A teoria do QI hereditário
Texto: “A Teoria do QI Hereditário” do livro “A Falsa Medida do Homem” de Stephen Jay Gould. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
O texto fala das origens dos testes de QI que foram largamente difundidos e aplicados no início do séc. XX. Gould investiga em profundidade quatro psicólogos cujos trabalhos deram origem às teorias de medições da inteligência humana. O texto é rico em detalhes sobre as pesquisas e procedimentos dos mesmos, caracterizando com uma certa ironia os seus trabalhos através de recortes de algumas citações destes que retratam idéias hoje há muito consideradas inapropriadas.
Alfred Binet (1857-1911)
Influenciado pelo seu compatriota francês, Paul Broca, iniciou seus estudos sobre a medição da inteligência através da craniometria, teoria esta que afirmava que a inteligência humana poderia ser mensurada através de determinadas medidas cranianas. No entanto, Binet começou a alimentar dúvidas a respeito desta teoria refletindo sobre o poder de sugestão semiconsciente que os pesquisadores poderiam estar submetidos nas medições cranianas. Mais do que a elaboração de uma teoria através da observação, o que poderia estar acontecendo era a mera constatação de uma teoria previamente concebida. Binet então abandonou as técnicas de medições anatômicas e dedicou-se a estudar os métodos psicológicos.
Convocado pelo Ministério da Educação Pública para desenvolver uma técnica que permitisse a identificação de crianças que necessitassem de uma educação especial, Binet trabalhou no sentido de buscar soluções pragmáticas para o problema. “Ele esperava que a mescla de vários testes relativos a diferentes habilidades permitiria a abstração de um valor numérico capaz de expressar a potencialidade global de cada criança”. Apesar da atribuição de um valor, Binet foi enfático ao afirmar que a inteligência era por demais complexa para ser expressa por um único número. “A escala, rigorosamente falando, não permite medir a inteligência, porque as qualidades intelectuais não se podem sobrepor umas às outras, e, portanto, é impossível medi-las como se medem as superfícies lineares”. O objetivo de seu trabalho era apenas encontrar um artifício prático que ajudasse a identificar crianças que necessitassem de ajuda, ou seja, os fins eram exclusivamente pedagógicos. Entretanto, ele tinha medo que seu trabalho fosse manipulado e utilizado para criar rótulos indeléveis, e foi exatamente o que os hereditaristas posteriormente fizeram nos EUA.
Em resumo, Binet insistiu em três princípios primordiais para a utilização de seus testes: as marcas obtidas constituem um recurso prático, não definindo nada de inato ou permanente; a escala é um guia aproximativo e empírico e não um recurso para criar hierarquias entre as crianças; e a ênfase deve recair no aprimoramento das crianças com dificuldades através de uma educação especial.
H. H. Goddard
Goddard, assim como Terman e Yerkes, tinham concepções hereditárias e reificantes, ou seja, defendiam a idéia que as capacidades intelectuais eram atribuídas de maneira exclusivamente hereditária e que estas poderiam ser expressar através do QI, como se a inteligência fosse algo ou uma entidade independente passível de medições. Ele foi o responsável pela introdução da escala de Binet nos EUA.
“Seu objetivo era identificar indivíduos deficientes para impor-lhes limites, segregá-los e reduzir a sua procriação, evitando assim a posterior deterioração da estirpe americana, ameaçada externamente pela imigração e interiormente pela prolífica reprodução dos débeis mentais”. Goddard lutou pelo controle de entrada dos imigrantes nos EUA e pela criação de colônias onde pudesse manter os idiotas, imbecis e débeis mentais (termos utilizados por ele), afim de não permitir as suas procriações. Ele acreditava que uma vez que o intelecto controla as emoções, os deficientes não poderiam controlar seus impulsos sexuais e tampouco se comportar de modo apropriado em situações sociais. A estes caberia o fardo dos trabalhos repetitivos e manuais, não sendo capazes de exercer funções de comando ou de maiores responsabilidades.
Goddard desenvolveu técnicas visuais para a detecção dos débeis mentais. Para tal tarefa as mulheres pareciam as mais indicadas pois possuíam finas percepções que permitiam-nas facilmente identificá-los, sem a necessidade de testes mais apurados.
Algo interessante descoberto por Gould é a falsificação das fotos de supostos débeis mentais nos registros de Goddard. O contorno de seus olhos e bocas foram retocados a fim de atribuir-lhes um aspecto maléfico ou de retardamento mental. Submetidas a análises, concluiu-se tratar de grotescas falsificações com intenções de transmitir uma imagem distorcida das pessoas retratadas.
Lewis M. Terman
Apesar de Goddard ter introduzido a escala de Binet nos EUA, Terman foi o seu grande divulgador. “A aplicação de testes logo de transformou numa indústria milionária; as companhias de estudo de mercado não se atreviam a utilizar testes que não fossem respaldados pela correlação com a norma de Terman”.
Terman compartilhava as mesmas concepções de Goddard. Segundo ele, “nem todos os criminosos são retardados, mas todas as pessoas retardadas são, no mínimo, criminosos em potencial. É praticamente indiscutível que toda mulher que sofre de deficiência mental é uma prostituta em potencial. O juízo moral, como o juízo comercial, o juízo social ou qualquer outro processo mental superior, é uma função da inteligência. A moralidade não pode florescer ou frutificar se a inteligência continua sendo infantil”.
Terman empreendeu um incrível trabalho para determinar o QI de grandes personagens do passado. Utilizando-se de documentações e outras provas sobre a vida da pessoa, ele criou critérios para deduzir o seu QI.
Ao final de sua vida, Terman começou a levantar maiores considerações sobre a influência do ambiente no desenvolvimento intelectual das pessoas.
R. M. Yerkes
Yerkes lançou-se na difícil tarefa de transformar a psicologia – na época vista como uma ciência branda ou pseudociência – em uma ciência tão rigorosa e exata quanto a física. O grande feito de Yerkes foi ser nomeado coronel para que em detrimento da Primeira Guerra Mundial, pudesse trabalhar junto ao exército e aplicar seus testes nos recrutas. Mais de 1,75 milhões de recrutas foram avaliados. Estes eram classificados em uma escala de A a E e suas funções eram definidas por esta escala.
Dificuldades e atritos foram causados em decorrências destes testes. Condições inapropriadas comprometeram parte de seus resultados. Yerkes afirmava que a guerra fora vencida com a ajuda da psicologia, embora muitos integrantes hesitavam em aceitar a presença de Yerkes no exército.
Novembro de 2004