O LIVRO DOS SONHOS - FEDERICO FELLINI

Federico Fellini foi aconselhado a anotar os seus sonhos pelo psicanalista junguiano Ernest Bernhard. Durante três décadas (de novembro de 1960 a agosto de 1990), ele os escreveu e ilustrou com a mesma dedicação com que dirigia seus filmes. Narrações oníricas que revelam lúdicas percepções e nos envolvem nas emoções do homem criativo que revolucionou o cinema italiano com roteiros permeados de fantasias e realidades.

Os sonhos, reunidos em dois diários e em algumas folhas dispersas, foram conservados no cofre de um banco pelos herdeiros de Fellini até 2006, quando a Fundação Federico Fellini de Rimini adquiriu os direitos sobre a obra e a publicou em 2007 em um único livro intitulado O livro dos sonhos (Il libro dei sogni).

Os sonhos ou “trabalhos noturnos” são revelações surpreendentes do homem que se despe dos interditos cotidianos e mergulha no oceano inconsciente repleto de erotismo, desastres, desejos, medos, amores, ansiedades, ausências, remorsos e outras emoções que tanto marcaram a sua vida como a criação de seus personagens.

Os sonhos sempre exerceram um papel fundamental na vida do cineasta que com seis anos já estava convencido de que havia duas vidas: uma com os olhos abertos e outra com os olhos fechados. O cinema já era uma presença para o menino que batizou as paredes de seu quarto com o nome dos cinemas de Rimini: Fulgor, Savoia, Opera Nazionale Balilla e Sultano, e acreditava que poderia mudar os enredos noturnos de acordo com o seu posicionamento no leito.

As mulheres fellinianas, corpulentas e lascivas, dominam os seus sonhos como as personagens de Cidade das mulheres. Um erotismo descontrolado e absurdo com desconhecidas, divas do cinema e mulheres identificadas apenas pela letra inicial. Anita Ekberg (Anitona) e Sandra Milo (Sandrocchia) ilustram o universo onírico como surgem no grande écran.

Contudo, é Giulietta Masina, sua esposa por cinqüenta anos e protagonista de alguns de seus filmes, que se destaca como força geradora de sentimentos contraditórios entremeados pelo remorso e culpa. Muitas vezes surge como Gelsomina (protagonista humilde e ingênua de A estrada da vida), outras como uma presença confundida com a mãe de Fellini. Giulietta é uma figura frágil e terna que assume o destino de porto seguro para o homem sedutor após as tempestuosas aventuras extraconjugais. Uma mulher de proporções modestas que inspira proteção – o oposto das musas sensuais.

Muitos dos sonhos com desastres são metáforas da solidão, do medo e da insegurança do artista. Alguns sonhos são elaborações das relações conflituosas com os produtores (Dino De Laurentiis, Carlo Ponti, Alberto Grimaldi, Andrea e Angelo Rizzoli, Franco Cristaldi) como podemos perceber nas próprias anotações de Fellini.

Outros demonstram a cumplicidade com seus colaboradores, entre eles, Ennio Flaiano, Liliana Berti e Nino Rota, e os vínculos com Roberto Rossellini, Vittorio de Sica, Pier Paolo Pasolini, Alberto Sordi, Aldo Fabrizi, Marcello Mastroiani.

Encontros impossíveis com personalidades marcantes como Jung e Picasso são percebidos como incentivos para dar continuidade a projetos ou para revê-los. Assim, presenciamos o almoço de Fellini com Jung e Liliana Berti numa praça de um lugarejo na Liguria, quando os três comem o mesmo espaguete. Ou ainda quando Fellini passa a noite inteira ouvindo os conselhos de Picasso.

Os sonhos com seus pais e irmãos também são recorrentes e tentam resgatar interrupções infantis, situações que permaneceram em suspenso no esquecimento. Muitas anotações são dedicadas ao seu irmão Riccardo Fellini que desejava se firmar como diretor.

Uma das narrações oníricas mais expressiva sobre o relacionamento de Fellini com a Igreja é o sonho de 15/04/1962 com o então arcebispo de Milão, cardeal Montini, que perseguiu o filme La dolce vita e que em 1962 foi eleito sucessor do Pontífice João XXIII, tomando o nome de Papa Paulo VI:

Num ambiente sombrio iluminado por velas, o cardeal Montini fixa a escuridão com seus olhos de gelo. Decido afrontá-lo.

- Eminência, tem confiança em mim?

-Nenhuma! - responde-me seco como uma chicotada. É claro que nunca acreditou sequer por um momento na mensagem cristã que muitos críticos, estudiosos e sacerdotes encontraram nos meus filmes.

-Crê que eu seja religioso? – pergunto.

- Oh! Isto sim! – responde súbito – Está escrito em sua face que é religioso.

- Seus olhos são estupendos, cardeal! – digo um pouco bajulador.

Agora estamos em casa. Estão o meu pai e a minha mãe, parece que o cardeal Montini esquecera um objeto e o esperamos porque a qualquer momento virá pegá-lo.

As seqüências oníricas não obedecem a roteiros, assim observamos no mesmo sonho duas situações distintas unidas com o mesmo sentimento: o confronto entre Fellini e o cardeal que desencadeou a resistência entre os católicos ao filme La dolce vita e a expectativa de encontrá-lo diante dos seus pais católicos.

Além de sonhos, o diário nos revela imagens hipnagógicas, o misticismo e a busca da verdade oculta. Entre as interpretações do horóscopo I Ching e as previsões de videntes e magos, destaca-se o guru Gustavo Adolfo Rol que alguns autores responsabilizam pela não realização do filme Il viaggio di G. Mastorna, pois, profetizou que Fellini não sobreviveria às filmagens.

O roteiro trata da longa viagem de Giuseppe Mastorna depois de um acidente aéreo sem sobreviventes. O protagonista, ignorando a própria morte, permanece com a mesma ambigüidade e fragilidade com que vivia. Fellini idealizou o roteiro após o falecimento do seu psicanalista Bernhard, talvez como uma forma de entender o que está além, mas durante décadas o projeto do filme permaneceu entre o desejo e o medo de realização.

Nos sonhos de Fellini podemos observar a transformação, o amadurecimento e o envelhecimento do homem e do artista. Na última década, os sonhos são escassos e as páginas são preenchidas com linhas desencantadas, confissões nostálgicas de um cineasta diante da nova realidade da televisão, argumento do filme Ginger & Fred.

Neste período aumentam as indecisões, os períodos supersticiosos, o fatalismo e o descontentamento. Insônia e indutores de sono – lentamente se apagam as luzes nas projeções inconscientes junto às sombras reais da Via Veneto, cenário romano imortalizado no filme La dolce vita.

Segundo Tullio Kezich, biógrafo de Fellini, “O Livro é uma proposta de circunavegação do mistério, um ilimitado armazém de confissões, hipóteses surreais, fantasias irrealizáveis e previsões”.

Ao final da leitura de O Livro dos Sonhos, compreendemos o monstro marinho que encerra La dolce vita, o louco solitário que grita por uma mulher em cima de uma árvore em Amarcord (Io mi ricordo), o harém do protagonista de Oito e meio ou a presença do rinoceronte no desfecho do filme E la nave va, mas resta a dúvida se o mundo de fantasias e realidades fellinianas foi revelado ou se encontramos um universo ainda mais misterioso.