Tiro no Coração - Mikal Gilmore
Não é um livro que você vai ler e esquecer a história. É um livro que fica marcado no âmago, que tem uma força mental devastadora caso você não esteja preparado para lê-lo. É um tiro no coração. Mikal Gilmore é o irmão caçula de uma família perturbada e, neste livro, tenta buscar nas gerações que o antecederam a origem dos erros e atrocidades que seus contemporâneos cometeram. Desde a incursão no mormonismo de Joseph Smith à concepção de sua mãe, Bessie Brown; desde a concepção de seus irmãos à sua própria concepção, Mikal relata com maestria e minúcia acontecimentos isolados que, sendo observados em particular, não exercem importância no que culminou na repentina fama de seu sobrenome, mas que ao irem se somando durante a narrativa resultam - pelo menos parcialmente - na antítese de uma frase do julgamento final de Gary Gilmore: a infância não salva o adulto (?). Bessie Brown conhece Frank Gilmore, um homem misterioso que é apenas 4 anos mais novo que seu pai. Dias depois, casam-se e se entregam a uma jornada nômade de pequenos golpes em cidades americanas. Frank não fala o que faz. Apenas pára nas cidades por no máximo duas semanas e depois arrasta Bessie para uma outra parada - outra cidade, outros golpes. Bessie, com uma infância marcada por espíritos, fantasmas e mortes, vê em Frank a possibilidade de realizar pequenos sonhos e se livrar dos traumas de seu passado sangrento - em sua infância, Bessie foi obrigada pelo pai a ver um enforcamento em praça pública, por exemplo. A origem de Frank, seu passado, seus medos são uma verdadeira incógnita. Seu alcoolismo, sua rudeza, amargura, falta de tato, não. Durante uma temporada que moraram na casa de sua mãe, Bessie descobre que em suas andanças Frank casou-se inúmeras vezes, em muitas delas deixando filhos e desaparecendo. Surge também a possibilidade de que ele é filho de Harry Houdini. Continua-se a vida instável, cigana, e os filhos vão nascendo: Frank Jr., Gary, Gaylen e Mikal. Mikal foi o único que não descobriu o lado maldito de seu pai. Os outros três eram espancados por qualquer motivo torpe. E assim o ódio foi crescendo com eles. Pais que não conseguiam jantar um único dia sem se xingarem até perder a voz e as estribeiras e surras por nadas e nadas. Gary rouba, falta à escola para beber e usar drogas. Fica meses num reformatório e boa parte deste tempo sob vigilância máxima. O curioso é que é por pura opção. Gaylen gosta de ler sobre crimes famosos e perde horas e horas divagando, pensando no crime perfeito. E enquanto ele pensa, Gary executa - e claro, longe de ser perfeito e é constantemente preso. Roubo de carros, de lojas, fuga. Frank é o mais calmo e sua importância maior no livro é a de conceber suas memórias para sua realização. Além de ser vitima dos espancamentos, claro. Gary, já na casa dos trinta anos, os últimos oito confinado, por demonstrar bom comportamento e talento artístico é solto em regime condicional para cursar a faculdade de artes. (Nesse ínterim, Gaylen morre de forma misteriosa – talvez com ferimentos de facadas na barriga). Viola a condicional e é preso dias depois, após assaltar uma loja. Preso novamente, novo julgamento, acréscimo de meses e mais meses de reclusão. Inúmeras tentativas de suicídio. Gary é transferido para um presídio federal e depois é solto, para ficar sob observação da família de sua prima Brenda e começa a trabalhar, namorar e se apaixona. Após um espancamento a mulher o abandona e desaparece. Gary sai à procura dela, armado, e acaba indo assaltar um posto de gasolina onde pediu que Max David Jensen deitasse no chão da loja de bruços com os braços para cima e disparou friamente dois tiros em sua nuca – o primeiro por ele e o segundo por Nicole, sua namorada. Um dia depois foi a vez do atendente de motel Ben Bushnell ter o mesmo destino pelas mãos de Gary - na frente da esposa e do filho. O depois é história. Gary incentivando o governo a levar à cabo sua condenação à pena de morte – a primeira depois de um hiato de dez anos sem execuções nos Estados Unidos. Entrementes, todo um aparato de mídia é instalado na cidade. Gary vira uma espécie de celebridade do dia para a noite e manipula isso a seu favor. Larry Schiller compra os direitos autorais sobre sua vida e Norman Mailer enche os bolsos de dinheiro com o premiado e aclamado livro de centenas e centenas de páginas sobre a história de Gary Gilmore. “Canção do Carrasco” é o nome do livro. Em suma, é um livro perturbador, chocante. Durante a sua leitura – às vezes até cansativa nos primórdios da história dos Brown/Gilmore – eu tirava cochilos e era inevitável não sonhar com as cenas que minha mente criava. De certa forma, eu via a história. Vivia a história, naqueles descritos dias calorosos e áridos dos desertos americanos, das surras que os irmãos Gilmore levavam, ouvia os inúmeros choros de desalento de Bessie e conseguia ver a carranca tempestuosa e maligna de Frank Gilmore. Sentia as angústias de Mikal como se fossem as minhas angústias. E por fim, via Gary, amarrado, com os olhos vendados e proferindo suas talvez últimas palavras: Let’s do it, antes de ter o coração crivado de balas. Eae, você tem estômago pra enfrentar esse livro? Para enfrentar a realidade do seu lar? Para enfrentar você mesmo?