AS DUAS MARIAS



Á direita, para quem olha esse quadro de frente, outra mulher pode ser vista apertando contra os seios quase desnudos o manto inconsútil que o condenado usou até ser despido e cravado na cruz. Bela figura é a dessa mulher! Tão importante na vida desse homem foi ela, que até hoje se discute qual o verdadeiro papel que desempenhou nela. A ser verdade o que agora se anda dizendo a respeito da relação deles, então toda a história do drama que nesse quadro se representa precisaria ser reescrita.
De qualquer modo, se oficialmente dela não se falou mais após a morte dele foi por causa do ciúme e da inveja que os seguidores do condenado tinham dessa mulher. Afinal, misógenos todos, como eram os discípulos desse homem, não há nada de estranho no fato de eles terem procurado afastar da vida dele e da herança que ele deixou as mulheres que fizeram parte da sua extraordinária experiência. Entretanto, uma verdade eles não conseguiram esconder nem refutar: foram elas que o acompanharam até o seu último momento entre os vivos e também o saudaram no primeiro instante da sua propalada epifania.
Tão verdadeiro é o fato que as mulheres lhe foram mais fiéis, que podemos ver nesse quadro a prova definitiva dessa assertiva: além do jovem já citado, nenhum outro discípulo masculino está presente nos momentos finais da sua agonia. Isso porque, desde a noite anterior, quando ele foi preso e levado perante as autoridades, eles estão escondidos, como coelhos assustados, enquanto elas não saíram do seu lado um momento sequer nem demonstraram qualquer receio de vir a sofrer da mesma sorte que o atingiu.
Deixemos para a sensibilidade do leitor o julgamento do que isso significa e voltemos à figura dessa extraordinária mulher que se apresenta em postura tão ousada, em momento e lugar tão incomum. Que não está vestida para o decoro e a gravidade que a cena exige é fácil perceber. Estranho mesmo é que ela se apresente assim em um momento tão crucial. Sua figura contrasta violentamente com as das outras mulheres ali representadas e parece mesmo pertencer a outro tempo. Cabeça des-coberta, com os cabelos longos e negros a cair, revoltos, sobre os ombros, como uma cascata rebelde e sem freios que se precipita de alturas insondáveis, os fartos seios, quase desnudos, a saltar do corpete, e as coxas cujas formas se percebem nas dobras do vestido vaporoso, ela parece uma ousada e desafiadora presença, em local tão impróprio e em hora mais desusada, a lançar um mudo repto ao ambiente que a cerca. Ou, se quisermos ir mais longe nessa visão, diríamos que sua atitude é um marco que divide eras e anuncia mudanças no curso da História. Se a postura dela diante da cruz quer dar-nos recados outros, além do despudor que lhe atribuíram os antigos cronistas, certamente conseguiu, pois o que vemos nela não é a tristeza e a desesperança de uma pessoa que assiste a maior aventura da sua vida terminar em desgraça, mas a sobranceria de uma vitória conquistada, vitória essa que não transparece na representação visual que nos é posta para exame, mas pode ser percebida na serenidade do rosto que ela ostenta, pois se resume na consecu-ção de um objetivo. Por isso sua postura, diríamos, assemelha-se à de um guerreiro vencedor, com os pés sobre um inimigo ven-cido, como nas antigas pinturas murais que no Egito e Babilônia se faziam para registrar para a posteridade as vitórias obtidas pelos seus grandes reis.
E talvez não seja sem razão que ela foi assim representada, porquanto dela, aqueles que não tiverem compromisso com mentiras e dogmas de indiscutível parcialidade, dirão que é exa-tamente isso que ela foi: uma guerreira, que abraçou as doutrinas heterodoxas desse condenado e realmente as compreendeu, ao contrário de muitos que se disseram seus verdadeiros discípulos, mas, por ignorância ou comprometimento com antigas idéias e tradições, a deturparam.
O nome dela também é Maria, como a lourinha da esquerda, já nomeada e reconhecida como sendo a de Betânia, mas esta, por ter nascido na aldeia galiléia de Magdala, ficou conhecida como Magdalena. Mais tarde, alguém viria a recensear-lhe o verdadeiro nome e Mariamne ficamos sabendo que se chamava, e que foi ela uma das mais aguerridas e eficientes propagadoras da doutrina inaugurada por esse condenado.
É morena, como de ordinário são as mulheres nascidas nas terras galiléias. Bonita também deve ser, e de corpo muito bem feito, porquanto os olhos lúgubres dos soldados, dirigidos ora para os seios redondos e fartos, que parecem querer saltar do ousado decote, ora para o contorno das bem torneadas coxas, cujas formas sobressaem-se nas dobras do vestido, não deixam dúvidas sobre o que estão dizendo uns aos outros. “Essa é a mulher do condenado que se disse rei dos judeus. Olhem como é bela. De certo vai precisar de muito consolo.”
Houve quem dissesse que ele a encontrou em condições assaz dramáticas, em pleno julgamento que dela faziam em praça pública por um delito de adultério. O que de certo é também uma deslavada calúnia, porquanto ela nunca foi casada antes e mesmo que fosse uma profissional do amor – circunstância que também nunca se provou –, não se poderia a ela imputar um crime que só é passível de ser cometido por quem é casado ou deve fidelidade a alguém a quem se ligou por livre vontade. A verdade, nunca aceita e reconhecida por quem desse condenado esperava e queria mais do que ele se propôs a ser, é que ela foi a companheira que ele escolheu, entre as muitas mulheres que o acompanhavam e o serviam em sua missão. E amor maior, entre homem e mulher, poucas vezes se viu. Tanto que se disse que ele a amava mais que aos seus discípulos e a beijava na boca muitas vezes, para escândalo deles, que tais posturas tinham como gentias e pecaminosas.
Desta que, mais ousada que as outras, parece estar sofrendo um sofrimento diferente, não nos ocuparemos além do neces-sário. A ela ainda cabe um largo desempenho na continuação da história desse condenado, que não acaba, como já se disse, na sua morte, mas começa de verdade a partir dela. Sua participação na história da vida e na obra desse homem é tão rica, que ela mesma mereceria ser a personagem principal em qualquer romance que se quisesse escrever a respeito. Como não é o escopo da nossa crônica a reportagem dos feitos dessa extraordinária mulher, diremos apenas para informação a quem interessar possa, que foi a ela que o condenado entregou o verdadeiro legado da sua herança, representado por um entendimento novo das verdades mais antigas do mundo. Esse legado, não só por conta do direito positivo lhe caberia, sendo ela sua legítima consorte, mas também em razão do mérito conquistado como discípula, embora – como em todas as sucessões em que muitos são os herdeiros presuntivos – lhe fossem negados tais direitos na par-tilha que se fez depois que ele partiu em definitivo para tomar posse do reino que conquistou pelo mérito que adquiriu no cumprimento da sua missão: um reino no coração e no espírito das pessoas.
Mas como o tempo é o senhor da razão, deixaremos a seu cargo fazer justiça a essa valorosa mulher, e o nosso desejo é que um dia ela seja recomposta nos quinhões que lhe foram u-surpados. A nós, simples cronista de imaginárias relações, a quem não foi atribuída competência para julgar tais questões, só cabe lamentar que a misoginia de uma geração tenha escamoteado a verdade dos fatos, atribuindo-lhe mesmo uma injusta fama de prostituta, profissão que lhe foi dada por alguns cronistas, ou de endemoninhada, roupagem que lhe foi cozida por outros, sem que se dissesse de que fonte proveio essas informações, embora com o que foi dito acima possamos já inferir de onde teriam partido tais calúnias. Ainda bem que para salvaguarda dos direi-tos que lhe cabe, pelo menos um cronista – que de perto afirmou ter visto todas essas coisas e convivido com os personagens em questão – registrou de próprio punho que esta Maria de Magda-la, que abraça o manto do homem crucificado na cruz do meio como se estivesse abraçando a ele próprio, foi sua leal e fiel companheira, que o amou com o amor de esposa e amante; e que ele também a amava, ainda mais do que aos seus próprios discípulos, os quais, por isso mesmo, tinham tanto ciúmes dela que a difamaram o quanto puderam e depois a relegaram a um conveniente ostracismo.
Dito isso, para que se recupere a verdade dos fatos, iremos deixá-la também ao pé da cruz, registrando apenas que ela não chora porque o sentimento que faz verter a lágrima pressupõe a existência de um coração trabalhando com a plena carga dos seus humores, e o dela acabou de perder a sua mais importante função com a morte do seu amado. Dir-se-á mais tarde ( mas esta é informação que não afiançamos como verdadeira, pois que as provas, se existiam, também foram destruídas ou bem ocultadas por quem temia a sua revelação ), que o coração dessa mulher foi recompensado com outro coração, esse o de um menino, ou menina, pois nesse particular não há concordância de informação, que já nesse momento de extrema angústia e tristeza ela leva no ventre. Talvez por isso ela não chore. Antes, o seu olhar parece ser de enlevamento e ternura; e quem tiver a capacidade de enxergar além da mera imagem que lhe é posta diante dos olhos poderá vislumbrar, na mística expressão da sua face, um simulacro daquele sorriso matreiro que sempre se nota no rosto de quem parece encobrir um explosivo segredo. Quando os espíritos despirem as armaduras dos seus dogmas, e a verdadeira história desse drama puder ser revelada, então a realida-de dos fatos será também recuperada. Nesse dia, poderemos ver que há muito mais beleza e novidade na doutrina desse conde-nado do que as que foram divulgadas por aqueles que dela se apoderam e a transformaram num obscuro conjunto de postulados, desenvolvidos somente para defesa dos seus próprios interesses.

A última das mulheres que aparece nesse quadro é a se-nhora que está desmaiada aos pés da cruz. Sustentada por Maria de Betânia e pelo jovem discípulo amado, sua aparência é de quem já esgotou todas as reservas físicas e psíquicas e desfaleceu no momento em que percebeu que tudo estava consumado.
“ É a mãe dele”, dizem os soldados. “Coitada”, murmu-ram, entre si, os expectadores. Heróica, seria mais próprio o adjetivo que se deveria dar a essa mulher que vemos desfalecida entre os braços de Maria de Betânia e do jovem discípulo. Heróica, dizemos, porque suportou estoicamente a brutal cerimônia de escarmento e flagelação praticada com seu filho e não chorou nem carpiu, como outras mulheres que acompanharam o cortejo, que o fizeram mais por hábito do que por pena do condenado.
Seguiu, junto com o povo, a dolorosa procissão que o levou ao monte da execução; viu quando ele foi cravado no macabro poste. Ouviu, consternada e aflita, quando ele pediu ao Deus, pelo qual fazia aquele sacrifício, para perdoar os algozes que o puseram ali para morrer, porque eles não sabiam o que estavam fazendo. Com ternura, escutou quando ele a recomendou aos cuidados do jovem discípulo amado e lhe pediu que fosse uma mãe também para ele; escutou igualmente, sem entender porque, ele se queixar do abandono em que foi deixado naquela hora. Eli, Eli, Lamma sabachtani, foi o que ele disse, e os expectadores que ali estavam, ao pé da cruz, não entendendo bem o sotaque galileu do condenado, julgaram estar ele clamando por Elias, um antigo e conhecido profeta que viveu há mais de oitocentos anos atrás, mas que segundo se disse mais tarde, voltou a andar pela Judéia algum tempo antes desses fatos na pele daquele já citado anacoreta chamado João, O Batista, a anunciar e preparar a missão que o seu filho deveria cumprir. Estranha e trágica coincidência essa, diga-se, porquanto esse precursor, se assim o era, não teve destino melhor que o do seu filho, pois morreu ele de morte igualmente violenta, degolado pelos soldados de Herodes Antipas numa cela da Fortaleza de Maqueronte, cerca de dois anos antes destes fatos que estamos comentando.
Quanto a Maria Mãe, dizíamos, essa admirável mulher assistiu também, sem nada poder fazer, aos insultos e zombarias que os soldados romanos e os esbirros do Sumo Sacerdote fize-ram ao seu indefeso filho. Viu igualmente, com a alma em fran-galhos, um dos verdugos molhar os secos e intumescidos lábios dele com uma esponja ensopada com vinagre; acompanhou, minuto a minuto, a sua agonia, desde a hora terça, quando a cruz foi içada, até a hora nona, quando ele exalou o último suspiro.
É no exato momento em que ele rende o seu espírito que a consciência também a abandona. Parece que seu próprio espírito, por um momento, se descola de seu corpo para percorrer com seu filho os primeiros trechos do caminho que ele começa a trilhar no outro mundo.
Uma estranha escuridão toma conta do local no mesmo instante em que as trevas apagam a luz que mantém acesa a sua mente. Ela escuta, na penumbra que a envolve, as vozes das pes-soas, assustadas e aflitas com as sombras que começam a cobrir a terra, com os trovões que ribombam, com os relâmpagos que começam a cortar os ares, com o prenúncio da terrível tempestade que se avizinha, embora até a poucos instantes nenhuma nuvem negra tivesse sido vista no céu.
Maria Mãe sabe que delira, mas esse delírio lhe faz bem. Estranhamente seu coração está leve. A dor aguda e insuportável que sentia antes, como por milagre, desapareceu. Uma luz atra-vessa as trevas e pousa, como um halo dourado, sobre a cruz onde seu filho já não mais se encontra. Pergunta onde terá ido o seu menino, para onde terão levado o seu corpo? Ela viu que morreu, mas sabe que ele não está morto. Ela o vê empunhando o martelo e o formão em sua oficina em Nazaré, a trabalhar a madeira; ela o vê, menino, correndo atrás das cabras e dos car-neiros pelos outeiros nas cercanias de Belém; ela o vê em meio à turba que grita o seu nome; ela o vê, em pé, sobre a proa de um barco, no lago da Galiléia, onde os cardumes, como golfinhos a seguir um navio, se juntam para acompanhá-lo; ela o vê, em pé sobre uma colina, a falar para uma grande multidão, que depois do discurso o segue por toda parte em que ele vai; ela o vê a beijar Maria de Magdala nos lábios e fica zangada com ele, pois esse não é o costume do seu povo; mas em seguida ri e se conforma, porque ele está amando, é amado e está feliz; e ela chora porque ele está morto; e depois se alegra também, por- que, em seu coração, sabe que ele está vivo.
A copiosa chuva que cai sobre o monte vem tirá-la do seu delírio. Somente as três mulheres que não saíram do seu lado nestes últimos três dias e o jovem discípulo amado, que daí em diante ela chamará de filho, permanecem com ela no local. A turba que acompanhava o macabro espetáculo, desde a noite anterior quando seu filho fora preso, manietado e conduzido perante os sacerdotes primeiro e diante do prefeito romano de-pois, após uma breve, penosa e inútil entrevista com Herodes Antipas, havia se dispersado.
De olhos agora abertos, Maria olha para as cruzes, como que a confirmar se delírio ou realidade fora as visões que tivera. Percebe que nenhum halo de luz cai sobre o madeiro onde o cor-po do seu filho ainda se encontra dependurado. O fulgor dos relâmpagos ilumina o rosto dele, onde o rigor mortis já se espa-lha. Fora apenas um sonho, um delírio, uma turbação da sua sofrida e cansada mente. Tudo ainda é horror e escuridão sobre aquele monte que se assemelha a um crânio humano, mas isso já não lhe causa nenhuma dor, nenhuma angústia, nenhum deses-pero, como antes sentia.
A visão é aterradora e o resultado parece terrível. Mas ela o ouvira claramente dizer, antes de expirar, que tudo estava con-sumado; e isso havia sido dito com a intenção e a certeza de quem parecia saber muito bem o que estava fazendo, e mais que isso, que o resultado que ele buscava era exatamente esse mes-mo.
Coisa estranha, mas isso era o que ela também sentia agora, como se tudo que vivera somente naquele instante fizesse algum sentido. Ela levara muito tempo tentando entender a in-compreensível cinestesia que a dominava toda vez que pensava no seu filho e rememorava os sucessos passados. Desde que ele nascera, fruto de uma relação complicada, dificilmente explicá-vel no tempo e no contexto em que vivia, sua mente perseguia uma explicação para aquele sentimento de angústia e esperança que conviviam em seu coração, sem nunca a ter alcançado. De-pois, com todos os acontecimentos que permearam sua vida, até chegar naquele fatídico instante, tudo fora obscuro, estranho, incoerente.
Um relâmpago rasga o céu e ilumina as trevas que envol-vem a terra. Um prolongado estrondo de trovão ecoa nos ares. As cruzes, firmemente fincadas no solo pedregoso do Gólgota, parecem balançar pela primeira vez. O sangue já coagulado, que brotou das feridas que cobrem o corpo do seu filho, escorre pela madeira e tinge de um rubro pálido as pequenas poças de água que a chuva forma no chão. Depois é levado pela torrente, como tinta sem fixador, que se dissolve com a chuva. Alguém, que parece ser um dos soldados que o cravou ali, se aproxima da cruz e diz: “ verdadeiramente, esse homem deve ser amado pelos deuses, pois nunca vi o céu chorar assim a morte de alguém.”
Ela ouve essa tardia confirmação das suas cismas, vinda de lábios insuspeitos e pela primeira vez, depois de muito tempo, seu coração experimenta uma sensação de paz.


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DO LIVRO O FILHO DO HOMEM- ED. SCORTECCI, SÃO PAULO, ~2010
João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 07/06/2010
Reeditado em 08/06/2010
Código do texto: T2306493
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