A Garota das Laranjas (Appelsinpiken)

Cada foto é uma imagem da morte.

Roland Barthes

O livro A Garota das Laranjas, escrito por Jostein Gaarder, o mesmo autor de O Mundo de Sofia, conta a história de um garoto de 15 anos, chamado Georg RØed, cujo pai morreu há onze anos, e que, após todos esses anos, se depara com uma carta, escrita pelo pai especialmente para ele.

A história é narrada em primeira pessoa e apresenta dois narradores: o próprio Georg, que se propõe a escrever o livro, e seu pai, Jan Olav, que, através da carta, participa ativamente da narrativa e dialoga constantemente com o filho. Na edição em análise, a escrita em itálico é utilizada para diferenciar a narração de Georg em relação à de Jan Olav. Na carta, enquanto conta a história da garota das laranjas, o pai vai fazendo questionamentos ao filho que, de uma forma ou de outra, ajudam-no a construir sua identidade, sua narrativa pessoal e, ao mesmo tempo, faz com que se aproxime do pai, criando laços de amizade até então inimagináveis.

Logo nos primeiros parágrafos, podemos inferir a intenção do autor que, ao utilizar verbos no pretérito perfeito (morreu, foi, aconteceu), no pretérito imperfeito (havia, esperava, estávamos) e também no presente (estamos, são, vai, sei, lembro) e no gerúndio (escrevendo, contemplando), procura a aproximação, o encontro, do passado com o presente, de forma real e contínua. Afinal, o que somos hoje é fruto do nosso passado. Para que outras pessoas nos conheçam, é necessário contar nossa história, ou seja, olhar para o passado e mostrar como fomos construindo e aprendendo com as experiências e, dessa forma, atingir a maturidade, que somente com o tempo é possível alcançar.

Além disso, através desses recursos lexicais e outros dos quais falarei adiante, o autor também nos faz refletir sobre algo que permeia a vida de todos e que está intrinsecamente ligado à experiência humana: a morte. A morte é uma das poucas certezas, senão a única, da nossa trajetória no mundo. Estamos constantemente diante desta inexorável certeza. Todavia, o autor não quer com isso nos causar tristeza ou melancolia; pelo contrário, pois, ao pensar na morte e lembrar dos que se foram, eles vivem em nós. A brevidade da vida nos faz valorizá-la, de modo a buscar, incessantemente, um sentido, um objetivo para direcionar nossas ações e, quem sabe, sermos lembrados quando nos formos e, assim, vivermos para sempre.

O flerte com a morte, que inicialmente sempre nos causa tristeza e estranhamento, muitas vezes, ocorre pelo contato com fotografias e/ou vídeos que retratam nossos finados queridos. Gaarder utiliza-se deste recurso quando Georg, ao ver as fotografias e vídeos do pai, acha esquisito e sinistro guardar tantos retratos de uma pessoa que já deixou de viver, e pensa que deviam proibir os vídeos de gente que não existe mais, não achando certo ficar espreitando os mortos. No entanto, mais adiante, ao tentar lembrar do pai, Georg escreve que todas as suas recordações pareciam provir dos vídeos e do álbum de retratos.

Também é muito interessante quando Gaarder introduz a história do telescópio Hubble. Georg acabara de fazer um trabalho extenso sobre o telescópio e ficou surpreso quando, na carta, seu pai lhe questiona sobre o Hubble. Sem dúvida, o interesse do garoto pelo telescópio e pela astronomia nasceu naqueles momentos em que o pai o levara para contemplar as estrelas. Destarte, o interesse pelo telescópio Hubble pode ser interpretado como um dos grandes vínculos entre Georg e o pai. De fato, o telescópio tirou milhares de fotografias do passado do universo, revelando estrelas e galáxias que estão a milhões de anos-luz de distância da Terra. Estrelas e galáxias que podem nem existir mais, ou seja, imagens da morte do universo. Olhar para o universo é a mesma coisa que retroceder no tempo.

Assim, o telescópio, as fotografias e os vídeos parecem ser os instrumentos de ligação entre Georg e seu pai, entre o passado e o presente, entre a vida e a morte. Claro que, não podemos deixar de falar no instrumento mais importante desta aproximação: a carta. A escrita fixa as palavras e, consequentemente, as ideias para muito além de quem as proferiu. Quando escrevemos, eternizamos a palavra e possibilitamos às gerações futuras a reflexão sobre o pensamento e sobre sua própria história.

Jan Olav, através dos questionamentos feitos a Georg, faz com este reflita sobre sua vida, sua identidade, e construa uma intimidade, antes impensável, com o pai. Ao contar a história da garota das laranjas, o pai consegue dialogar com o filho, mostrando-lhe como é comum e natural a timidez e o estranhamento no encontro entre homens e mulheres. A angústia da paixão, o desejo incontrolável de se rever e estar junto o tempo todo. A descoberta do amor e todas as peripécias para conquistá-lo. Saber como a garota das laranjas despertou tanto interesse em seu pai, e depois descobrir que já havia uma ligação entre os dois no passado. Mais uma vez aqui o passado direcionando, de alguma maneira, as ações e os pensamentos do presente.

Bem, acredito que o ponto alto ou o clímax da história ocorre quando Georg descobre que a garota das laranjas é sua mãe Veronika. Deve ser surpreendente saber como nossos pais se conheceram, em que circunstâncias se encontraram, e o que enfrentaram para ficarem juntos. A história sobre a garota das laranjas parece ter tornado mais sólida a vivência entre Georg e o pai, apesar do pouco tempo que conviveram, e de sua tenra idade; reforçou a intimidade com a mãe e também com o padrasto JØrgen, ao mostrar que ambos já se conheciam no passado; e encorajou Georg a falar com a garota do violino.

Enfim, além dos aspectos já elencados neste trabalho, o livro A Garota das Laranjas, é de agradável leitura, possui vocabulário coloquial e uma narrativa coerente e instigante. Eu, mesmo sendo avesso a certas categorizações, creio que o livro está apropriadamente catalogado como literatura infanto-juvenil, pois, através de um garoto de 15 anos, propõe um diálogo com os jovens e oferece muito material para uma profunda reflexão sobre a vida e a morte, o grande conflito com o qual nos deparamos em algum momento de nossas vidas.

Lembrei que Veronika carregava as laranjas para pintá-las e, deste modo, eternizá-las também.

Samoth Ahcor
Enviado por Samoth Ahcor em 20/07/2010
Código do texto: T2388306
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