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É assim que numa manhã, bem cedinho, antes ainda do sol levantar o dourado rosto sobre as montanhas, só Maria acordada, os irmãos ainda dormindo, eis o jovem de delgada silhueta e longos cabelos, já com uma rala e incipiente barba a sombrear-lhe as faces, despedindo-se da mãe, enxugando com a ponta dos dedos as copiosas e silenciosas lágrimas que lhe rolam dos olhos muitos negros. Ficam assim, abraçados alguns minutos e depois, sem fazer barulho para não acordar os irmãos, gira a taramela da porta e sai.
Na noite anterior, mãe e filho haviam conversado. De frases curtas, sintéticas, significativas, havia sido o diálogo.
─ Amanhã vou embora, mãe.
─ Eu sei, filho. Há tempo percebi que precisas ir.
─ Dá-me então a tua benção?
─ Sempre a tiveste. Para onde vais?
─ Não sei. O mundo é grande.
─ Que pensas fazer?
─ Gostaria de ser um rabino.
─ Fazes bem. Sempre soube que não serias carpinteiro.
─ Posso levar o alforje do meu pai?
─ Sim, podes levá-lo. Nós te veremos de novo?
─ Sim, se quiser o Senhor.
─ Ele há de querer. Mas há outra coisa que precisas fazer, meu filho.
─ O que é mãe?
─ Vou escrever tudo em uma carta que levarás ao Rabban José de Arimatéia em Jerusalém. Se queres ser um rabino, é a ele que deves procurar.
─ O que vais dizer nessa carta, mãe?
─ No tempo certo saberás. Por ora, prometa não abri-la antes de entregá-la ao Rabban.
─ Sim, eu prometo.

Outras coisas devem ter falado, mas essas não nos foram dado registrar. Falaram, outrossim, mais com os olhos e com as mãos, que mantiveram entrelaçadas durante todo o diálogo. Quando o primeiro raio da aurora enfiou o luminoso dedo pela fresta da porta, ele levantou-se, calçou as sandálias, ajeitou nas costas o alforje e saiu.
Dentro da casa, Maria deita-se na tosca enxerga que lhe serve de cama e chora silenciosamente. A noite, que custa a terminar, ainda lhe reserva mais dúvidas e angústias, pois ao cabo de meia hora ou mais, o cansaço do corpo e a tensão da noite insone vencem as tormentas do espírito e ela adormece. E imediatamente um longo e complicado filme começa a ser projetado na tela da sua mente. Ela está na sua casinha em Belém, nos dias da sua mocidade. Sentado sobre o parapeito do poço um jovem vestindo uma túnica muito branca parece estar no seu aguardo.
─ Quarenta e duas eras são os tempos desta espera–, diz ele.
─ Por quem esperavas? Por mim seria? E por que razão, se eu não conheço homem e não há promessa de sacrifício que possa ser feita sobre a cabeça de uma mulher? –, pergunta Maria.
─ Pelo homem universal é a espera, aquele que ocupa o centro do tempo, onde o passado e o futuro se encontram. O meio do tempo e o centro do mundo são o seu lugar, de forma que esteja onde estiver e seja qual for o tempo, ele estará sempre bem alocado –, diz o moço.
─ Não entendo o que dizes, pois nessas sabedorias não são instruídas as mulheres. Ao que a razão não alcança não se pode dar preço, por isso não sei se de anjo ou demônio é essa fala –, responde Maria, confusa.
─ Diz-me pelo Altíssimo – suplica Maria, a que vens e torna mais clara essa tua fala.
─ Bendita serás pelo fruto do teu ventre; e por causa dele também a mais infeliz das mulheres –, responde ele.

Os filmes que a mente produz quando dormimos têm dessas coisas. Cortes abruptos, passagens de cena sem o devido encadeamento lógico, saltos no tempo e no espaço. Por isso, eis que, em seguida, podemos ver Maria na estrada de Séforis a contemplar a fila de condenados pendurados na cruz. Ela procura por José, seu marido, contado entre os infelizes crucificados, e quando o encontra, desce seu corpo do madeiro.
─ Eis aqui a minha infelicidade –, diz ela. E se é por conta disso que eu serei a mais infeliz das mulheres, então de fato eu o sou, pois este é o meu filho amado, em quem pus toda a minha complacência.
─ Não ainda, mas fazei no fim como fizeste no princípio, sabendo que o fim nada mais é que princípio –, diz o moço, que ainda está por ali, em algum lugar, embora ela não o veja mais.
─ Que significa esse discurso, que não consigo fazer senso? Eis aqui o meu marido e o meu filho, que braços poderosos abateram, para minha desventura e desgraça –, exclama Maria.
─ A morte é a causa da vida, o princípio carrega no ventre o fim, o fim é semente do princípio –, diz o moço, que se parece, ora com Davi, o rei, ora com o jovem Judas Galileu.
─ Colhei numa caneca a urina da virgem –, diz ele.
Maria arregaça até o ventre o seu vestido e urina na caneca que ele lhe dá.
─ Dá de beber a todos os filhos de Israel –, diz o moço.

Maria acorda e sente a umidade ainda morna da urina que lhe molhara os vestidos. Envergonhada, olha para os filhos que dormem em suas esteiras, no outro lado do cômodo. Resso-nam a sono solto. Dessa sorte confortada, ela apalpa com cuidado as meninas Miriam e Salomé, para ver se elas não estão molhadas com a urina dos seus sonhos. Devagar, para não acordar ninguém, levanta para lavar-se. Pela escuridão que ainda reina no horizonte, percebe que não se passara muito tempo desde que se despedira do seu filho.
A uns vinte estádios dali, serra abaixo, que corresponde em nossas medidas de hoje a uns dois quilômetros, se tanto, o jovem filho de Maria, depois de olhar demoradamente para a pequena mancha branca que é Nazaré, tingindo a verde colina, luta contra o engulho que ameaça travar-lhe a garganta. E para não ter que lutar também contra as lágrimas que começam a ofuscar-lhe a vista, dela desvia o olhar e principia a íngreme descida que o levará ao Vale do Jordão, destino que sempre es-teve presente no limite dos seus olhos e no horizonte dos seus sonhos.
Na matalotagem que leva no alforje, uma pequena bolsa de couro abriga os presentes que recebeu dos três “reis magos” que o visitaram ainda em Belém, recém nascido que era. Peque-nos mimos de ouro, incenso e mirra, que Maria guardara ciosa-mente desde aqueles tempos. Não sabia por que o fizera, mas em seu coração, que guardava todas essas coisas, havia um não explicado sentimento que lhe dizia que um dia elas teriam alguma serventia.

O filho de Maria está indo para Jerusalém para se tornar um rabino. Isso é que o seu coração lhe aconselha. Já vimos que ele não quer ser carpinteiro como José, seu pai adotivo, e prefere ser professor, como foi, um dia, o pai que ele nunca conheceu. Se ele soubesse dessa relação de parentesco com Judas Galileu, então poderia explicar a si mesmo aquele gosto pela especulação, aquele anelo pelas coisas da religião, aquela preocupação pelo destino de Israel e aquela estranha sensação de que alguma coisa estava errada no mundo em que ele vivia.
Por que lhe parecia ser tudo tão estranho naquela relação que Israel vivia com seu Deus? Jeová seria Deus apenas de Israel? Se fosse, então não poderia ser tão poderoso assim, pois não conseguia sequer manter o seu povo livre da opressão estrangei-ra. Afinal, foram milhares os anos vividos nessa sina. Podiam ser contados nos dedos os anos que Israel vivera como nação soberana e forte. Desde os primórdios da sua constituição, houve sempre um povo superior em força militar e conhecimento técnico para subjugá-los.
Se Jeová não fosse apenas Senhor de Israel, então, por que ele seria o povo Dele escolhido? E se assim fosse, o que teria acontecido para Ele ter desistido dos outros povos e fixado o seu domínio somente sobre um grupo tão pequeno e insignifi-cante quanto o formado pelos filhos de Abraão?
Essa resposta ele nunca encontrou nas sagradas escrituras, pois o que ali se via era uma apropriação da Divindade, feita pelos rabinos de Israel, que nunca consentiram em dividir o seu Deus com as outras nações, como se ele fosse uma propriedade particular. Mas se o Deus de Israel era o Deus único e universal, como eles apregoavam, então não tinha nenhum sentido pensar em um salvador para os judeus, um Messias que os viesse tirar do cativeiro, como um novo Moisés, pois por que motivo o Senhor se daria ao trabalho de intervir numa briga familiar, ajudando um irmão a prevalecer contra todos os outros? Ademais, se Jeová realmente desejasse salvar o seu povo dessa nova opressão que lhes era imposta pelos romanos, por que não fortalecer a mão de Judas Galileu, por exemplo, como havia sido feito com Josué e Davi nos antigos tempos?
A se julgar pelo que estava escrito nas escrituras, Jeová agia como se fosse um austero senhor de terras que tratava seus filhos como se fossem trabalhadores de sua fazenda, privilegi-ando uns e discriminando outros. Essa discriminação começou com a família de Adão, pois desde logo Ele preferiu Abel e desprezou a Cain; e continuou pela história toda, culminando com a escolha de Israel entre tantos povos na terra. Jeová parecia ser um Deus ciumento e discriminativo, que não tinha nenhum constrangimento de fazer inexplicáveis seletivas entre os frutos da sua criação.
Mas seria assim mesmo? Haveria um povo escolhido por Deus, ou um povo a redimir? Ou um único povo sobre a terra, perdido em suas próprias crenças, dividido contra si mesmo, esperando uma nova idéia, um novo caminho, ou alguém que lhes mostrasse a sua verdadeira face? Sim, porque Deus não podia ser aquele que os líderes de Israel teimavam em mostrar ao povo, uma Divindade incoerente e nervosa, que ocultava Seu Rosto e sonegava o Seu Verdadeiro Nome. E quem sabe a Sua Verdadeira Vontade?
Com certeza, esse era um pensamento ousado e ele estremeceu ao formulá-lo. Afinal, ele era judeu, era filho de Israel, Jeová era o seu Deus e ele sempre acreditara que não havia outro além Dele. Mas não, mesmo se sentindo culpado por pensar daquele jeito, ele não conseguia imaginar Deus apenas como Jeová, Divindade exclusiva dos judeus, mas como Deus universal e único, ainda que inominado e informe, mas Princípio e Fim de todas as coisas, Aleph e Thau, Alfa e Ômega, como diziam os gregos. Esse conceito de inimaginável amplitude e impossível dimensionamento que ele atribuía ao Deus de Israel não cabia na idéia de uma divindade tribal, preocupada com a salvação de um pequeno povo, enquanto a humanidade toda parecia um rebanho sem pastor.
Assim pensava e caminhava o filho de Maria, se afastando cada vez mais de Nazaré. E à medida que a imagem da aldeia ia desaparecendo dos seus olhos, seus pensamentos e conclusões o levavam para mais longe das tradições, esperanças e crenças do seu próprio povo.

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DO LIVRO O FILHO DO HOMEM- ED. SCORTECCI, SÃO PAULO, 2010









João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 17/06/2010
Reeditado em 17/06/2010
Código do texto: T2325587
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