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José sabe que é obrigação de todo bom judeu subir a Jerusalém e ir ao Templo para sacrificar ao Senhor de Israel, se possível, todo ano. Faz parte da lei e da tradição do seu povo essa viagem e ele já há muitos anos está devendo isso, em razão das lembranças doloridas que a cidade lhe traz, e principalmente por causa do medo de encontrar alguém que venha, de alguma forma, reviver aquele velho assunto, que agora não o faz mais sofrer, mas ainda o incomoda toda vez que se lembra disso.
É que a alma humana é movida por tais impulsões doloridas. E os dois remédios que mais lhe dão alívio são o perdão e o esquecimento. Ao primeiro não é difícil cultivar na horta do espírito. Lançam-se as sementes e os adubos de uma consciência tranqüila, uma boa índole e uma sólida fé nos desígnios da Divindade o fazem germinar como flores na primavera. “ Fizeste isto contra mim, me prejudicaste, me causaste dano. Muito bem, perdoado estás, não exercerei vingança contra ti, não buscarei reparo nos tribunais, não te denunciarei à policia. Mas já sei que não posso fazer concerto contigo, pois é certo que não mereces confiança. Perdôo-te, mas não esqueço que para fazeres parte da minha vida não serves”. Assim, é possível perdoar até setenta vezes sete e mais, mas esquecer, ainda que seja uma única vez, é muito difícil, pois a memória da perda, esse fiscal que nunca dorme, está sempre a acender a luz vermelha. Perdão sem esquecimento é como liberdade condicional. Nunca dá completa segurança.
Era o que acontecia com a alma de José. Quase quatorze anos se passara e ele perdoara de coração, pois nunca pensara em vingança nem desejara mal a quem quer que fosse, em razão do engodo em que fora metido. Mas quanto a esquecer, somente com a morte, cujo encontro talvez já estivesse a meio caminho. Caminhando ao encontro dela ele sabia que estava, aliás todos sabemos, porquanto o bilhete para viajar pela vida também implica numa passagem para a estação da morte. Mas ele, que nada da arte chamada filosofia gostava de cultivar, dessa consumição de espírito não sofria. Dessa forma, caminhava para o seu dia com a boa mente de quem sabe que o inevitável se aproxima e somente as coisas da vida, que é preciso atender, é que merecem a atenção do homem. E aquela era uma das coisas que não podia mais ser adiada. Tinha que rever Jerusalém mais uma vez e confessar ao Deus de Israel as suas últimas esperanças na vida.
Pena que, para ele, as coisas não se passaram assim. Judas Galileu – sempre ele a determinar-lhe os fatos mais importantes da vida –, à frente de um exército de cerca de dois mil homens atacou a cidade de Séforis e incendiou o palácio real, levando as armas e munições que encontrou ali, depois de passar a fio de espada toda a guarnição e os membros da corte de Herodes Antipas. O rei, seus ministros e toda sua família lograram escapar, mas essa era a segunda vez que isso acontecia no espaço de uma década, razão pela qual, tão logo a rebelião foi dominada, Anti-pas abandonou Séforis e construiu nas margens do lago Genesaré uma nova cidade para ser a capital da província. A essa cidade ele chamou de Tiberíades, em homenagem ao imperador Tibério, que tanto o ajudou na repressão selvagem que se moveu contra todos aqueles que, direta ou indiretamente, apoiaram o ataque de Judas Galileu.
Depois de saquear Séforis, Judas incendiou grande parte da cidade e levou com ele as pessoas mais ricas, com a finalidade de exigir resgate por elas. A resposta de Antipas não se fez esperar. Solicitou e foi atendido pelos romanos no seu apelo por ajuda. A seu pedido vieram copiosas tropas que se derramaram pela Galiléia inteira à cata dos revoltosos e á procura dos cativeiros onde eles mantinham os prisioneiros. Á frente desses contingentes estava um general, de nome Sabinus, que em poucos dias de campanha esmagou a rebelião e destruiu o exército de Judas Galileu, que novamente conseguiu escapar. Os poucos que sobraram – Judas entre eles – fugiram para as montanhas da Samaria e se esconderam nas inacessíveis escarpas daquelas serras, cheias de caverna e reentrâncias onde vários homens podiam se homiziar. Com a feroz repressão que se seguiu, a região da Galiléia voltaria a experimentar, por uns tempos, uma relativa paz.
Sabinus cumpriu à risca a sua missão e colocou a região sob lei marcial. Em seguida, começou a limpá-la de todos aqueles que, na sua opinião, eram, foram ou tinham condições de tornar-se rebeldes. Todas as prisões da região ficaram lotadas e até os armazéns da cidade de Séforis foram improvisados para abrigar os prisioneiros. Depois de um sumário julgamento, que não levou mais que alguns dias, cerca de três mil pessoas restaram condenadas a morrer na cruz. A cidade de Séforis, novamente queimada até às cinzas, parecia uma grande pira, cujas chamas e fumaça podiam ser vistas de Nazaré, a pouco mais de cinco quilômetros serra abaixo, em direção ao lago. O fulgor do incêndio iluminava o céu, como se o sol, desta vez por conta e obra dos romanos, tivesse se imobilizado outra vez no firma-mento, como há um milênio antes se dizia que Jeová fizera acontecer para ajudar o exército de Josué, quando os amorreus o sitiaram em Gabaoon.
Faltavam cruzes, razão pela qual todos os carpinteiros e os que sabiam trabalhar em madeira, bem como os próprios combatentes aprisionados foram mobilizados para cortar árvores e aparelhá-las, para serem nelas pendurados para morrer. Os legionários romanos e os soldados de Antipas varejaram toda a região de Séforis à cata de quem pudesse ajudar no macabro trabalho. Á força arrebanharam todos os carpinteiros da região e os fizeram trabalhar, fabricando cruzes e mais cruzes. Dessa vez, José não conseguiu escapar. Surpreendido pelos legionários justamente no momento em que preparava a matalotagem que precisava para empreender a viagem a Jerusalém, não foi capaz de articular um discurso suficientemente bom para dissuadir os rudes soldados de levá-lo para Séforis. Os brutos não estavam para ouvir rogos e lamentações, nem quaisquer outros argumentos. Afinal, aquela corja de judeus rebeldes não merecia qualquer consideração. Pouco se lhes dava que eles tivessem uma tradição a cumprir e se a necessidade imperiosa que um judeu tem de sacrificar ao seu Deus os obrigava a ir a Jerusalém para comemorar o Pessach.
Nenhuma desculpa, nenhum argumento foi aceito. Trançar estacas para pendurar os criminosos que ousaram desafiar o poder de Roma e de seus aliados era mais importante que qualquer outra obrigação. Resistir à convocação seria chamar para si a morte, ali mesmo, diante da família chorosa, cujas lágrimas e rogos também não foram capazes de salvá-lo da triste sina que o esperava.
José acompanhou os legionários até Séforis. Mas não antes de convencer Maria e os filhos a se juntar ao séqüito de pessoas da aldeia que iriam a Jerusalém para as festividades da Páscoa.
– Deve ser um serviço rápido –, disse ele à jovem esposa. Assim que o terminasse iria se juntar a eles na cidade santuário.
Nunca sabemos quando o destino nos escolhe para pregar suas peças. Durante dez dias, José trabalhou arduamente e ajudou a fabricar centenas de cruzes, nas quais foram pendurados para morrer um outro tanto de homens. E ao término desse trabalho, estafante, infamante, e que o fazia ser maldito por todos quanto o olhavam a aplainar e abrir cavilhas nas rústicas estacas; quando a tarefa parecia estar por terminar e ele pensava que seria liberado para juntar-se à família, a essa altura já chegando à Jerusalém, eis que vem a ordem, expedida pelo próprio Governador Varus, para que não se deixasse vivo nenhum participante, direto ou indireto, daquela revolta. Difícil era para os líderes da expedição, àquela altura, separar o joio do trigo. Mesmo sabendo que haviam sido arrebanhados muitos aldeões e outros cidadãos que nada tinham a ver com a revolta, como distingui-los agora? Eram centenas os que haviam sido compelidos a cortar madeira e fabricar cruzes. Tinham sido todos postos a trabalhar sem qualquer identificação. Mais fácil seria sacrificar alguns inocentes do que correr o risco de libertar algum culpado. Afinal, fossem judeus, galileus ou samaritanos, para os romanos era tudo a mesma coisa, ainda que judeus e samaritanos fossem inimigos há muitos séculos e os galileus tivessem fama de pacíficos e conformados, fama que ganharam depois da última revolta.
Dessa forma, optou o pragmático general por pendurá-los todos, sem distinção, sem investigações e sem ouvir os rogos, as lamentações e as declarações de inocência, que de regra, sabia ele muito bem, todo criminoso se declara inocente quando apanhado e nunca houve um que não o fosse, no momento da con-denação. Essa lógica irrefutável aplacou a sua consciência e ato contínuo mandou pendurar nas cruzes fincadas á beira da estrada mais uma centena de infelizes, decorando com esses macabros ornamentos quase toda a extensão da estrada que liga Tiberíades a Ptolomaida.
Na longa fila de estacas trançadas que os romanos fincaram na parte da estrada que vai de Séforis até Tiberíades, em direção ao lago Genezaré, em uma delas podemos ver José, o carpinteiro. Foi pendurado pelos braços na trave horizontal, en-caixada na trave vertical através das cavilhas – estranha ironia essa – que ele mesmo lavrou. Seus tornozelos estão presos na trave vertical com cordas, sustentados por um suporte de madeira cravado no poste, pois que os grampos existentes não foram suficientes para pregar nas improvisadas cruzes milhares de pés e mãos. Cinco mil e quinhentos cravos os romanos utilizaram naquela empreitada, informação essa que se levantou depois junto à oficina do ferreiro que os fabricou especialmente para a ocasião.
José está morto já faz algum tempo, porquanto foi ali manietado há cerca de dez horas atrás e ele não tinha tantas reservas físicas que o pudessem sustentar vivo por um período maior, como alguns daqueles combatentes pendurados á sua direita e esquerda, que levaram um dia e mais horas para morrer. Combalido já em suas forças, homem velho que era, pouco mais de quatro horas de exposição ao sol inclemente o levaram a render o espírito ao seu Criador. Não foi preciso que ninguém lhe metesse o martelo nas pernas finas, como de ordinário se faz com os condenados a morrer na cruz, para que o peso do corpo, não encontrando suporte que o sustente, o leve a arriar-se todo sobre o peito, dificultando a respiração. Morre-se assim mais rápido, por conta da falta de oxigenação do sangue, do que pelo suplício da crucificação, propriamente dito. Piedoso expediente esse, que abrevia a agonia do crucificado e libera, mais cedo, o carrasco para o happy hour.
A lei dos judeus proíbe que cadáveres fiquem insepultos de um dia para o outro. Mas quem nestes dias faz a lei são os romanos, e estes já decidiram que estes revoltosos ali ficarão até quando Sabinus entender que devem ficar. O general quer fazer deles um exemplo bem eloqüente, para dizer a todo aquele que tiver no sangue um germe de revolta, que trate de curar-se o mais rápido possível, pois Roma não hesitará em derramar o sangue que for necessário para debelar tal epidemia. Os abutres já começaram a mostrar para que finalidade a natureza os engendrou, comendo a carne dos já mortos de verdade, e beliscando os corpos ainda vivos que não conseguem fazer mais nenhum movimento para se defenderem. O que sobrar dessas carcaças dilaceradas será consumido em uma fogueira cujo fulgor será visto por toda a Galiléia, bem como o cheiro da carne queimada, que será sentido a milhas de distância, haverá de informar também, a todos quantos ousarem desafiar o poder de Roma, quão temerária pode ser essa empreitada.
A morte de José, o carpinteiro, não foi narrada por nenhum dos cronistas que tiveram as suas crônicas avalizadas pelos censores oficiais, razão pela qual somente em visões como a que expusemos acima teve a honra de ser retratada. Há, sem dúvida, aqueles que em tudo querem ver uma intervenção direta da Divindade nos negócios humanos e de outra sorte contemplaram José no seu desenlace. Assim, um desses cronistas – apócrifo também, diga-se de passagem – escreveu que José teria sido avisado por um anjo que sua morte era iminente. E que ele, ciente desse desfecho próximo, teria ido a Jerusalém, onde se pôs diante do altar. E lá ficou por horas a sacudir a branca cabeça, à maneira dos judeus, humilhando-se, orando e louvando a Jeová, pedindo perdão por seus muitos pecados e solicitando o reconhecimento de suas poucas virtudes.
Reportou-se até uma prece, que alguém, não se sabe como, conseguiu colher de primeira mão, pois aparece fielmente reproduzida em uma dessas crônicas. Nela, o bom carpinteiro pede a Jeová que permita que o Arcanjo Miguel fique ao seu lado até a sua passagem desta para a outra esfera; porque a morte é dolorosa e ele precisa de ajuda para desencarnar-se; que sua alma, liberta do invólucro carnal, não se desencante de seu corpo e prejudique a sua viagem até os braços do Monarca do Uni-verso; que o cão de três cabeças não o devore na passagem das águas do rio de fogo que consome as almas que estão destinadas a não ver a glória de Jeová, etc, etc.
Descontando a estranheza de uma prece dessas ser colocada nos lábios de um judeu, é francamente improvável que José pudesse formulá-la, pois tais símbolos e conceitos não faziam parte da cultura do seu povo. No mapa que os judeus traçaram do mundo dos mortos não se encontram rios de fogo, como o Estiges dos gregos, nem cães de três cabeças, como aquele Cérbero que guarda as portas das mo-radas infernais. Essas visões são exclusivas dos sábios filhos da ensolarada Hélade, embora a riqueza dessas metáforas tenha conquistado o mundo e todos os povos delas se apropriem como se fossem originalidade das suas culturas. Depois, como vimos, o pobre homem jamais poderia ter ido a Jerusalém, porque naquela altura já estava bem morto, pendurado no infame madeiro que ele mesmo cortara e aparelhara com as próprias mãos.
Destarte, nem poderia a pobre Maria, segundo se disse também, ficar aflita pela morte do esposo, porquanto disso somente soube cerca de duas semanas depois, quando regressou a Nazaré. Que carpiu não se duvida que o tenha feito, já que esse comportamento é próprio de todas as viúvas judias. Quanto aos seus filhos, com certeza devem ter rasgado as vestes e esparzido cinzas sobre a cabeça, como manda o costume e o exige a piedade filial. E devem ter tido todos os pensamentos que um filho que perde o pai costuma ter.
Verdade é também que o filho de Maria o tinha por verdadeiro pai, inconsciente que estava do segredo que envolvia seu nascimento, que eles guardaram muito bem. Assim, nada pode ser posto na conta do pitoresco, posto que alguém dissesse mais tarde que os próprios discípulos dele o tenham vituperado por não ter concedido ao seu pai terrestre, José, o carpinteiro, a mesma distinção que foi concedida a eles, no céu. Por que se disse que ele, indo adiante, reservaria moradas para os doze discípulos no condomínio que acabara de conquistar junto ao seu pai celeste. E isso ele fez, deixando do lado de fora o infeliz carpinteiro que o criara e educara.
Maledicências à parte, o certo é que o filho de Maria sofreu muito com essa perda e ainda que todos aqueles que negam sua natureza humana possam sustentar que ele sabia que José não era seu pai carnal, o menino que agora está para fazer treze anos, além da natural modificação biológica que os corpos humanos passam a experimentar a partir dessa idade, começa a viver uma intensa experiência interior que dali para frente irá modelar o seu singularíssimo destino. Primeiro ele irá a Jerusalém onde imprimirá, no jovem espírito ainda em formação, as primeiras marcas desse caminho. Depois, por um tempo, as deixará maturar. O fato é que nos próximos cinco anos da sua vida, ele tentará, honestamente, calçar as sandálias do pai, ainda que não fosse o filho mais velho. Quer isso dizer que ele procurou, realmente, seguir as pegadas de José, tornando-se carpinteiro como ele. Mas fosse porque suas mãos não acompanhavam a febril atividade de sua mente, ou porque certamente essa não era a missão para a qual viera ao mundo, logo essa inadaptação se faria notar e o menino teria que começar a procurar o seu verda-deiro caminho.
Quanto a José – pobre homem –, o que sobrou da sua carcaça foi retirado do poste e lançado ás chamas purificadoras. Morreu como morrerá também, vinte e poucos anos mais tarde, o seu filho adotivo, e certamente sua morte na cruz tem alguma conexão simbólica com a estranha vida desse garoto, por conta do qual ele deixou sua aldeia em Belém e veio para essa Nazaré conturbada encontrar o seu triste destino. Nenhuma lápide, nenhuma inscrição marcam o local onde exalou o último suspiro aquele que, segundo uma canção escrita dois mil anos depois, só queria ser feliz com a sua Maria. Hoje, quem for a Nazaré em busca dessas memórias só encontrará uma camarilha de mercadores, idêntica à que um dia o seu filho expulsou do Templo de Jerusalém por tê-lo transformado em um covil de ladrões. Estes lá continuam, hoje vendendo todo tipo de souvenirs. E para os habitantes de Nazaré, são os que se referem ao filho de Maria que fazem a prosperidade deles.
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DO LIVRO O FILHO DO HOMEM -ED. SCORTECCI , SÃO PAULO, 2010.