“O cachorro amarelo” (de Maria Olímpia Alves de Mello)
“O cachorro amarelo” (de Maria Olímpia Alves de Mello)
Findo o livro, pensei que não havia surpresa nenhuma com relação a identidade da autora. Conheço sua escrita fina e precisa há exatos dois anos e meio. Findo o livro, já não haviam mais surpresas, pois a cada capítulo um mundo novo emergia, como bolhas de água numa lagoa, a lagoa minha consciência, as bolhas todas delicadas, traduzindo mundos e mundos oriundos da imaginação da autora.
Maria Olímpia Alves de Mello fez a revisão final de sua obra em outubro de 2001. Trinta e três capítulos. Dá pra dizer também trinta e três esquemas de enriquecer a vida de um leitor. Fácil de ler e compreender, tanto para os que julgam que a vida é em preto e branco quanto para os que pensam ser a vida preto no branco. Com pouco menos de um quarto da obra vencida, a única coisa que fica sem cor é o cachorro amarelo, inserido numa vastidão de tons que obrigam a releitura e a contemplação entre os parágrafos. Os que ainda não se renderam a realidade de que a vida é tudo menos preto no branco, se verão presos na melhor das armadilhas: fértil, e com todas as suas cores, eis o mundo que não enxergamos, e doravante impossível parar de lê-lo.
Os títulos dos capítulos revelam a diversidade do caminho e a odisséia da heroína: O Correio, A Moça (Nua) que Caiu do Céu, Perséfone, O Trem...
Melina Mafuz, personagem central, a princípio pode ser considerada como a mulher do Abud. Ela mesma assim se descreve. Mas só a princípio. Melina viaja nas minúcias da vida, trata o passado, presente e futuro como um triângulo, cada toque que ela dá num dos lados do triângulo reverbera o toque de sua criadora, vivificando o tempo atemporal da imaginação.
Melina tem sonos de 7 dias ininterruptos, tem pudores, tem a sagacidade de uma criança, a audácia dos que provocam a vida para crescer junto a cautela dos que precisam fazer o caminho do meio para continuar crescendo.
A ação se passa nas Minas de Olímpia, particular como todas as visões e por isso mesmo detentora da força que espalha mil vórtices em mil direções, mas, não se iludam, Melina é o centro de tudo e sua observação o principio que gera.
“A cozinha é a parte mais quente do coração de uma mulher. Quente e íntima. Nunca deixei ninguém mexer em minhas panelas. Empregadas, só para lavar/passar/limpar. Depois que cresci o suficiente para alcançar as bocas do fogão, jamais aceitei ninguém cozinhando para mim. Decidi que não deixaria mais minha cozinha à mercê de nenhuma mulher. Porque só podia ser uma daquelas mulheres que estavam em meu quarto, doidas para que eu dormisse o sono eterno, para se apossarem do meu reino. Eu lhes daria de bom grado o meu rei, mas não a minha cozinha”.
O leitor recantista de segunda viagem já conhece o talento da autora. A inclusão do parágrafo acima em hipótese alguma pretende definir a personagem.
Melina fala com a mesma riqueza sobre os escaninhos do correio, sobre a infância e a paisagem, sobre a nota tensa que vem através do correio, na forma de um pacote, seja lá o que for, já que as personagens, como todos sabem, são marionetes dos que empunham a pena. Todavia, o parágrafo acima mostra como gira o parafuso na mente da personagem. Esse giro estará presente narrando sua postura face aos vórtices do cotidiano, um cotidiano que se embrenha nos degraus que buscam os cimos dentro do ser.
Através da sua escrita, Maria Olímpia tem o dom de colocar na obra a leitura de um fôlego só e a necessidade da pausa, talvez para o leitor degustar como as costuras, entre os trinta três capítulos, funcionam tão bem.
Findo o livro, a maior das surpresas. Uma coisa consiste em conhecer a caligrafia da autora através de inúmeras peças em separado: crônicas, artigos, resenhas, poesias, prosa poética. Outra está em deparar-se com um arranjo de rara envergadura, que nos leva a pensar no tempo despendido em escrever uma obra. Com isso, esmaece o conceito de número de horas junto ao teclado e chega-se a conclusão de que livros como esse começam a ser escritos na mente, muito antes do teclado, muito antes da aterrizagem das letras no papel.
“O cachorro amarelo” é mais uma prova viva (não existe nada mais vivo do que um romance), de que uma alma contemplativa sempre levará outros a um dos mais proveitosos estados da nossa jornada: o reflexivo.