação falsa, pois não possui nenhum documento que comprove ser realmente ele o proprietário do veículo. Trata-se de uma acusação dolosa. Depois de solto, pois o desconhecido não comparece para assinar o termo de queixa, a personagem é posto em liberdade. O que seria o fim de seus problemas passa a ser o início de vários outros. Ao chegar ao edifício em que afirma morar, nova surpresa: ninguém o conhece. Depois de várias tentativas e argumentos, é rejeitado pelo estado em que se encontra: sujo e total desmazelo. O mundo parece desabar para a personagem. No trabalho também é ignorado por todos. Ao tentar falar com o funcionário Adimeron Claro, descobriu que o mesmo já havia morrido há oito anos. Até a esposa Georgina não o reconhece quando se dá o encontro entre os dois. Novas revelações, todas elas decepcionantes para o personagem, aparecem como uma navalha afiada a cortá-lo por inteiro: Ele havia também saído da empresa, pediu demissão, há oito anos, logo depois da morte de sua esposa. A narrativa revela uma personagem intimamente envolvida em um conflito existencial, em que razão e loucura são partes fundamentais e integrantes desse personagem, fazendo-o ser um desesperado pela situação em que encontra. A não compreensão e aceitação resultam num desfecho em que, movido pela turbulência de sua vida, a personagem opta pelo suicídio induzido ao se vê em frente ao rio que o convida a pular em suas águas, depois de ver refletido nelas a imagem de Georgina com a promessa de que tudo lhe será explicado. A narrativa finaliza sem que o autor revele o seu desfecho, fazendo com que o leitor interaja com a narrativa e seja ele quem deicida o possível final.

No conto décimo segundo, O segredo da morte de Iolita, nos deparamos com mais uma questão familiar. Narrado em primeira pessoa, em forma de desabafo, pela irmã de Iolita. A história gira em torno de um segredo há muito tempo não revelado. Trata-se da morte da própria Iolita, por suicídio, depois de receber uma carta do noivo. A narrativa inicia-se em um consultório médico, em que encontramos a narradora fazendo a confissão sobre a difícil gravidez da mãe e a doença (reumatismo) adquirida após o parto de Iolita. Para isso a narradora se utiliza da memória onde há um regresso aos seus quinze anos, quando assumiu a responsabilidade pela casa e a mãe doente. Questões sobre a posição da mulher na sociedade são abordadas como não apenas uma denúncia, mas como motivo de conformidade para a narradora de sua sina: a de cuidar da mãe e se anular para a própria vida. Revela que por ser mulher, pouco lhe restava a não ser se tornar professora, já que apenas o Pedagógico era reservado a elas. Com o difícil parto da mãe, Iolita teve que ser alimentada por uma ama de leite, comum naquela época. A narradora nunca casou. Substitui a mãe no cuidado da casa e das irmãs, Vincença e Marinita, que foram conservadas do trabalho em casa para poderem estudar. Todas tinham em comum apenas o cuidado reservado para Iolita. As irmãs também nunca casaram pelo fato de serem consideradas feias, fora do padrão de beleza feminina. Iolita foi a única que noivou. Noivou mas não casou. O noivado fora rompido pelo noivo ao descobrir que Iolita era portadora de epilepsia. Fica claro aqui o preconceito contra a anomalia, como algo repugnante para a sociedade. O rompimento do noivado se dá através de uma carta, que depois de ser lida por Iolita, sem alterar a fisionomia, continua a tocar músicas no piano. O suicídio, por enforcamento, se dá logo em seguida. A narradora a encontra em seu quarto com a cabeça pendida e já morta. O verdadeiro motivo do suicídio foi escondido das irmãs. Alegou-se no atestado de óbito que a morte tinha sido causada em consequência de uma crise da doença de Iolita. Este segredo atormentou a narradora por quase sessenta anos e agora aos noventa anos, tenta livrar-se desta culpa. Não sabe se deve revelar ou não para as irmãs, já no final de vida, o verdadeiro motivo da morte de Iolita, por isso encontra-se ali na sala do doutor em busca de um conselho.

O décimo terceiro conto é intitulado Visão. O narrador é o próprio personagem que deixa o seminário para ir ao enterro do avô Juvêncio. Depois de um longo percurso, cansativo e esbaforido da poeira da estrada, chega a casa aonde era esperado por seus familiares. Estavam todos lá: amigos, familiares e pessoas que ele não conhecia. A cena mórbida se transforma quando o narrador vai ao banheiro para lavar o rosto e se depara com uma mulher dentro do banheiro, com a porta meio aberta, permitindo-lhe ver seus pelos e o branco da barriga. A visão o deixara aturdido. Questiona-se sobre os votos de castidade e a tentação do que vira, num embate íntimo que o devora psicologicamente num embate entre matéria e espírito, corpo e alma. A tentação era por demais impressionante. Ficara preso a visão da carne escondida que ganhava formas aos olhos do narrador. Outra visão lhe aparece num istmo entre realidade e alucinação, ao ver deitado no caixão o corpo da mulher nua, a do sanitário, ao invés do avô. Durante o velório, como era de costume, destacavam-se os causos, contados por Osmarino, como parte fundamental do ritual. O embraço do narrador aumenta quando se depara com a mulher do sanitário sentada entre as pessoas na sala. Ao ser apresentado a ela, toca-lhe a mão que emite um forte cheiro de carne, de fêmea. Logo se deixa levar pela impressão causada por suas partes íntimas, aumentando assim o seu desespero por ser tentado por uma mulher e que se coloca em questão a sua pureza e alma versus seu corpo e sua carne. A resolução do narrador surpreende: declara para a sua mãe, único discurso do narrador na narrativa, que não voltará mais ao seminário, nem mesmo para pegar as suas coisas, prevalecendo assim o desejo sobre a devoção, numa intertextualidade que nos remete ao livro Hilda Furacão de Roberto Drumond.

Em Reencontro, décimo quarto conto, o autor traz a problemática da traição e do difícil convívio de um casal. Narrado em terceira pessoa, o conto, como uma denúncia as precariedades de um relacionamento defasado há 25 anos. Problemas do cotidiano, tais como: a falta de tempo devido ao trabalho dos dois personagens centrais, ele cobrador de ônibus e ela secretária em um consultório médico e a mesmice tediosa, são abordados como referência e causa da separação do casal. O conto inicia-se na cama, no quarto do casal, onde depois de um dia cansativo, o personagem masculino é recusado pela fêmea. A recusa passa a ser uma constante no relacionamento dos dois. Ela sempre cansada, depois de passar o dia todo em pé. Ele sedento como um animal, sentia-se ferido em seu ego masculino. O resultado é a separação inevitável. Supreendentemente a separação é o clímax do conto. Daí em diante os personagens vão viver cada um a sua vida. Ele, livre agora para procurar outra mulher, vai em busca da satisfação carnal perdida a muito tempo. A surpresa se dá quando ao marcar um encontro com uma mulher, última atração do momento, em um hotel, descobre ser ela a sua ex-mulher. O ato sexual é reverenciado agora como um contrato: faz-se necessário o pagamento do serviço a ser prestado, sem sentimento algum e nem direito a recusa. A entrega é total e prazerosa para ambas as partes, fato que nunca aconteceu quando eram marido e mulher. E o efeito causado dessa entrega fica visível na personagem masculina ao constatar que ela é igual a todas as outras mulheres.

Explicação, décimo quinto conto, é um retrato do cotidiano de uma pequena cidade de interior, em que todos sabem o que acontece com todo mundo. Narrado em primeira pessoa, o conto baseia-se em um fato que não passa despercebido: um casamento desfeito. Ninguém, porém, sabia o real motivo. A língua do povo era afiada e os comentários diversos: o noivo gostava de homem ou a noiva já era perdida. O povo a comentar e a especular explicações sobre a fuga da noiva para a capital. O narrador vivencia os fatos como um telespectador atento ao que se passa ao seu redor. Outros personagens vão surgindo na narrativa, como D. Eufrozina Jardim, que com seus oitenta anos, nunca tinha visto um casamento ser desmanchado no dia da celebração. Atribuía ser isto consequência das mudanças e um castigo para a noiva por possuir um comportamento tão moderno, fazendo uma comparação entre presente e passado. Outros aparecem ainda, como figuras que compõem uma mesma problemática: os prejuízos que a não realização do casamento pode causar a todos. São exatamente esses personagens que contribuem para a narrativa ganhar um tom de uma comédia de costume, numa intertextualidade que nos remete aos autos de Gil Vicente e Ariano Suassuna. E o desfecho do conto torna-se ainda mais hilário, quando o narrador anuncia, depois de duas semanas e a euforia dos comentários já terem baixado, uma carta explicativa, na casa de Melâncio Abrônio, escrita pela filha mais nova, relatando-lhe o que realmente se sucedera: tinha fugido com o noivo da irmã para o Rio de Janeiro, e agora pedia ao pai a bênção para poder casar com o ex-noivo da irmã.

Ainda em tom de humor, Assunto sério, décimo sexto conto, traz um narrador em primeira pessoa angustiado com a própria consciência, ao receber um convite do compadre Ariolino, para acompanhá-lo a uma feira. A desconfiança do narrador é o olhar de quem fez algo errado. A culpa o atormenta durante o percurso de ida a feira, ao lado do compadre. O receio que o corroía por dentro era pensar que o compadre tinha descoberto a sua traição com sua esposa Ninita. Os detalhes da traição são relatos sem um teor de arrependimento. O narrador deixara-se levar pelas investidas da mulher e estava determinado a cometer um homicídio se o compadre resolvesse querer se vingar. Para isto estava preparado, mas não para o que o compadre lhe revelara: Ninita está traindo a ambos. Com esta revelação dá-se o desfecho do conto e a revelação do assunto sério.

Em A espera de meu sobrinho-neto, décimo sétimo conto, narra em primeira pessoa, a paixão de um velho por uma moça, casada com o seu sobrinho-neto Jeozélio. O conto inicia-se com o narrador em fuga. Uma fuga para a sobrevivência. Depois de ser apresentado a Donária, apaixona-se perdidamente por ela. O vislumbre diante da moça, o olhar, tudo confabula para que nele renasça o fogo há muito tempo apagado, numa outra intertextualidade com Gil Vicente em seu auto O velho da horta. A insistência do velho ao rever Donária, só reafirmaria o seu desejo de possuí-la como esposa. Levara ao pé da letra a resposta - recusa de Donária que só poderia casar-se com ele se ficasse viúva. Desse impedimento, surge a ideia de matar o sobrinho-neto na ilusão de casar-se com ela. Contrata um matador de aluguel, o soldado, que executa o crime. O personagem, apesar da idade, aparenta certa ingenuidade. Acreditou que depois de viúva Donária iria se casar com ele, e logo vai reclamar a promessa, que ele acreditava, ter sido feito por ela. Um ato inconsequente que desperta desconfianças em outro sobrinho, Meandro. O narrador revolta-se com Donária, por voltar atrás, e a certeza de ter sido enganado por ela. Depois de se confirmar as suspeitas de Meandro, o narrador sai de casa em fuga, numa tentativa desesperada pela sobrevivência. Tem ciência, no entanto, que logo será alcançado pelo sobrinho. Senta-se numa pedra e fica a espera da morte com o pensamento em Donária.

O décimo oitavo conto, Meu filho Teodósio, narrado em primeira pessoa, traz um protagonista, que se utiliza também da memória, quando observa o filho Teodósio e o compara consigo mesmo. O menino tem as características do ser embrutecido do sertão: isolado, calado, sem contato com a sociedade. O narrador, Otacílio, de forma introspectiva, vai narrando os fatos referentes a si mesmo, numa lembrança de infância relacionando sua vida a de seu filho, numa comparação constante entre ele o menino. Depois de assassinar o pai, de ter sido preso por muito tempo, Otacílio vive atormentado pela lembrança do que fizera ao pai. Para ele este é o seu castigo que tem que carregar para sempre. Detalhes da vida do narrador e do seu relacionamento com o seu pai, são apresentados na narrativa para que o leitor tome ciência do motivo do assassinato: os maus tratos, a violência e o trauma na criação, faz com que a personagem se revolte e num momento de fúria incontrolável, mata o pai com uma peixeira (faca). A condenação e o julgamento são relatados de forma constrangedora para o narrador, por ter sido exposto para todos. Ao sair da penitenciária e voltar para casa, se depara com a triste realidade: as terras abandonadas, por falta de cuidado. Sua mãe, personagem forte, seca e amargurada, lhe atribui à responsabilidade por ter matado o pai, e em substituição a este, lhe entrega as obrigações do sítio, onde terá que trabalhar por dois: por ele e pelo pai. Deixa, num momento de razão e vingança, o jenipapeiro como símbolo que representa o local da morte do marido e punição para que Otacílio nunca se esqueça do que fizera. A figura da mãe, na narrativa, ganha destaque por ter ela a voz determinante sobre o narrador. Tudo nela era medido. As palavras certas, a escolha do casamento arranjado com a sobrinha, viúva recente. Logo depois vem o nascimento do filho Teodósio e o narrador expõe o tratamento diferenciado que tem para com ele. Tem receio de bater no filho e que a história se repita numa herança de pai para filho, num ciclo vicioso, passado de geração para geração. Atribui ser a violência, que gera violência, um problema cultural, o qual está longe de cometer o mesmo erro, por medo de que o filho faça como ele o que ele fez com o pai.

No décimo nono conto, Consulta, o autor volta às questões jurídicas. Narrado em terceira pessoa, o conto é ambientado em um escritório de advocacia, numa verossimilhança com o cotidiano, numa cidade de interior, onde o advogado é procurado para solucionar diversos casos. O tema é a herança. A narrativa inicia-se com a visita de Quiliandro Buas para fazer uma consulta, que se transforma em um longo desabafo relacionado ao passado, ao pai do advogado e a época da criancice. Cheio de rodeios e o uso exagerado da repetição de palavras, o velho torna-se uma figura indesejada e tediosa, diante de um advogado que se controlava para não explodir diante do longo monólogo, transformado numa epopeia agreste. Depois da longa introdução, Quiliandro ganhava novo fôlego para expressar-se com indignação: Reclama sobre a idade e a dificuldade que passam os velhos, citando como exemplo, D. Cinzina, ex-professora, que com a perda de memória, não reconhece mais seus entes queridos. Outra personagem ganha também destaque, seu Cipriano Granjeira, velho que caducava e confundia a filha com a esposa, atribuindo ser a idade a responsável pelos problemas humanos. O interrompimento do discurso, pela falta de paciência e a vontade de se livrar logo do cliente inconveniente, faz com que o advogado questione qual o verdadeiro motivo da consulta. Trata-se apenas de uma dúvida: quem ficaria com a herança se D. Ozielita morresse? Depois de receber a resposta satisfatória do advogado, despede-se, pedindo-lhe desculpas pelo tempo que o fez perder, e informa que precisa retornar a casa para cuidar do sepultamento de D. Ozielita.

O vigésimo conto, intitulado Justificações, mistura a temática do casamento e a política. Narrado em primeira pessoa, com um personagem-protagonista feminino, o conto revela os bastidores da politica e do que o homem é capaz de fazer para realizar suas ambições políticas. Casada com Odimar, a narradora vê seu casamento ser transformado quando o marido resolve entrar para a política. As mudanças acontecem de forma radical: de fazendeiro a político. Depois de eleito prefeito, Odimar quer ir mais além: lançar a candidatura da mulher (narradora) para sucedê-lo e assim ele continuar mandando na cidade por mais quatro anos. A ideia, que parecia ser simples, transforma-se à medida que outras mudanças terão que ser feitas: primeiro a separação. O plano era convencer os adversários, que já estavam desconfiados da trama, e o eleitorado de que estavam realmente separados, para isso a separação foi oficializada em cartório e passaram a morar em casa separada. Os adversários alegavam ser uma fraude e tentam anular a eleição e a candidatura. Para a narradora havia duas soluções: primeiro a possibilidade de salvar o casamento, se houvesse o anulamento da campanha política. A segunda opção seria um novo casamento, com outra pessoa, para não haver nenhuma dúvida da veracidade da separação com Odimar. Optam pelo casamento arranjado com o filho do vaqueiro, um jovem de dezoito anos, que passará a conviver com ela até o resultado das eleições. Depois da vitória, a narradora agora como a nova prefeita, tem a ideia de comemorar a vitória a dois, com o atual marido, filho do vaqueiro. O desfecho do conto é a reviravolta na vida da narradora que toma gosto em ser prefeita, o que acarreta em Odimar a revolta e tenta cancelar o casamento da ex-mulher, alegando ser uma farsa. A narradora justifica-se diante da população a exibir, acobertada pela lei, a certidão de separação e a do novo casamento, provando assim a veracidade dos fatos.

Em Valor do cão da rapariga do cabo, vigésimo primeiro conto, inicia-se com a descrição de uma cidadezinha, com apenas três ruas. Toda a população encontrava-se na delegacia. O motivo tinha sido o atropelamento do cachorro da rapariga (Alzenita) do cabo (Idalécio), por Elvino de Adaliba, motorista de caminhão. Tinha sido um acidente, porém, encontrava-se detido e recusava-se a pagar uma indenização de 500,00 (quinhentos reais), o que não concordava e tentava reduzir o valor. Outro personagem se destaca na narrativa: o motorista do opala Laudenor, que era amigo do detento, e tenta negociar com o delegado. Depois de muitos argumentos, todos recusados pelo delegado, que tinha um encontro com Rosentina, anulado devido ao preso e o processo na delegacia. Laudenor se lembra de ter levado, em seu carro, o juiz de Nossa Senhora da Glória. A denúncia é desfeita pelo simples fato de citar o nome do juiz e o delegado volta atrás, por saber que Laudenor é amigo do juiz, e libera Elvino sob o poder de um nome.

O vigésimo segundo conto, Última tarefa, relata em primeira pessoa, o desespero de um sobrevivente numa cidadezinha, depois de bombardeada. O narrador faz uma reflexão, depois da saída de Salma, outra sobrevivente, em busca de ajuda. A cidade é um caos em destroços. Corpos mutilados e mortos estirados pelas ruas, deixando um rastro de putrefação. Em cima de uma cama, com uma perna machucada, o narrador deixa-se levar pelas lembranças, memória, presente e passado, como subterfúgio para passar as horas, devido à demora de Salma. Depois se decide sair da cama e se entregar as tropas inimigas que chegam à cidade. Ao abrir a porta depara-se com uma visão assustadora do que sobrara da cidadezinha. Fraco pela fome, espera a decisão dos invasores sobre o seu destino. No entanto, o pelotão passa por ele sem notá-lo. Neste ínterim a narrativa torna-se ambígua pela possibilidade de o personagem já estar morto e ainda não tenha percebido. Decide-se então sair a procura do corpo de Salma para poder enterrá-lo.

Cavalheirismo, vigésimo terceiro conto, narrado em primeira pessoa, traz um narrador feminino e o cotidiano de um escritório, onde trabalha. O conto inicia-se com narradora a espera de Crescêncio ao escritório. A rotina do trabalho é descrita pela narradora observadora, que com detalhes específicos, vai relatando os costumes e hábitos de Crescêncio. Um detalhe na narrativa ganha destaque: a afinidade do filho Políbio e Crescêncio. Ele é o filho que Crescêncio não teve e Crescêncio o pai que ele não tem. A personagem é uma pessoa comum. Mãe solteira que tem medo de trovão. Crescêncio é o oposto. Casado com Teodolina, feia e gorda, que vive insegura e com ciúme da relação do marido com o filho da narradora. A atração da narradora por Crescêncio faz com que ela confesse o seu desejo por ele, não só como um pai para o seu filho, como um homem para ela mesma. A decepção da narradora se dá pelo fato do excesso de cavalheirismo de Crescêncio, que em uma noite de chuva e trovoada no escritório vazio, deseja ser derrubada no sofá e ser possuída por ele, o que não acontece desfazendo qualquer possibilidade de seu filho ser dele.

Em Reconhecimento, vigésimo quarto conto, narrado em terceira pessoa, é abordado à temática do banditismo. Ambientado em Pau Vermelho, o conto inicia-se com a visita de um policial a casa de Edenildo. O motivo era o corpo de um homem morto que precisava ser identificado em Aracaju. Pelas características, o cadáver poderá ser o filho Marêncio que se tornara um pistoleiro de aluguel, e agora tinha sido assassinado, por outro pistoleiro de mesma sina, como um arquivo morto em Aquidabã. Para a mãe, Salvelina, o filho encontrava-se em São Paulo trabalhando como pedreiro e não tem ciência de suas atividades. Um detalhe na narrativa chama atenção do leitor: o desejo de Edenildo para fumar um cigarro. Sem poder recusar, Edenilo viaja com o filho Oliveiros em um ônibus para Aracaju. Essa era a primeira vez que a personagem ia a Aracaju. Tinha o receio de que o filho mais novo se transformasse também em um fora da lei, omitindo assim os fatos referentes a Marêncio, já que Oliveiros tinha expressado o desejo de também ir morar em são Paulo e tornar-se um pedreiro como o irmão. Durante o percurso, Edenildo reflete sobre o filho Marêncio, a infância e a sua vocação para a caça e a transformação em pistoleiro, numa comparação com Lampião e o seu surgimento, como se estivesse à procura de uma justificativa para a triste realidade do filho. No IML de Aracaju reconhece o filho e o nega para poupar a mãe de um grande desgosto. Seria demais para ela. Depois de encerrado o reconhecimento negativo, foi dispensado pelo delegado. Ao sair é entrevistado por um repórter de uma rádio e de novo nega o filho e faz um pedido surpreendente: pede para fumar um cigarrinho.

O vigésimo quinto conto, Roendo o osso, traz uma narrativa tensa em primeira pessoa. O narrador, um borracheiro proprietário de uma oficina, vê-se atentado pela vizinha Leordina, casada com o pedreiro Oliberto. O tema da traição é abordado com a intensidade de revelar as consequências de um ato não pensado. Depois da traição, cuja data nunca esqueceu: 14 de outubro de 1985, enquanto a sua esposa Castorina estava fora trabalhando, o borracheiro se deixa levar pela tentação da carne. O que seria apenas uma aventura torna-se para ele o seu maior tormento. Primeiro por saber que o marido da vizinha era um sujeito rude e tratar a esposa com violência. Depois ao ser comunicado por Leordina que estava grávida. O medo apodera-se dele, lamentando a hora infeliz em que se envolveu com a mulher do vizinho. Com o nascimento do filho, com os seus olhos e traços de sua mãe, novo medo o apavora. A ironia da personagem é o fato de sua esposa também encontrar-se grávida. De um momento para o outro, o personagem se torna pai de dois filhos: um menino com a vizinha e uma menina com sua esposa. Tenta mudar-se, mas com as dificuldades e por já estar estabelecido e ter clientela certa, desiste da ideia ficando refém do ato do passado. Restava-lhe apenas criar o filho junto com a filha. O que ele não esperava era que os dois, depois de crescerem juntos, tornassem namorados. Novo dilema para o personagem: não falar nada para os dois ou tentar romper com o namoro, deixando vir à tona toda a verdade. Depois de refletir chega à conclusão de que merece estar passando por tudo, ou seja, está sentindo na pele como é bom roer o osso depois de comer a carne. O desfecho do conto torna-se uma incógnita pelo fato da personagem desejar que sua esposa Castorina confessasse não ser ele o pai de sua filha e sim o antigo patrão, já que este vive sempre enchendo a menina de presentes, mesmo depois de sua esposa não trabalhar mais para ele há muito tempo, o que para ele seria um alívio.

Em Confissão, vigésimo sexto conto, semelhante a mais um causo contado em roda de amigos, traz um narrador em primeira pessoa, que em uma conversa com o filho numa pescaria, revela um possível segredo: a relação sexual entre homem e bicho (fato comum entre meninos que moram no campo, sítio ou fazenda e convivem com animais ao chegar à puberdade). A conversa é em tom confessional, pois havia o receio em se falar de um segredo ocorrido há muito tempo. A história gira em torno da família de Camungo Grande e seus quatro filhos e suas duas filhas Eutímia casada com Tertino e Trifina a mais nova. É comum no meio da narrativa o pai pedir ao filho para que ele não revele nada do que lhe é revelado a ninguém, prevenindo-o de uma possível ameaça de morte, por ser este um assunto mal sucedido que ainda desperta atenção. A tragicidade faz parte também da narrativa. Eutímia fica grávida de Tertino e ao assustar-se com uma briba (nome dado a uma lagartixa de parede), faz com Eutímia perca o filho (nasce morto). Em seguida outro fato marcante acontece na narrativa: a irmã mais nova Trifina é estuprada por Tertino no quarto da irmã e o resultado desse estupro é a gravidez. Trifina em desespero confessa aos irmãos o que ocorrera com ela, atribuindo a culpa por sua desgraça a Tertino, que nega e joga a culpa em Cleofas, um jovem que vivia nas redondezas e teve que fugir para a capital com medo dos irmãos de Trifina. Quando o filho nasce é rejeitado pela família. O reencontro dos irmãos se dá em certo dia, quando Trifina passeia com o seu filho, agora com cinco meses de idade. Os irmãos analisam o sobrinho e observam as características físicas dele com o cunhado Tertino. Em seguida o irmão Valdener viaja para Aracaju a procura de Cleofas com uma proposta: ele poderia voltar para casa e assumir Trifina e o filho dela como o seu. A vingança marca o fim da narrativa e o fim de Tertino, que desaparece misteriosamente sem que ninguém saiba para onde, deixando para quem quiser e tiver a coragem de imaginar os possíveis fins que o levou. As versões são muitas, porém, ninguém se atreve a questionar o que realmente aconteceu.

O vigésimo sétimo conto, Descida, é um istmo entre realidade e devaneio. O narrador, em primeira pessoa, é um possível médico que ao sair de casa para cumprir mais um dia de trabalho, se vê dentro de um elevador relembrando o que tem de fazer nesse dia. Em tom de suspense a narrativa inicia-se quando o personagem entra no elevador e aperta o botão do térreo. O desespero surge ao perceber que a descida não tem fim e nada funciona (o botão de alarme, o celular, o número de sua casa não existia) tornando-o um prisioneiro do elevador. Depois de muita tentativa para sair do elevador, todas fracassadas, o narrador reflete sobre sua condição e se lamenta por ter interrompido seus afazeres por estar preso em um elevador. Uma nova decepção surge: o relógio também tinha parado, como se o tempo deixasse de ter significado real para a personagem, fazendo-o se sentir abandonado por todos numa dura realidade que o envolve lhe causando a impressão de também já está morto. Questiona-se se está vivo ou morto. Se não passa de um espírito descarnado. Perde por completo a noção de tempo. Encontra-se com cabelos e barba enormes, o que lhe dá a certeza de que o tempo não para, assim como o elevador que o leva cada vez mais para baixo, sem chegar a lugar algum. O conto finaliza com essa incógnita não revelada pelo autor. Nem mesmo o personagem parece perceber qual é realmente a sua situação e deseja ardentemente que o elevador pare, nem que seja no inferno.

Dia diferente, vigésimo oitavo conto, é um conto sobre assassinato e abandono. Narrado em terceira pessoa, inicia-se de forma trágica: a morte de Ageunita, que se encontra socada numa poça de sangue, depois de receber uma facada do marido. Tudo isso é presenciado pela filha Isidéria, de seis anos, e a vizinha Silvanete, que aos gritos pede que alguém a socorra. Os motivos são revelados pelo narrador que mostra a difícil relação entre marido e mulher e que, após uma discussão, enfiara a faca no peito de Ageunita. O abandono se refere à Isidéria, que ainda não sabe o significado da morte e observa o transporte do corpo e depois dentro do caixão. O medo de levar carão do pai e da mãe, a qualquer momento, faz com que ela deseje não mais vê-los. Para ela tudo é novidade. Delicia-se comendo pão com manteiga ao ver o pai ser preso. Torna-se curiosa com outras meninas, por não saber exatamente o significado das coisas que elas falam. Livre dos gritos da mãe, Isidéria pôde finalmente sair para a rua e brincar com outras crianças, descobrindo um mundo novo, o que não lhe era permitido antes. Essa experiência a agradou muito ao ponto de desejar fazer tudo de novo no ouro dia. Para ela o dia tinha sido diferente.

O vigésimo nono conto As três filhas de Pedreiro Pedra, narrado em terceira pessoa, é um conto que mescla o hilário com a tragédia, sobre a (in)felicidade de Assuélio, que acaba se casando com as três filhas de Pedreiro Pedra. O conto inicia-se com a paixão de Assuélio por Anunciada, que ao visitar a sua barraca na feira a procura de uma linha azul, deixa-o fascinado por sua beleza. Lastima-se por não ter a linha procurada por ela, e vai a Aracaju para se precaver e esperá-la na próxima feira. No segundo encontro dá-se o diálogo entre os dois e a certeza de que é também correspondido por ela em sua paixão. Logo vem o casamento e depois com pouco tempo de casado a desgraça: apareceu uma espinha que tomara conta do rosto de Anunciada e foi espremida, causando-lhe a morte. Depois de muito tempo, Assuélio procurou abrigo na casa do sogro onde encontrou conforto, para as suas lamentações, no ombro de sua ex-cunhada Veraldina, a irmã do meio de Anunciada. A aproximação com Veraldina faz com que surja uma nova paixão em Assuélio e em seguida novo casamento, causando comentários maldosos entre as pessoas. A primeira gravidez veio e com o nascimento da filha, Floricélia, logo em seguida Veraldina fica grávida de novo. Mas o destino prega em Assuélio mais uma desgraça: A morte de Veraldina, depois de uma queda que lhe acarreta o aborto seguido de morte. Com a morte de sua segunda esposa, Assuélio ganha nova fama entre as pessoas: Além de casar com as filhas de Pedreiro Pedra, também a triste sina de enterrá-las. Mas a vida continua e Assuélio tem uma filha para criar. Contrata uma mulher, Avercília, moça, de vinte anos e corpo torneado para cuidar de sua filha, causando novos comentários maldosos, preocupando o ex-sogro. Era preciso agir com urgência. Logo Assuélio recebe do ex-sogro a proposta de casá-lo com sua filha mais nova Zulina. O casamento foi celebrado apenas no civil por exigência do noivo. Depois de muitos filhos e quase setenta e nove anos de casado, Assuélio se vê viúvo pela terceira vez. Zulina morre vítima de uma violenta febre que não se descobriu a origem. Para Assuélio só lhe resta a viuvez, pois não havendo mais filha de Pedreiro Pedra para casar, acha estranho casar-se com a filha de outra pessoa.

O trigésimo conto, intitulado Cama Nova, traz um narrador em primeira pessoa, pedreiro, que se encontra brigado com o pai. O motivo é uma imposição do pai: ou o filho larga a esposa Quiminha, ou ele não lhe dirige mais a palavra. O personagem narrador não aceita e nem acredita nas blasfêmias do pai. Para ele é pura cisma do velho com Quiminha. Para aumentar a cisma do pai, Quiminha viaja para a feira de Areia Branca com Cleóbulo, primo do narrador. Tudo consentido pelo narrador, que não vê maldade alguma. A situação se complica quando o personagem volta para casa no sábado e encontra a casa fechada, aumentando assim as suspeitas do pai. Depois de expor seus argumentos como quem quer justificar a traição de Quiminha, o personagem resolve procurar ajuda com Jasmelino rezador. Ele está ciente da traição da esposa, porém, age de forma defensiva, transformando a esposa em vítima das molecagens do primo. Quando Cléobulo é expulso da rua, por tentativa de estupro, enquanto Eluza estava tomando banho, o narrador vê a possibilidade de ter de novo a sua esposa volta. Com o abandono de Cléobulo, Quiminha procura o narrador e lhe pede perdão. A volta se dá como desfecho do conto e satisfação do narrador, que para comemorar compra uma cama nova.

Obstáculo, trigésimo primeiro conto, narrado em primeira pessoa, traz um narrador- personagem feminino. O conto inicia-se com uma declaração do narrador: a morte é certa. A narradora Vestina, através da memória, observa o envelhecimento da tia-madrinha Daminiana. As lembranças são referentes ao seu cotidiano, quando jovem e costumava bordar, preparar tachos de doce de goiaba e esperar o noivo Pancário. Depois da notícia da morte e do sepultamento de Pancário, deu-se o derrame da madrinha, deixando-a inutilizada. As dificuldades são muitas. Mãe e filha passam a cuidar de Daminiana, que depende completamente das duas e que vai definhando em cima de uma cama, sem reação nenhuma. A narradora passa a substituir a mãe, quando esta fica doente, atribuindo a ela toda a responsabilidade no cuidado com Daminiana. Vestina transforma-se em moça tomando conta da madrinha e ajudando a mãe e quando esta morre, cabe a ela o fardo de continuar cuidando de Daminiana. Omite-se de tudo. Não possui vida social e nem pessoal. Vestina faz uma reflexão do que é sua vida e revolta-se contra a tia-madrinha por esta não viver e nem deixá-la viver. O tempo é decisivo para a sua decisão. Após dezesseis anos de derrame, o que deixa médicos surpresos, Daminiana ainda continua sendo o obstáculo na vida de Vestina. A narrativa torna-se densa quando Vestina toma uma decisão: matar a madrinha para poder viver. O monólogo final da narradora com a madrinha é um desabafo de quem já não suporta o pesado fardo e precisa se libertar. E para isso não irá medir esforços.

O trigésimo segundo conto, O casamento de Esterlito, é um conto de humor. Narrado em terceira pessoa, a história gira em torno do namoro entre Esterlito e Floduarda, causando desagrado geral. O motivo é de conhecimento de todos: Floduarda já tinha dormido com muitos homens e estava enganando Esterlito, que inocentemente, foi envolvido por ela. A indignação torna-se maior quando o noivo não leva em consideração os comentários sobre sua noiva. Dá-se início então a preparação para o casamento. O primeiro passo foi o pedido de casamento no fórum. A segunda fase é referente à noiva e ao seu vestido. Para isso é preciso ir a Itabaiana para provar o vestido, provocando comentários entre as pessoas. Especula-se um aborto de Climério, teria ido a Aracaju para “tapar o buraco”, ou o casamento seria uma farsa para limpar a honra de Floduarda. Pensaram em falar com o padre para tentar impedir o casamento, o que foi logo descartado, pois o casamento seria no civil. Questões são abordadas que servem de reflexão, tais como o casamento como um bom futuro para a mulher. O desfecho do conto é a realização do casamento, o que deixa a população, através da fofoca, em rebuliço. No dia seguinte a decepção: Esterlito vai à casa da escrivã bem cedo para informar que irá a Aracaju na tentativa de cancelar o casamento. O motivo: a porta de Floduarda estava toda escangalhada.

O último conto Aparição, trigésimo terceiro, é uma narrativa de vingança e ódio. Narrado em primeira pessoa, e com características do suspense, inicia-se com um sonho (pesadelo), depois de muito tempo: a aparição da alma pedindo perdão. Esta lembrança atormenta a narradora, que através da memória vai relatando o tempo em que, ainda menina, e que brincava de boneca de pano, e é estuprada. Ninguém nunca soube do estupro, a dor ficou retida no corpo e na mente. O pedido de perdão vem como uma necessidade do defunto poder descansar em paz. A vingança da narradora se deu quando o empurrou da cachoeira, causando a sua morte. Para ela não há arrependimento, apenas o alívio por ter se vingado do causador de sua desgraça.