Adroaldo Bauer e o novelismo investigativo
Resenha de José Antonio do Espírito anto publicada no blog desse artista brasileiro.
A prosa é densa como chimarrão na cuia. A história contada é pantanosa e movediça, preso por um pé, logo a trama te prende o outro e o mergulho faz de você cúmplice culposo de tudo que te será narrado. Sem perdão, sem absolvição.
Os meandros das almas das personagens vão aparecendo aqui e ali, emergindo dos fatos da trama em que estão enredadas, irremediavelmente engolfadas até o fim do fio da novela que se desenrola inexorável. Elas, as personagens, falam alguma língua sulista, cheia de neologismos, aos olhos de nós os mais ao norte, palmilhada de subterfúgios, travestidos de mesuras e pretéritos, dizeres e desdizeres, as vezes finos como facas.
Algumas destas personagens chegam mesmo a falar pelos cotovelos, quase a querer contar mais que o próprio narrador-contador da história, o novelista também sulista na alma e na fala (embora seja do Piauí) Adroaldo Bauer.
O bom e melhor ainda é que a estrutura da história entrega a sua estética calcada até os ossos na melhor reportagem dos aureos tempos de nosso jornalismo investigativo, deliciosamente influenciado pelo barroco jargão burocratico dos termos dos autos e dos processos criminais mais rumorosos. Repórter-novelista é o que o Adroaldo Bauer é, portanto, nesta sua segunda e bem sucedida investida pela praia da literatura, com a empolgante novela ‘Império Bandido’.
É providencial nestes tempos de literatura ligeira e evasiva em que vivemos o surgimento de livros assim como o de Bauer. A prosa brasileira andava patinando na entresafra de uma pasmaceira sem fim, agravada pela enorme profusão de títulos banais despejados por aí pelas janelas escancaradas da internet, no que talvez sejam os estertores do livro de papel (embora, como bem sabemos, o papel da literatura seja imperecível).
Na trama de ‘Império Bandido‘, os detalhes mais íntimos e comezinhos de vidas atropeladas pela Operação Condor, os sequestros de filhos de militantes de esquerda nos anos de chumbo, aparece humanizando a raiz do mal brasileiro de negligenciar a liberdade das pessoas, o direito delas à vida e a informação. Ali o mesmo germe que tentou matar de morte o exercício de um jornalismo responsável é chaga, cujas mazelas de ferida aberta, contaminou-nos individualmente, expondo-nos todos a outras tantas iniquidades, violencias e ilicitudes.
Como insinua a moral da novela, pode ter sido assim que nós, leitores-personagens de Bauer nos transformamos – não todos mas muto mais do que devíamos – em povo acanalhado, traficante- drogado, acumpliciado pelo voto (e pelas opções oportunistas) com os donos do país, com os espertos barões de tudo, das finanças, das consciencias e das drogas, que entre nós hoje em dia, quase sinonimizam a chamada ‘coisa pública’, tão imiscuída que está em nossa sociedade enferma.
É pois no meio destes tristes capítulos de nossa novela brasileira que os personagens de Bauer trafegam, insones, vigilantes, na lama e no esgoto. Cheguêva, Valafora, Carlota, Alzira, Nisso, e os outros, todos de algum modo heróis bandidos, vilões e vítimas, indiciados e com prisão preventiva eternamente decretada, detidos que estão numa trama cujo fim será, quase sempre, provisório.
Adroaldo Bauer investiga e noveliza o crime e o castigo, escrevendo assim a cronica de uma boa literatura anunciada.
Spírito Santo
Agosto 2010