A Cidadania Em Florença e Salamanca
ZERON, Carlos. A Cidadania em Florença e Salamanca______ in PINSK, Jaime. (Org.) História da Cidadania. São Paulo:Contexto, 2003.
No Ocidente as relações político-sociais no período conhecido como medieval era constituída por uma unidade religiosa cristã. Com o advento das cidades-estados italianas a ideia de unidade natural começa a ser questionada, dado o afloramento e intensificação do comércio (atividade que exigia o máximo de liberdade política possível) e da produção intelectual que, no longo período entre o século XIV e XVI, procurava justificar esta liberdade política através do resgate da teoria clássica do Direito, para daí ressurgir o conceito de indivíduo livre em sua cidadania.
Juridicamente, o então chamado Reino Itálico estava submetido ao Sacro Império Romano Germânico, contudo, devido à gradativa emancipação econômica das cidades italianas, o imperador passa a ser uma máquina que legitimava qualquer poder local em troca de dinheiro. Diante da evidente fraqueza do Império, que a partir da expedição de Frederico Barbarosa lutava para impor suas regras ao Reino Itálico, e até mesmo da Igreja, as comunas do Reino Itálico constroem um vasto arsenal ideológico para, juntamente às suas vitórias no campo de batalha, garantir as suas vias comercias e reivindicar sua “liberdade”, ou seja, a implantação de um governo autônomo e republicano.
O grande prodígio deste fenômeno político, econômico e cultural foi a cidade de Florença. Sua principal bagagem ideológica que justificava esta “liberdade” e a cidadania de seus integrantes era o Direito Romano. Este, por sua vez, admitia que o indivíduo livre é aquele que possui cidadania, ser cidadão implicava ter direitos e deveres para com o Estado, porém, ser cidadão requer possuir uma família natural da cidade a qual se reside. Logo, diferente do que afirmavam alguns intelectuais florentinos, Florença seguia o mesmo padrão oligárquico romano, que fazia a diferença entre o cidadão romano, aquele que tinha todos os direitos; o semicidadão, aquele que tinha direitos restritos; e aqueles que estão fora do Direito, em especial o direito eleitoral, ou seja, a plebe, os libertos e os estrangeiros. Em síntese, a “liberdade” da “República Florentina” foi restrita a poucos indivíduos dado que pouquíssimos deles eram qualificados a participar da vida política.
Contudo, a não participação política, não isentava os excluídos da possibilidade de reconhecerem sua individualidade. Segundo Burckhardt, antes do Renascimento – opinião compartilhada por Carlos Zeron no texto o qual está sendo analisado – “o homem só estava consciente de si próprio como membro de um povo, raça ou família”. Ele se identificava através de uma categoria geral. Ao surgir o Estado republicano despótico, em especial o período da família Médici, é estimulada a individualidade não só do tirano, mas também de seus protegidos. Assim, mesmo não sendo um indivíduo livre, no sentido legal do Direito, os excluídos poderiam reconhecer-se como indivíduos no sentido de ser um dos primeiros a ter seus serviços requisitados.
Um dos maiores estudiosos a contestar a teoria do poder universal, tanto do imperador quanto da Igreja, foi o dominicano Francisco de Vitoria, discípulo de Erasmo de Roterdã e professor da Universidade de Salamanca. Vitoria acreditava, assim como Dante Alighieri e Tomás de Aquino, que o Estado autônomo origina-se do direito natural do homem e não da ordem divina. Segundo ele apenas a solidariedade social faz do homem um ser forte, portanto, o Estado e o poder público não são invenções humanas, mas sim produtos sugeridos pela natureza em prol da conservação humana, ou seja, o bem comum, a res publica (a coisa pública).
Com base nesta teoria do direito natural do homem, Vitoria, em Relectio de Indis, irá contestar a soberania dos reis católicos e suas práticas de colonização para com os ameríndios. Segundo Vitoria, os índios possuem pleno direito às terras e a se seus bens, pois eles são homens livres dotados de livre-arbítrio e, por isso, não devem ser sujeitos à conversão pela força. Todavia, Vitoria admitia a existência de um poder universal da Igreja, no entanto, apenas de cunho religioso. Sua intervenção só deveria ser legítima quando relativa ao governo das almas. E após ser feito a livre conversão, os ameríndios deixariam de ser nação e passariam a serem indivíduos protegidos pela coroa, justificando, assim, a exploração dos bens naturais e as guerras às tribos que insistissem em tornar os conversos à “idolatria”.
De fato, tanto na Roma Antiga como em Florença a República foi excludente. Em prol da ordem e do bem comum, justificava-se a conservação de uma oligarquia a qual se dispunha a privilegiar os cidadãos e, na medida do possível, adotar políticas públicas que apaziguasse as massas. Contudo, neste período, o conceito moderno de cidadania estava se constituindo, pois o fato de a ideia clássica de cidadania ter sido retomada, não significa que a aplicação do mesmo tenha funcionado igual como ocorreu outrora, as circunstâncias eram outras – e também seus resultados. Uma ambiciosa burguesia opunha-se a uma velha nobreza e, gradativamente, ia ganhando força política, exigindo liberdade. Está liberdade não só proporcionará uma evolução no exercício do comércio, como também permitirá o desenvolvimento do indivíduo no seio de sua esfera de atuação, para uns, e no seio de sua esfera de exploração, para outros.