A TENTAÇÃO DE JESUS
Ao lado de Judas Galileu, o filho de Maria dorme e sonha. O lugar onde agora está é o Monte Nebo, e ali eis que ele começa a vagar. Durante o dia caminha por entre os desérticos rochedos e à noite procura uma concavidade entre eles, para que, protegido dos lobos e dos chacais, ao abrigo do vento e do frio que enregela os ossos, possa descansar um pouco.
Ao cabo de três dias, sem comer nem beber, a sede e a fome lhe vêm cobrar do organismo exaurido o preço da forçada abstenção de alimentos. Então ele começa a delirar.
O ambiente que o cerca, no sonho, é propício para essa atividade da mente: uma solidão lunar, feita de areia e pedra, onde um calor sufocante durante o dia e um frio glacial à noite exigem do organismo as mais terríveis provas de resistência. Visões que parecem ser, ora sentinelas de pedra a observar seus movimentos, ora animais monstruosos prontos para devorá-lo, se levantam perante seus olhos,
Sua mente oscila entre a razão e o desvario. Nos momentos de lucidez sente medo. Como um iniciando numa Câmara de Reflexões, pronto para receber os Divinos Mistérios, pensa em quão longe aquele sentimento de missão a cumprir o tinha levado. Tem medo, como um neófito diante do momento crucial em que lhe será exigido o terrível juramento.
O que ele está fazendo ali? No que consiste, efetivamente, a sua missão? Ele ainda não sabe, mas tem que ser digno dela, por isso precisa suportar a fome, a sede e a tentação, para provar a si mesmo que o espírito não precisa de pão, nem de água, mas sim de uma razão que justifique a vida. E quando se tem essa razão, tudo o mais é dado por acréscimo.
E no quarto dia daquela aventura – porque o tempo do sonho não se mede pelo mesmo calendário do estado de vigília – a fome o aperta. Ele olha para as pedras no chão e cuida que sejam pães. E as pega e morde; e vendo que são pedras suplica a Jeová que as transforme em pães. E uma Voz – que ele não sabe se vem do vento ou de dentro da sua própria cabeça –, lhe diz que não só de pão vive o homem, mas que a palavra de Deus tem mais sustância do que qualquer alimento. E ela lhe recorda o motivo de ele estar ali, sofrendo fome e privação.
“ Como anunciarás ao mundo a boa nova da Providência, a negação da ambição desmedida e a confiança na justiça divina, se os cuidados com o alimento, os vestidos e as facilidades da vida o distraem? “ Como provarás a supremacia do espírito sobre a carne, se tu mesmo fores incapaz de suportar a privação? “ Se és tão fraco quanto os outros, como poderás reivindicar o direito de ser o Filho do Homem que Eu preciso para anunciar-lhes a boa nova? “ diz a Voz.
“ Sim, Eu posso transformar essas pedras em pães “, continua a Vóz “, e tu poderás saciar-se com eles. “ Mas não é essa mesma saciedade e esse mesmo anseio pelo atendimento das necessidades da carne que te atormenta e não foi para combatê-las que viestes a este deserto? Sê firme, portanto, e resisti ainda um pouco a esse apelo das tuas entranhas, pois já quase nada falta para venceres a tua provação. “
O filho de Maria levanta-se e mira a solidão à sua frente.
“ Sim, não só de pão vive o homem “, diz para si mesmo“, “e se a Boca de Deus me dá o alimento que vivifica o espírito, eu viverei desse alimento e nenhuma tentação me afastará desta esperança.”
Então ele recomeça a andar, e caminha e caminha, até que do alto do monte surgem os vales que se descortinam montanha abaixo; e a longa mancha verde que se estende para o norte, acompanhando o curso do Jordão é uma visão que ao mesmo tempo o consola e aterroriza. Ali, nas margens daquele rio, ele vê uma semente sendo posta na terra; ela se transforma em uma grande árvore e multidões começam a buscar a sua sombra. De repente, ela é abatida a poderosos golpes de machado. Mas do seu tronco esfacelado explodem centenas, milhares, incontáveis brotos que se transformam em galhos, cujos ramos se espalham até os limites do céu. Depois, num relance, vê as cidades e aldeias esparramadas pelas margens do Jordão e todas as povoações da sua amada Galiléia. Gente subindo e descendo pelas ruas apinhadas, comerciantes gritando seus pregões, os pescadores puxando suas redes, com milhares de peixes pulando dentro delas; vê os carregadores seminus nos portos, os camponeses em seus hortos, vinhas e searas, os artesãos em suas oficinas e lembra-se de sua própria habilidade de carpinteiro, que seu pai lhe ensinara. Sente orgulho das obras que fabricara e da sua profissão de carpinteiro. E pensa que o Reino de Deus, pelo qual os filhos de Israel tanto anseiam, talvez não seja mesmo uma nação governada por um rei em um palácio, com um grande exército para defendê-lo e um séqüito de serviçais para administrá-lo, mas sim uma imensa oficina, onde cada um faz trabalho útil e necessário e por ele recebe a paga justa pelas obras que executa e fica feliz e vive em paz. E essa oficina é o mundo todo e não um povo ou um país em particular.
Nesse momento, sua vista se turba e ele cai no chão. Um minúsculo sol parece explodir em sua mente e sua luz se espalha em todas as direções. Dentro dela, numa velocidade vertiginosa, mas ainda assim perfeitamente percebido por seu espírito em toda sua completude, o universo desfila perante seus olhos em espirais concêntricas que parecem serpentes luminosas perseguindo a si mesmas. E dentro delas ele vê todas as cidades da Galiléia e o lago em toda sua extensão, com tudo o que nele existe; cardumes de peixes, plânctons, os juncos nas margens, as areias grossas das praias e os pescadores consertando suas redes; os portos com sua azáfama de carregadores, e mercadorias sendo levadas e tiradas das barcaças; os mercados e os vendedores gritando os preços e a excelência de suas mercadorias; vê palácios e fortalezas e nelas pessoas vestidas com sedas e brocados, devorando aves macias, nacos imensos de carne gorda e sangrenta e emborcando enormes taças de rubro vinho; vê músicos tocando seus instrumentos, cantores cantando suas canções e dançarinas seminuas contorcendo-se freneticamente ao som de timbales, flautas e tambores; vê uma cidade, (que deve ser Tiberíades), onde um rei, gordo e faustoso, sentado sobre um trono dourado, cravejado de brilhantes, realiza uma audiência, e homens que parecem ser sacerdotes, vestidos com túnicas de uma alvura imaculada, gritam e gesticulam, exaltados; vê também outra cidade, (Roma, talvez), onde um homem de cabelos brancos e olhos muito frios, sentado sobre um enorme trono, encimado por duas majestosas águias, com um cetro na mão, é ovacionado por uma multidão inumerável: vê palácios enormes, com colunas imensas, de vinte côvados e mais, ornadas com magníficos capitéis, e dentro desses palácios, que também são templos e edifícios públicos, homens vestidos com togas de magistrados e túnicas de sacerdotes; e eles pronunciam julgamentos e recitam salmos; lá também estão muitos escribas com estiletes e tabuinhas de cera nas mãos, anotando cifras e registrando eventos e nomes, onde entre tantos, ele também lê o dele; e vê papiros e rolos, incontáveis rolos de escritas, que se derramam como enxurradas pelos pórticos dos edifícios e inundam as ruas.E quem os lê não os entende e quem os entende guarda para si o entendimento e apregoa coisa diferente do que realmente eles querem dizer. E ele lê todos esses livros e os compreende e sua voz quer dizer o que significam; mas ninguém o escuta porque o mundo é um imenso teatro sem acústica, onde as pessoas discursam sem falar, escutam sem ouvir, cantam sem melodia nem tom. E ele vê depois, centenas, milhares de homens marchando, com suas armaduras de guerra e gládios pendurados na cintura. A multidão de lanças, escudos e penachos emplumados, balançando ao vento, formam uma visão ao mesmo tempo fascinante e assustadora; num relance, vê todos os reinos do mundo e os reis que os dominam, e eles estão em assembléia e clamam e erguem espadas em grande alarido; vê a sua pequena oficina de carpinteiro, solitária, escura e abandonada em Nazaré e sua mãe a derramar farinha sobre uma pedra e amassar com as mãos a massa densa do pão; e lá está também seu falecido pai, José, com a plaina a alisar uma tábua, passando nela a mão para sentir-lhe a textura, e a Voz, mais uma vez, lhe diz:
“ Este mundo é Meu e o darei a ti, se fizeres o que Vou te pedir.”
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DO LIVRO "O FILHO DO HOMEM", ED. CORTECCI, SÃO PAULO, 2010.
Ao lado de Judas Galileu, o filho de Maria dorme e sonha. O lugar onde agora está é o Monte Nebo, e ali eis que ele começa a vagar. Durante o dia caminha por entre os desérticos rochedos e à noite procura uma concavidade entre eles, para que, protegido dos lobos e dos chacais, ao abrigo do vento e do frio que enregela os ossos, possa descansar um pouco.
Ao cabo de três dias, sem comer nem beber, a sede e a fome lhe vêm cobrar do organismo exaurido o preço da forçada abstenção de alimentos. Então ele começa a delirar.
O ambiente que o cerca, no sonho, é propício para essa atividade da mente: uma solidão lunar, feita de areia e pedra, onde um calor sufocante durante o dia e um frio glacial à noite exigem do organismo as mais terríveis provas de resistência. Visões que parecem ser, ora sentinelas de pedra a observar seus movimentos, ora animais monstruosos prontos para devorá-lo, se levantam perante seus olhos,
Sua mente oscila entre a razão e o desvario. Nos momentos de lucidez sente medo. Como um iniciando numa Câmara de Reflexões, pronto para receber os Divinos Mistérios, pensa em quão longe aquele sentimento de missão a cumprir o tinha levado. Tem medo, como um neófito diante do momento crucial em que lhe será exigido o terrível juramento.
O que ele está fazendo ali? No que consiste, efetivamente, a sua missão? Ele ainda não sabe, mas tem que ser digno dela, por isso precisa suportar a fome, a sede e a tentação, para provar a si mesmo que o espírito não precisa de pão, nem de água, mas sim de uma razão que justifique a vida. E quando se tem essa razão, tudo o mais é dado por acréscimo.
E no quarto dia daquela aventura – porque o tempo do sonho não se mede pelo mesmo calendário do estado de vigília – a fome o aperta. Ele olha para as pedras no chão e cuida que sejam pães. E as pega e morde; e vendo que são pedras suplica a Jeová que as transforme em pães. E uma Voz – que ele não sabe se vem do vento ou de dentro da sua própria cabeça –, lhe diz que não só de pão vive o homem, mas que a palavra de Deus tem mais sustância do que qualquer alimento. E ela lhe recorda o motivo de ele estar ali, sofrendo fome e privação.
“ Como anunciarás ao mundo a boa nova da Providência, a negação da ambição desmedida e a confiança na justiça divina, se os cuidados com o alimento, os vestidos e as facilidades da vida o distraem? “ Como provarás a supremacia do espírito sobre a carne, se tu mesmo fores incapaz de suportar a privação? “ Se és tão fraco quanto os outros, como poderás reivindicar o direito de ser o Filho do Homem que Eu preciso para anunciar-lhes a boa nova? “ diz a Voz.
“ Sim, Eu posso transformar essas pedras em pães “, continua a Vóz “, e tu poderás saciar-se com eles. “ Mas não é essa mesma saciedade e esse mesmo anseio pelo atendimento das necessidades da carne que te atormenta e não foi para combatê-las que viestes a este deserto? Sê firme, portanto, e resisti ainda um pouco a esse apelo das tuas entranhas, pois já quase nada falta para venceres a tua provação. “
O filho de Maria levanta-se e mira a solidão à sua frente.
“ Sim, não só de pão vive o homem “, diz para si mesmo“, “e se a Boca de Deus me dá o alimento que vivifica o espírito, eu viverei desse alimento e nenhuma tentação me afastará desta esperança.”
Então ele recomeça a andar, e caminha e caminha, até que do alto do monte surgem os vales que se descortinam montanha abaixo; e a longa mancha verde que se estende para o norte, acompanhando o curso do Jordão é uma visão que ao mesmo tempo o consola e aterroriza. Ali, nas margens daquele rio, ele vê uma semente sendo posta na terra; ela se transforma em uma grande árvore e multidões começam a buscar a sua sombra. De repente, ela é abatida a poderosos golpes de machado. Mas do seu tronco esfacelado explodem centenas, milhares, incontáveis brotos que se transformam em galhos, cujos ramos se espalham até os limites do céu. Depois, num relance, vê as cidades e aldeias esparramadas pelas margens do Jordão e todas as povoações da sua amada Galiléia. Gente subindo e descendo pelas ruas apinhadas, comerciantes gritando seus pregões, os pescadores puxando suas redes, com milhares de peixes pulando dentro delas; vê os carregadores seminus nos portos, os camponeses em seus hortos, vinhas e searas, os artesãos em suas oficinas e lembra-se de sua própria habilidade de carpinteiro, que seu pai lhe ensinara. Sente orgulho das obras que fabricara e da sua profissão de carpinteiro. E pensa que o Reino de Deus, pelo qual os filhos de Israel tanto anseiam, talvez não seja mesmo uma nação governada por um rei em um palácio, com um grande exército para defendê-lo e um séqüito de serviçais para administrá-lo, mas sim uma imensa oficina, onde cada um faz trabalho útil e necessário e por ele recebe a paga justa pelas obras que executa e fica feliz e vive em paz. E essa oficina é o mundo todo e não um povo ou um país em particular.
Nesse momento, sua vista se turba e ele cai no chão. Um minúsculo sol parece explodir em sua mente e sua luz se espalha em todas as direções. Dentro dela, numa velocidade vertiginosa, mas ainda assim perfeitamente percebido por seu espírito em toda sua completude, o universo desfila perante seus olhos em espirais concêntricas que parecem serpentes luminosas perseguindo a si mesmas. E dentro delas ele vê todas as cidades da Galiléia e o lago em toda sua extensão, com tudo o que nele existe; cardumes de peixes, plânctons, os juncos nas margens, as areias grossas das praias e os pescadores consertando suas redes; os portos com sua azáfama de carregadores, e mercadorias sendo levadas e tiradas das barcaças; os mercados e os vendedores gritando os preços e a excelência de suas mercadorias; vê palácios e fortalezas e nelas pessoas vestidas com sedas e brocados, devorando aves macias, nacos imensos de carne gorda e sangrenta e emborcando enormes taças de rubro vinho; vê músicos tocando seus instrumentos, cantores cantando suas canções e dançarinas seminuas contorcendo-se freneticamente ao som de timbales, flautas e tambores; vê uma cidade, (que deve ser Tiberíades), onde um rei, gordo e faustoso, sentado sobre um trono dourado, cravejado de brilhantes, realiza uma audiência, e homens que parecem ser sacerdotes, vestidos com túnicas de uma alvura imaculada, gritam e gesticulam, exaltados; vê também outra cidade, (Roma, talvez), onde um homem de cabelos brancos e olhos muito frios, sentado sobre um enorme trono, encimado por duas majestosas águias, com um cetro na mão, é ovacionado por uma multidão inumerável: vê palácios enormes, com colunas imensas, de vinte côvados e mais, ornadas com magníficos capitéis, e dentro desses palácios, que também são templos e edifícios públicos, homens vestidos com togas de magistrados e túnicas de sacerdotes; e eles pronunciam julgamentos e recitam salmos; lá também estão muitos escribas com estiletes e tabuinhas de cera nas mãos, anotando cifras e registrando eventos e nomes, onde entre tantos, ele também lê o dele; e vê papiros e rolos, incontáveis rolos de escritas, que se derramam como enxurradas pelos pórticos dos edifícios e inundam as ruas.E quem os lê não os entende e quem os entende guarda para si o entendimento e apregoa coisa diferente do que realmente eles querem dizer. E ele lê todos esses livros e os compreende e sua voz quer dizer o que significam; mas ninguém o escuta porque o mundo é um imenso teatro sem acústica, onde as pessoas discursam sem falar, escutam sem ouvir, cantam sem melodia nem tom. E ele vê depois, centenas, milhares de homens marchando, com suas armaduras de guerra e gládios pendurados na cintura. A multidão de lanças, escudos e penachos emplumados, balançando ao vento, formam uma visão ao mesmo tempo fascinante e assustadora; num relance, vê todos os reinos do mundo e os reis que os dominam, e eles estão em assembléia e clamam e erguem espadas em grande alarido; vê a sua pequena oficina de carpinteiro, solitária, escura e abandonada em Nazaré e sua mãe a derramar farinha sobre uma pedra e amassar com as mãos a massa densa do pão; e lá está também seu falecido pai, José, com a plaina a alisar uma tábua, passando nela a mão para sentir-lhe a textura, e a Voz, mais uma vez, lhe diz:
“ Este mundo é Meu e o darei a ti, se fizeres o que Vou te pedir.”
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DO LIVRO "O FILHO DO HOMEM", ED. CORTECCI, SÃO PAULO, 2010.