A cidade do Sol – de Khaled Housseini



Desde os tempos mais remotos, a mulher luta por respeito e espaço na sociedade. Sempre fomos vistas como o sexo frágil e dependente.
Muitas mudanças ocorreram, mas vivemos em mundos diferentes, tão desiguais que ainda hoje, mulheres só conhecem o silencio e resignação. Elas nascem e morrem no anonimato, nunca conheceram nada além dos muros que as cercam. E este destino não é nada bonito, descrever estas vidas sem deixar-se envolver pela angústia e revolta, de forma imparcial exige esforço e muito talento.

Khaled Hosseini, é autor de O caçador de pipas, uma história fascinante tanto na literatura quanto nas telas de cinema.
Desta vez  em uma narrativa envolvente,rica em minúcias ele nos conta uma história cujo palco é o Afeganistão, durante o período da invasão Russa até as mudanças radicais sob o domínio dos Talibãs. Seria mais um livro sobre os horrores sofridos por um povo castigado, se não fosse a voz de duas mulheres expondo sentimentos, sonhos, dores e esperança.

Duas personagens impossíveis de resistir e esquecer, que nos torna íntimos dos medos e anseios que as cercam. Ele nos apresenta Mariam, uma menina que vive em uma kolba, espécie de cabana de um só cômodo, nas montanhas de Herat, afastada de todos por ser uma harami, ou bastarda de um homem rico e dono do único cinema da cidade.
Esta menina jamais experimentou o sabor de um sorvete como todas as outras crianças da cidade, nem assistiu Pinóquio, a história que o pai conta repetida vezes ou aprendeu a ler. O pai tão adorado, lê pequenos recortes de jornais com as noticias do país,  sua única ligação com o mundo, e ele irá selar seu destino, casando-a aos quinze anos, com um homem muito mais velho, com quem viverá o resto da vida em Cabul.
O sapateiro Rashid é o mais requisitado e tem sua própria loja na cidade, é truculento e impaciente. Para ele uma esposa significa roupas limpas e comida bem feita na mesa. Sexo quando for conveniente e completo desprezo por qualquer outra atitude. Incluindo diálogos.

As lembranças de Mariam quando menina, correndo pelos bosques, pescando e brincando no rio, aprendendo as preces com o velho mulá e os dias alegres com a mãe doente, serão o único conforto da mulher que vê a vida pela janela da casa e anda pelas ruas,  através da pequena abertura da  tela furadinha de sua burqa . Um pequeno retângulo que oculta as laterais e faz com que ela perca o equilíbrio, envergonhando o esposo que não a deixa caminhar ao seu lado.

A surpresa e admiração  da  primeira vez em que Mariam passeia pelas ruas de Cabul, admirando lojas finas e principalmente as mulheres que andam sem véu e  passam dirigindo seus próprios carros são comoventes.  Moças e senhoras que fumam livremente, andam de cabeça erguida exibindo o luxo da maquiagem e jóias sem medo de olhares ou censuras são descritas com entusiasmo quase infantil da personagem.

Todo o sentimento que brota quando Mariam se depara com o abismo que a separa das outras, traça a dura realidade: ainda que vivam no mesmo país ela entende que nunca terão os mesmos direitos. Porque esta liberdade jamais será sentida por ela, que passou da tutela opressora da mãe para a do marido.
Este relato simples é de uma docilidade ímpar, já que ela quase não fala, não sabe ler e acredita ser incapaz de raciocinar. Esta Cabul que ainda respira os ares modernos, logo  mudará e todas sentirão o castigo  que  um simples caminhar até o mercado, sem a companhia de um homem pode causar.

Enquanto isso na mesma rua, poucas casas acima nasce o terceiro filho  de um casal,  pais de dois meninos, a garotinha  é recebida  de braços abertos. O pai desta criança é professor universitário e a  mãe uma amorosa dona de casa. Eles acreditam que a instrução é para todos e principalmente incentivam a filha a estudar e aprender cada vez mais. Este mestre valoriza e trata a esposa com carinho, é culto e leciona com prazer. Ele acredita na importância da mulher na sociedade em que vivem e planta esta semente na filha, a pequena Laila.

O dia a dia desta família comprometida com a cultura é uma surpresa e ao mesmo tempo nos choca, tamanha discrepância entre os personagens ao redor. Laila apaixona-se por Tariq,  coleguinha de escola e vizinho. Existe harmonia na futura  união, todos são a favor e o outro lado da moeda é contado. Nem todos os casamentos são arranjados, nem toda moça é obrigada aos quinze e até mesmo treze anos, a arcar com a responsabilidade de uma união imposta como Mariam. Existem exceções.

O desenrolar da trama vivida pelo casal é perfeito para quem adora um toque de romance, mas não compromete o cenário duro e devastador. Tariq é um personagem incrível, que já inicia a infância com a perda de uma das pernas ao pisar em uma mina. Mesmo com todas as dificuldades ele é um grande lutador, o amor por Laila é o impulso que o leva a transpor vários percalços ao longo da vida.

O personagem do velho professor, pai de Laila e suas conversas sobre política, explicando para os filhos o ponto de vista  tanto do país quanto do mundo em relação ao Afeganistão, faz a ponte necessária para os acontecimentos da época.
Ele questiona as notícias da guerra, as invasões, as prisões e as mudanças radicais em suas vidas, que  vão acontecendo em sincronia com  a realidade de Cabul.
O professor que acredita no potencial da filha e sonha com um futuro brilhante para a menina, aos poucos vê ruir seus ideais e a cidade sob a poeira da destruição.

Na rua de casinhas humildes os vizinhos partilham o dia a dia, comentam sobre a ameaça da guerra e debatem expectativas. 
Horrores acontecem em silencio, amores florescem escondidos, vida e morte caminham juntas.

Em certo momento, o destino une Laila e Mariam e um novo capítulo iniciará. Elas terão que aprender a viver sob o mesmo teto, esposas de um homem duro e desprovido de piedade. Mariam a primeira esposa desprezada é obrigada a conviver com a beleza, juventude e principalmente, a cultura de Laila.

O desenrolar desta segunda parte conta em detalhes o sofrimento imposto pelo Talibã: a cidade massacrada por mísseis,as leis do regime imposto e toda a violência para manter as duras regras. A união pela sobrevivência transformará completamente as duas mulheres. As leis que o Talibã impunha eram seguidas sob pena de severos castigos, que variavam conforme a vontade do algoz,  mas quase sempre terminavam em morte ou mutilação.

Naqueles  dias sombrios muitas mulheres forjaram a coragem e determinação e aprenderam a decidir. E como toda atitude repercute em reação, também arcaram com as conseqüências. Triste enxergar a verdade no entremeio da ficção e os  rostos anônimos que inspiraram o escritor.
São detalhes cruéis  que ainda assombram a humanidade. 

Atravessando os anos setenta até os dias atuais, acompanhamos a trajetória dos personagens e vivenciamos cada vitória, sofremos suas dores e torcemos por um desfecho mais humano.
Para quem vive a leitura com toda a intensidade, A cidade do sol é um daqueles grandes romances  em que o mundo pára e a história de  Laila e Mariam  começa a fazer  parte da nossa rotina. 
Independente de já conhecer mil fatos sobre o assunto, dificilmente sairemos decepcionados deste mergulho.
Giselle Sato
Enviado por Giselle Sato em 11/06/2010
Reeditado em 08/07/2010
Código do texto: T2314173
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