Das armadilhas da linguagem, abusarás
Texto: “Das armadilhas da linguagem, abusarás” do livro “A impostura científica em dez lições” de Michel de Pracontal. São Paulo: Editora da Unesp, 2004.
O autor tece uma crítica contundente e irônica sobre o abuso da linguagem daqueles que ele denomina como impostores da ciência. Estes, articulando de modo hábil certas particulares da linguagem científica – esta que os não especialistas não dominam – publicam trabalhos inócuos sem qualquer relevância do ponto de vista do conteúdo científico a ser agregado. Estas artimanhas de linguagem podem assumir basicamente três formas:
Do abuso das metáforas e analogias
As metáforas têm importante utilidade do ponto de vista da didática na explicação de conceitos científicos, conforme o próprio autor coloca: “para os cientistas, a metáfora é um processo pedagógico que permite familiarizar-se com um objeto não habitual e abstrato, e tornar sensíveis alguns de seus aspectos. Ele desempenha um pouco o mesmo papel que uma figura”. Ou ainda: “as metáforas dizem respeito à interpretação. Elas nos ajudam a dar sentido. Põem carne no esqueleto lógico da linguagem científica”. Porém, ocorre que tais metáforas podem ser utilizadas também para a deturpação e confusão, forjando assim uma pseudociência. “Acumulamos os fatos e jogamos fora as metáforas na lata do lixo. Esses resíduos não estão perdidos para todos. Os impostores os apanham e tiram deles teorias pseudocientíficas...”. Há, portanto, um limite para a utilização das metáforas, até onde estas não sejam causas de confusões intencionais ou não. Quanto a maneira de abusar da analogia, esta consiste em aplicar uma teoria científica a uma área em que ela não se aplica. O autor dá como exemplo a “teoria das catástrofes”, de René Thom.
Os agentes duplos da linguagem
Pracontal critica o fato de muitos conceitos científicos consistirem de palavras de uso corrente, gerando assim uma dualidade semântica entre a língua natural e a linguagem científica. Tais dualidades levam a ambigüidades e equívocos das quais os impostores se aproveitam. “Com a cumplicidade de palavras que não escolheram seu campo, eles tecem seus contos das ‘Mil e uma noites’ semânticas. O ‘valor de verdade’ associado à ciência torna dignos de crédito discursos que não querem dizer nada, mas que têm uma aparência científica”. A poesia e a ciência pertencem estritamente a compartimentos estanques. A literatura ou a divulgação científica pode abarcar a fusão de ambas, deixando-se claro o que se pretende fazer e sem deixar brechas a interpretações errôneas da natureza do trabalho.
Alimentando o nebuloso no discurso
Além da má utilização das metáforas e analogias, o autor aponta a “superpontuação” como recurso dos impostores para tornar nebuloso seus textos pretensamente científicos. “A superpontuação enfeita e obscurece as frases [...] ela alimenta o nebuloso do texto”. “Ela intimida o leitor e dá a impressão de que o autor tem realmente algo de original a dizer”.
O autor ainda analisa a questão do erro, principalmente no contexto do ensino de matemática. Existe um sentimento de horror associado ao erro, quando a frustração acaba por aniquilar qualquer incentivo do aluno ao estudo de determinado assunto, em especial, da matemática. Esta psicologia do erro, do horror ao erro, traduz de certa forma a postura dos impostores: “no caso extremo, o impostor põe todos os recursos de sua retórica a serviço de uma negação quase psicótica do real, em lugar de admitir que está enganado. Toda crítica o reforça numa atitude paranóica: quem não me aprova está contra mim, faz parte de um complô contra a verdade etc”. O ideal (e o horror) de que sua teoria não pode estar errada, torna esta sagrada e intocável.
Reflexão: “somente na linguagem corrente é que se pode responder as Verdadeiras Perguntas e transgredir os paradoxos lógicos. Mas não é assim que se constroem teorias científicas”. O que se pode deduzir disto? Que a ciência não trata das Verdadeiras Perguntas e se fecha, perdida, em paradoxos lógicos? E que tais Verdadeiras Perguntas podendo ser respondidas pela linguagem corrente não possuem, portanto, o rigor científico necessário e não abusivo?
Outubro de 2004