O VENDEDOR DE PASSADOS - JOSÉ EDUARDO AGUALUSA
“Um nome pode ser uma condenção. Alguns arrastam o nomeado, como as águas lamacentas de um rio após as grandes chuvadas, e, por mais que este resista, impõem-lhe um destino. Outros, pelo contrário, são como máscaras: escondem, ilumem. A maioria, evidentemente, não tem poder algum. Recordo sem prazer, sem dor também, o meu nome humano. Não lhe sinto a falta. Não era eu.”
O romance O Vendedor de Passados do escritor angolano José Eduardo Agualusa conduz os leitores como um aprazível rio em busca de oceanos, margeando a história e ancorando nos portos reconstruídos da memória e dos enganos. Dois seres, um albino e uma osga (lagartixa), vivem à sombra e compartilham vivências, sonhos e criações. A osga busca a sua pretérita vida humana, vestígios de outra reencarnação, a fim de compreender suas emoções e reconhecer os vestígios literários e a sua aguçada percepção. O albino, Félix Ventura, vende passados para personagens importantes enquanto busca a realização de um presente para si alicerçado nos alfarrábios que lhe serviram de berço.
A relação da osga (Eulalio) com a casa é visceral. A osga percebe sua respiração, penetra-a em busca do útero “O corredor é um túnel fundo, úmido e escuro, que permite o acesso ao quarto de dormir...” A casa é o seu universo possível e seguro, distante dos campos minados de Angola, onde são revelados os segredos e fantasias que criam o presente para os que buscam novos passados. Também é o ambiente protegido para o resgate da vida de Eulálio, um homem comum que viveu quase um século na pele de homem sem se sentir inteiramente humano e que agora se lamenta dos quinze anos com a alma presa ao corpo de lagartixa.
A rotina de Félix Ventura e da osga é rompida com a chegada de um estrangeiro, fotógrafo de guerra, que quer um passado completamente novo. Com o nome recente, José Buchmann, e a fabulosa árvore genealógica, passa a buscar os personagens a fim de confirmar sua existência fictícia.
José Buchmann procura o seu passado criado por Félix Ventura e o encontro com algumas situações surpreendem com a possibilidade da coincidência com o absurdo. A busca de sua suposta mãe, a aquarelista norte-americana Eva Mullher, a narrativa do corredor cheio de espelhos e de sua povoada solidão no apartamento em Nova Iorque, a aquarela encontrada e o anúncio de sua morte na Cidade do Cabo.
“A verdade é uma superstição.”
Félix Ventura, vendedor de passados, apaixona-se por Ângela Lúcia, mulher que gosta de fotogragar nuvens.
A mãe de Eulálio aparece em seus sonhos (memórias da vida humana), fala sobre a realidade e o sonho e aconselha: “Nos livros está tudo o que existe, muitas vezes em cores mais autênticas, e sem a dor verídica de tudo que realmente existe. Entre a vida e os livros, meu filho, escolhe os livros.”
A existência do vendedor de passados e dos inúmeros seres que precisam de uma trajetória para legitimar as máscaras que vestem demonstram como os personagens históricos são imortalizados com as vivências maquiadas, recriando a verdade prosaica numa ficção memorialista. Como no livro de memórias do Ministro (A vida verdadeira de um combatente), escrito pela mão alugada de Félix Ventura, que dá ao homem público um conjunto de fatos notáveis para confirmar o personagem idealizado e contextualizado com as suas pretenções futuras.
A lucidez da osga é admirável: “A única coisa que em mim não muda é o meu passado: a memória do meu passado humano. O passado costuma ser estável. Está sempre lá, belo ou terrível, e lá ficará para sempre.”
Contudo, o aparecimento do mendigo Edmundo Barata dos Reis, comunista assumido, ex-agente e ex-gente nas palavras do próprio, cria novos rumos para a narrativa. Os personagens e seus duplos convergirão para um desfecho inusitado, consagrando a narrativa vertiginosa e poética de José Eduardo Agualusa.