O EVANGELHO DE JUDAS

E se Judas não fosse o traidor que as escrituras sagradas quiseram nos fazer crer nestes dois mil e tantos anos de fé cristã, o que mudaria em nossas crenças? O que mudaria na História? Na minha, nada, porque a fé que tenho em Jesus não se baseia na sua biografia ―que aliás, ninguém escreveu― mas sim no conteúdo da sua mensagem.
Ninguém pode, até hoje, dar uma descrição física de Jesus, nem sequer uma versão confiável da sua vida, enquanto personagem histórico. Tudo que se escreveu sobre ele e sua história de vida são arquiteturas mentais urdidas mais com fantasia do que com documentos históricos para comprovar a veracidade dos fatos que descrevem.
Dificilmente se acreditaria, por exemplo, que algum dos chamados evangelhos canônicos tivessem sido escritos por verdadeiros apóstolos de Jesus, ou seja, alguns daqueles que andaram com ele, o conheceram pessoalmente e escutaram as suas aulas. Se o fossem, teriam escrito os seus relatos na primeira pessoa, e não em forma de meta-mensagens, como aparecem nos ditos evangelhos. É difícil crer que uma pessoa que tenha vivido uma experiência dessa ordem, geradora de tão intensa agitação espiritual, não tenha colocado suas próprias emoções na narrativa. Ao contrário, as narrativas canônicas, para qualquer pessoa acostumada com o processo de criação literária, aparecem como reportagens frias, do ponto de vista emocional, se assemelhando a excertos produzidos a partir de uma história contada e recontada, mas de forma nenhuma vivida pelo narrador. Na verdade, os evangelhos canônicos não registram uma história, e os evangelistas não são historiadores, mas sim propagandistas de uma doutrina.
É a mesma coisa com os evangelhos chamados apócrifos. São apócrifos porque ninguém sabe quem os escreveu verdadeiramente. Também ninguém sabe por que esses evangelhos são apócrifos ― não confiáveis― e os canônicos não. Afinal, quem pode garantir a autenticidade de Mateus, Marcos e João, como sendo originalmente escritos por esses mesmos personagens, e não por "ghost writers" que adotaram esses nomes para dar mais credibilidade aos seus escritos? Afinal, o único que confessou ter escrito a sua história a partir de relatos de segunda mão foi o Doutor Lucas, o único aliás, que a par da propaganda clara que faz da doutrina que ele aprendeu de Paulo, insere em sua narrativa alguns fatos históricos comprováveis, o que nos leva a ver nele o mais confiável dos evangelistas. Isso apesar da inserção notória de motivos mitológicos que faz, principalmente em relação à infância e concepção de Jesus.

O fato é que todo intelectual da época que se sentisse emocionado com a nova doutrina, logo se metia a escrever um evangelho. Cada um deles refletia a sua própria crença, da forma como ele o entendia, e não a mensagem original de Jesus. Assim, um recenseamento feito pelos bispos da Igreja no início do Século III levantou que havia 315 evangelhos em circulação. Por isso eles foram reduzidos a 4, por ocasião Concílio de Nicéia, realizado em 325. Qual o critério usado para escolher os que eram confiáveis e os que não eram ninguém sabe, mas houve quem dissesse que isso ocorreu de forma milagrosa, pois os quatro evangelhos que conhecemos simplesmente saíram voando sozinhos de uma  imensa pilha e se depositaram sobre a mesa onde os bispos estavam sentados.
Isso ocorreu em 325, ou seja quase três séculos depois da morte de Jesus. Como se estima que a maioria dos tais evangelhos ― inclusive os apócrifos ― tenha sido escrito entre o fim do primeiro século e o início do segundo, é possível imaginar o quanto já deviam estar alteradas as cópias escolhidas pelos bispos, pois naquela época os documentos eram copiados á mão, e cada copista, sem dúvida, acres-centava algo de seu no documento, ou eliminava o que não entendia ou não gostava.
Foi exatamente isso que os bispos, reunidos em Nicéia naquele fatídico ano de 325, quando a liberdade religiosa foi banida do Ocidente, também fizeram. Agindo como modernos censores de um estado totalitário ―e nós, brasileiros que nascemos antes de 1964,   sabemos bem como é isso - , eles simplesmente escolheram o que era verdade―segundo a cabeça deles― e o que não era. Assim, os quatro evangelhos, Mateus, Marcos, Lucas e João continham a verdadeira doutrina cristã; os demais eram meras imaginações urdidas pelos inimigos da verdadeira fé. E nesse verdadeiro auto de fé que foi o Concílio de Nicéia, queimaram os que  tinham à mão e mandaram destruir todos os demais onde quer que fossem encontrados. Sorte, para a História, e para a liberdade de pensamento, que eles não eram onipotentes e não conseguiram fazer desaparecer todos os condenados, pois estes foram salvaguardados em lugares distantes da autoridade do Vaticano. Demoraram, mas um dia foram redescobertos. E através deles, juntamente com os canônicos, se pode hoje ter uma ideia mais próxima de quem foi o Jesus histórico e qual a verdadeira mensagem que ele divulgou.

A mensagem de Jesus é aquela contida no mais belo sermão que alguém jamais fez. É o Sermão da Montanha. Uma boa quantidade de historiadores sérios ―quando digo sérios, quero dizer não comprometidos com uma determinada tendência religiosa― acreditam que o Sermão da Montanha constitui um conjunto de ensinamentos ministrados por Jesus aos seus ouvintes, que foi recolhido e registrado por escrito por algum, ou alguns dos seus discípulos, ou ouvinte. Isso também aconteceu com Maomé, e por causa disso os seus ensinamentos se salvaram. Só que os escribas do Islã foram mais honestos que os seus congêneres cristãos e confessaram isso, evitando que Maomé se transformasse em um deus, transcendendo a categoria de profeta.
O Sermão da Montanha é um conjunto de perícopes, ou seja, um texto composto com frases de efeito, ou silogismos, escritos em forma de versos soltos, que expressam um pensamento completo. Esse texto, chamado pelos estudiosos de Evangelho K, teria sido a fonte de todos os outros evangelhos, inclusive os canônicos.
O evangelho que mais se aproxima desse suposto Evangelho K é o apócrifo de Tomé. Os estudiosos chegam a essa conclusão pela forma pericopal em que ele é redigido. Não se trata de uma narrativa, nem segue uma estrutura de composição, como os demais evangelhos, especialmente os canônicos. É um conjunto de perícopes, frases soltas, que parecem ter sido recolhidas a esmo por um ouvinte numa palestra.
É evidente que tanto o Evangelho de Tomé, como os demais apócrifos foram escritos por cristãos gnósticos, ou seja, intelectuais que se converteram ao cristianismo, mas que tinham tendências místicas, e viam em Jesus, não uma pessoa real, histórica, que viveu e morreu como um criatura de carne e osso, mas sim, como um ser espiritual que encarnou para cumprir uma missão, e após tê-la cumprido, simplesmente voltou à sua natureza etérea, deixando na sua mensagem a chave para que todos aqueles que nele cressem pudessem imitá-lo e se transformar também em espíritos luminosos, escapando assim, do processo doloroso da eterna reencarnação e morte.
Essa era uma crença comum na época, como é ainda hoje. O próprio catecismo católico a adotou, como se fosse o próprio Jesus que a tivesse ensinado. No entanto, essa crença é originalmente gnóstica e foi adotada a partir, não de elementos judaicos cristãos, mas sim de tradições oriundas de religiões orientais, particularmente o Mitraísmo, que na altura em que o cristianismo se tornava uma doutrina importante, era a principal religião do império romano.

Foi no ano 327 que o Imperador Constantino, depois das decisões do Concílio de Nicéia, mandou compilar as principais tendências religiosas existente no Império Romano e delas fazer um excerto, integrando-as num todo lógico, acessivel às consciências que buscavam uma  fórmula comum para a parafernália religiosa em que havia se tranformado o Imperio Romano. Seus estudiosos verificaram que havia estreitos paralelos entre elas, já que todas se fundamentavam em mitos bem semelhantes. O Cristianismo era uma religião em ascensão, razão pela qual ele a escolheu como base do novo credo que estava procurando para unificar o império, perigosamente dividido por muitas crenças diferentes.
Foi uma decisão inteligente a tomada por Constantino. Obedeceu mais à necessidade política do que ao fervor religioso, que diga-se de passagem, ele nunca teve. Compilando as principais crenças religiosas professadas no império e unificando-as por certos princípios dogmáticos, ele buscava unificar o império romano pelo espirito, coisa que, no seu entender, seria bem mais eficiente do que se empregasse força política ou militar. Ele não se enganou, pois com sua decisão, conseguiu adiar em pelo menos em um século o desmoronamento do império.
Assim, do Mitraísmo foi tirada o dogma da morte em sacrifício e da ressurreição ao terceiro dia do Deus cristão, tal como os seguidores de Mitra acreditavam ter ocorrido com o fundador da sua religião. Da religião solar dos egípcios, que venerava a deusa Isis como mãe da humanidade, foi tirada a ideia da Virgem Maria e a idealização da família sagrada (José, Maria e Jesus, inspirada na sagrada família egípcia Osíris, Ísis e Hórus). De antigas tradições persas e mesopotâmeas também foram tiradas a tradição de “comer a carne e beber o sangue do deus”, para entrar em comunhão com ele, tal qual Jesus teria expressado em seu ritual pascoalino.

O EVANGELHO DE JUDAS

Foi no ano de 2006 que a emissora de televisão a cabo “National Geographic”, exibiu pela primeira vez um documentário falando do evangelho segundo Judas. Esse filme foi composto a partir de um pergaminho recentemente encontrado em uma antiga abadia no alto Egito. Trata-se de mais um evangelho apócrifo, um daqueles banidos pelo Concílio de Nicéia, que escapou da censura da Igreja e que reaparece após ter ficado escondido por cerca de 1700 anos. Os antigos cristãos já sabiam da sua existência, pois o bispo Irineu, de Lyon, um dos mais famosos historiadores da Igreja, havia denunciado a sua existência já na metade do século II, quando julgou o seu conteúdo herético e pernicioso para a verdadeira fé.
A cópia encontrada é um pergaminho de 26 páginas escritas em papiro. Acredita-se que se trata de uma cópia transcrita de um texto ainda mais antigo, feita por volta de 300 a D. já que o texto original deve ter sido escrito em fins do primeiro século, sendo contemporâneo dos evangelhos canônicos, já que o mesmo é citado por autores antigos, como o acima citado bispo Irineu.
Tendo passado pelas mãos de diversas pessoas, como é praxe ocorrer com documentos antigos, ele ficou depositado no cofre de um banco americano por cerca de 16 anos, o que provocou a sua deterioração, evitando que ele pudesse ser recomposto em sua totalidade.

O Evangelho de Judas contesta a versão apresentada nos quatro Evangelhos canônicos a respeito do papel de Judas Iscariotes no drama da Paixão e morte de Jesus. Mostra que efetivamente Judas não traiu Jesus, mas sim, cumpriu uma missão que lhe foi delegada pelo próprio. A ação de Judas foi uma estratégia previamente combinada, que tinha como objetivo libertar o espírito de Jesus da sua vestimenta carnal, como ensinava a crença gnóstica. Por isso lemos nesse documento frases como as que que seguem:

Você superará todos eles”, diz Jesus para Judas. “Você sacrificará o homem que me cobriu.”
Mestre, onde você foi e o que fez quando nos deixou?”, pergunta Judas.
Eu fui para outra grande e santa geração”, responde Jesus.
Na visão, eu vi como os doze discípulos estavam me apedrejando e perseguindo severamente (...) também fui para um lugar (...) vi uma casa (...) meus olhos não puderam compreender o seu tamanho..,” diz Judas, contando para Jesus uma visão que teve.
Nenhuma pessoa de nascimento mortal é merecedora de entrar na casa que você viu. Aquele lugar é reservado para os santos (...) Você superará todos eles {os discípulos} Você sacrificará o homem que me cobriu (...) Erga para cima seus olhos, veja a nuvem e a luz dentro dela e as estrelas que a cercam. A estrela que conduz é a sua estrela. Judas ergueu para cima os olhos e viu a nuvem luminosa (...) e ouviu uma voz vinda da nuvem...”,

Os textos do Evangelho de Judas mostram um Jesus esotérico, muito a gosto dos gnósticos. É um Jesus que domina os ensinamentos da Cabala e da Gnose com a sabedoria de um grande mestre nessas estranhas disciplinas. Mas ensina mais que os evangelhos oficiais a respeito do ambiente vivido na época e das intrigas políticas e crenças religiosas que as pessoas professavam naqueles antigos dias. Particularmente eu sempre desconfiei das motivações que levaram Judas a entregar Jesus, Elas não aparecem de forma clara em nenhum dos evangelhos oficiais. Todos dizem que ele era ladrão e mau caráter; que guardava para si as contribuições que os crentes davam para o grupo. Se assim era porque o elegeram para tesoureiro do grupo? E se Jesus tinha os poderes que tinha como não sabia dessas coisas?
Evidentemente que sabia e tudo fazia parte de um plano pré-concebido. Não por Deus, como quiseram fazer crer os exegetas da Igreja, mas pelo próprio Jesus. Para cumprir um propósito político, ou religioso, Jesus planejou ser sacrificado. E tramou sua própria morte e ressurreição (verdadeira ou não). Isso parece estar patente até nos próprios evangelhos canônicos, pois todos, de alguma forma sustentam que Jesus sabia que Judas ia entregá-lo, tanto que disse a Judas: “ O que tendes a fazer, faze-o depressa”.
Se os demais apóstolos sabiam desse arranjo entre Judas e Jesus é difícil dizer, mas com o que se sabe hoje, depois da descoberta dos apócrifos, são poucas as dúvidas que a história de Jesus é um pergaminho ao qual muitos pontos em branco ainda falta preencher.
Voltaremos a esse assunto.
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O EVANGELHO DE JUDAS FOI PUBLICADO EM PORTUGU~ES PELA EDITORA MERCÚRYO EM 2008. A RESENHA ACIMA PUBLICADA SE BASEIA NO DOCUMENTÁRIO APRESENTADO PELO DISCOVERY CHANNEL.

João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 05/09/2010
Reeditado em 05/09/2010
Código do texto: T2479791
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