O mito da serpente
A Cabala explica que, da mesma forma que Abel e Cain são a mesma pessoa, símbolos que são da dupla natureza humana. Jeová e a Serpente tentadora também são a mesma entidade em sua dupla forma.A Cabala é uma doutrina essencialmente dualística que vê o bem e o mal como forças antagônicas e contrárias, mas imprescindíveis uma à outra, o que quer dizer que uma não existiria sem a outra. Doutra forma, o demônio é o lado negro de Deus, ou seja, Demos est Deus Inversus, fórmula freqüentemente invocada por algumas seitas gnósticas.
E Adão pôs a culpa na mulher pelo pecado que cometeu, (a aquisição do conhecimento),que por sua vez, se justificou com a sedução da serpente. E, em conseqüência, o casal terrestre foi condenado a “ganhar o pão de cada dia com o suor do rosto” e a mulher a “sofrer dores por ocasião dos seus partos.” (1)
Mito grandioso, mas freqüentemente (e injustificadamente) invocado para justificar as mais espúrias concepções sobre sexo e supremacia do homem sobre a mulher, essa descrição do “pecado original” nada mais é do que uma inspiração magistral do cronista bíblico para explicar como o homem teve o seu primeiro “insight”, isto é, como ele deu o primeiro passo no caminho da reflexão.
Evidentemente, tal passo só poderia vir através da “sedução da serpente”, pois esse é o caminho que a energia (a serpente kundalini) percorre no corpo humano, desde os centros de manifestação prânica do indivíduo (a mente) até sua consciência externa (nervos e músculos), resultando nos atos que ele pratica no mundo dos fenômenos visíveis.
As tradições envolvendo a iconografia da serpente como associação necessária para o aparecimento dos fenômenos mentais estão presentes na mitologia de todos os povos. E sua associação com a atividade sexual não é menos invocada em todas essas tradições. Verluis, explicando a relação existente entre os mistérios da iniciação egípcia e as tradições da cultura vedanta, escreve: “Prosseguindo no conjunto, no centro-terra chamado o Muladhara-chackra, a Kundalini Shakti se manifesta como uma serpente enrodilhada em torno de um falo auto-produzido (Svayaambhulinga); com efeito, a palavra kundali, significa “enrodilhado” ou in potentia, dizendo-se que ela produz o mundo fenomenal por meio do “velamento”(maya) da pura consciência de si mesma como Consciência “brotando em espiral”, espontaneamente, criando assim os “Ovos de Brahma” (Brahmanda) ao dar uma volta sobre si mesma para formar uma espiral ou laço.No simbolismo grego, derivado do egípcio, essa forma era denominada “Ovo Órfico”. Quando ela se volta sobre si mesma pela terceira vez, diz-se que é formada a estrutura piramidal (Srngataka). Tal como Isis, ela é um receptáculo daquela torrente continua de ambrósia que flui da Bemaventurança Eterna” (2)
A interpretação do simbolismo da serpente nos parece mais apropriada na obra de Madame Blavatsky. Ali ela aparece como centração de energia, como uma força que alimenta a si mesma promovendo a elevação espiritual do homem através da atividade reflexiva, formando, individualmente o espírito humano, e coletivamente uma camada energética que envolve a própria terra, semelhante à que Teilhard de Chardin chama de Noosfera. Essa camada, que constitui a soma das reflexões produzidas na humanidade, pode ser associada à chamada “consciência coletiva” de que falava Jung, pois fornece os arquétipos que alimentam o mundo sutil do espírito humano. (3)
A associação da serpente com o demônio e suas tentativas de desencaminhar o homem foi uma intuição dos teólogos fundamentalistas cristãos, que em seu cego dogmatismo, não conseguiam admitir a presença de qualquer influência pagã na doutrina de Cristo, como se ela não fosse o desenvolvimento de uma sabedoria que já tinha sido pregada anteriormente por Zoroastro, Buda, os essênios e outros fundadores de religiões.
Com isso baniram do Cristianismo algumas de suas concepções mais originais e no lugar introduziram a estranha idéia do pecado original. Essa idéia sugere que todo homem nasce pecador pelo simples motivo de ser originário de um ato sexual, que, segundo a doutrina por eles desenvolvida, foi o pecado cometido por Adão e Eva.
Essa é, sem dúvida, uma das concepções mais estapafúrdias extraídas desse mito grandioso. A serpente sempre foi um símbolo dos mais significativos nas antigas culturas. No Egito ela aparece em conexão com as dificuldades que a alma do morto deveria enfrentar para atravessar a Tuat e entrar no reino de Rá, mas também como símbolo do poder, representada pelas uraeus, serpentes que se alimentavam de si mesmas, significando que o cosmo gera a própria energia e com ela constantemente se renova.
Nas antigas tradições, a serpente, tanto quanto o dragão, são símbolos da sabedoria e do conhecimento oculto. Na iconografia chinesa, temos o Fohi, dragão celeste que é composto de doze rostos e corpos de dragão, simbolizando os doze signos do Zodíaco. Segundo a lenda, esse dragão de doze rostos seriam os criadores dos homens terrestres.
Os cultos ofitas
O culto á serpente também prosperou entre os gregos. Nos Mistérios Dionisíacos, ela era representativa do poder regenerador da terra, simbolizada pelas suas trocas constantes de pele, renovando-se periodicamente. Esse poder regenerador do réptil assumia uma conotação de potência, que logo foi associada ao vigor sexual.
Clemente de Alexandria, teólogo fundamentalista cristão, fala do simbolismo fálico da serpente ao descrever as obscenidades praticantes por cultos ofistas do seu tempo. Segundo aquele filósofo, os iniciados nos Mistérios de Démeter simulavam contatos sexuais com aquele réptil para simbolizar sua união com Zeus.(4)
Foram os gnósticos, no entanto, que procuraram harmonizar as duas formas de interpretação do simbolismo da serpente, desenvolvendo a idéia de uma serpente mística que representava tanto o tempo infinito que se escorre e se encerra em si mesmo, quanto às trevas que se seguem ao dia e recomeçam sem nunca terminar.
Esse simbolismo era representado pelo ícone de uma serpente que morde a própria cauda, á semelhança da uraeus egípcia. Esse símbolo era chamado de Ouroboros. Mais tarde os alquimistas adotaram a Ouroboros como símbolo da dissolução da matéria, representando os seus múltiplos estágios de transformação da matéria, sem nunca desaparecer do universo das realidades materiais.
A esse respeito ensina ainda a Doutrina Secreta: “como símbolos do Ser Imortal, a árvore e a serpente eram imagens divinas. A árvore era representada invertida e suas raízes nasciam do céu (...). A serpente sempre foi o símbolo da renovação consecutiva, da imortalidade e do tempo. Como símbolo , tinha tantos aspectos e significados ocultos quanto a Árvore da Vida com a qual estava ligada de modo emblemático e quase indissolúvel. (...) A Árvore da Vida, aliás, é uma serpente que se eleva (...) (5)
Assim, podemos dizer que os cultos ofitas estão relacionados com o inconsciente humano e representam a fase do réptil, que segundo reconhece a moderna antropologia psicológica, foi a primeira fase da mente humana a se desenvolver na terra.
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Notas
(1) Gênesis 1:5
(2) Arthur Verluis- Os Mistérios Egipcios, Círculo do Livro, S.Paulo, 1978
(3) Helena P. Blavastsky- Síntese da Doutrina Secreta, Ed. Pensamento, S.Paulo, 2002
- Teilhard de Chardin- O Fenômeno Humano, Ed.Cultrix- S.Paulo, 1985
4- Sarane Alexandrian- História da Filosofia Oculta, Ed. Pensamento, S. Paulo, 1987
5- Helena P. Blavastsky ,op citado.
´RESENHA DO CAPÍTULO XX DO LIVRO "CONSTRUTORES DO UNIVERSO, NO PRELO.
A Cabala explica que, da mesma forma que Abel e Cain são a mesma pessoa, símbolos que são da dupla natureza humana. Jeová e a Serpente tentadora também são a mesma entidade em sua dupla forma.A Cabala é uma doutrina essencialmente dualística que vê o bem e o mal como forças antagônicas e contrárias, mas imprescindíveis uma à outra, o que quer dizer que uma não existiria sem a outra. Doutra forma, o demônio é o lado negro de Deus, ou seja, Demos est Deus Inversus, fórmula freqüentemente invocada por algumas seitas gnósticas.
E Adão pôs a culpa na mulher pelo pecado que cometeu, (a aquisição do conhecimento),que por sua vez, se justificou com a sedução da serpente. E, em conseqüência, o casal terrestre foi condenado a “ganhar o pão de cada dia com o suor do rosto” e a mulher a “sofrer dores por ocasião dos seus partos.” (1)
Mito grandioso, mas freqüentemente (e injustificadamente) invocado para justificar as mais espúrias concepções sobre sexo e supremacia do homem sobre a mulher, essa descrição do “pecado original” nada mais é do que uma inspiração magistral do cronista bíblico para explicar como o homem teve o seu primeiro “insight”, isto é, como ele deu o primeiro passo no caminho da reflexão.
Evidentemente, tal passo só poderia vir através da “sedução da serpente”, pois esse é o caminho que a energia (a serpente kundalini) percorre no corpo humano, desde os centros de manifestação prânica do indivíduo (a mente) até sua consciência externa (nervos e músculos), resultando nos atos que ele pratica no mundo dos fenômenos visíveis.
As tradições envolvendo a iconografia da serpente como associação necessária para o aparecimento dos fenômenos mentais estão presentes na mitologia de todos os povos. E sua associação com a atividade sexual não é menos invocada em todas essas tradições. Verluis, explicando a relação existente entre os mistérios da iniciação egípcia e as tradições da cultura vedanta, escreve: “Prosseguindo no conjunto, no centro-terra chamado o Muladhara-chackra, a Kundalini Shakti se manifesta como uma serpente enrodilhada em torno de um falo auto-produzido (Svayaambhulinga); com efeito, a palavra kundali, significa “enrodilhado” ou in potentia, dizendo-se que ela produz o mundo fenomenal por meio do “velamento”(maya) da pura consciência de si mesma como Consciência “brotando em espiral”, espontaneamente, criando assim os “Ovos de Brahma” (Brahmanda) ao dar uma volta sobre si mesma para formar uma espiral ou laço.No simbolismo grego, derivado do egípcio, essa forma era denominada “Ovo Órfico”. Quando ela se volta sobre si mesma pela terceira vez, diz-se que é formada a estrutura piramidal (Srngataka). Tal como Isis, ela é um receptáculo daquela torrente continua de ambrósia que flui da Bemaventurança Eterna” (2)
A interpretação do simbolismo da serpente nos parece mais apropriada na obra de Madame Blavatsky. Ali ela aparece como centração de energia, como uma força que alimenta a si mesma promovendo a elevação espiritual do homem através da atividade reflexiva, formando, individualmente o espírito humano, e coletivamente uma camada energética que envolve a própria terra, semelhante à que Teilhard de Chardin chama de Noosfera. Essa camada, que constitui a soma das reflexões produzidas na humanidade, pode ser associada à chamada “consciência coletiva” de que falava Jung, pois fornece os arquétipos que alimentam o mundo sutil do espírito humano. (3)
A associação da serpente com o demônio e suas tentativas de desencaminhar o homem foi uma intuição dos teólogos fundamentalistas cristãos, que em seu cego dogmatismo, não conseguiam admitir a presença de qualquer influência pagã na doutrina de Cristo, como se ela não fosse o desenvolvimento de uma sabedoria que já tinha sido pregada anteriormente por Zoroastro, Buda, os essênios e outros fundadores de religiões.
Com isso baniram do Cristianismo algumas de suas concepções mais originais e no lugar introduziram a estranha idéia do pecado original. Essa idéia sugere que todo homem nasce pecador pelo simples motivo de ser originário de um ato sexual, que, segundo a doutrina por eles desenvolvida, foi o pecado cometido por Adão e Eva.
Essa é, sem dúvida, uma das concepções mais estapafúrdias extraídas desse mito grandioso. A serpente sempre foi um símbolo dos mais significativos nas antigas culturas. No Egito ela aparece em conexão com as dificuldades que a alma do morto deveria enfrentar para atravessar a Tuat e entrar no reino de Rá, mas também como símbolo do poder, representada pelas uraeus, serpentes que se alimentavam de si mesmas, significando que o cosmo gera a própria energia e com ela constantemente se renova.
Nas antigas tradições, a serpente, tanto quanto o dragão, são símbolos da sabedoria e do conhecimento oculto. Na iconografia chinesa, temos o Fohi, dragão celeste que é composto de doze rostos e corpos de dragão, simbolizando os doze signos do Zodíaco. Segundo a lenda, esse dragão de doze rostos seriam os criadores dos homens terrestres.
Os cultos ofitas
O culto á serpente também prosperou entre os gregos. Nos Mistérios Dionisíacos, ela era representativa do poder regenerador da terra, simbolizada pelas suas trocas constantes de pele, renovando-se periodicamente. Esse poder regenerador do réptil assumia uma conotação de potência, que logo foi associada ao vigor sexual.
Clemente de Alexandria, teólogo fundamentalista cristão, fala do simbolismo fálico da serpente ao descrever as obscenidades praticantes por cultos ofistas do seu tempo. Segundo aquele filósofo, os iniciados nos Mistérios de Démeter simulavam contatos sexuais com aquele réptil para simbolizar sua união com Zeus.(4)
Foram os gnósticos, no entanto, que procuraram harmonizar as duas formas de interpretação do simbolismo da serpente, desenvolvendo a idéia de uma serpente mística que representava tanto o tempo infinito que se escorre e se encerra em si mesmo, quanto às trevas que se seguem ao dia e recomeçam sem nunca terminar.
Esse simbolismo era representado pelo ícone de uma serpente que morde a própria cauda, á semelhança da uraeus egípcia. Esse símbolo era chamado de Ouroboros. Mais tarde os alquimistas adotaram a Ouroboros como símbolo da dissolução da matéria, representando os seus múltiplos estágios de transformação da matéria, sem nunca desaparecer do universo das realidades materiais.
A esse respeito ensina ainda a Doutrina Secreta: “como símbolos do Ser Imortal, a árvore e a serpente eram imagens divinas. A árvore era representada invertida e suas raízes nasciam do céu (...). A serpente sempre foi o símbolo da renovação consecutiva, da imortalidade e do tempo. Como símbolo , tinha tantos aspectos e significados ocultos quanto a Árvore da Vida com a qual estava ligada de modo emblemático e quase indissolúvel. (...) A Árvore da Vida, aliás, é uma serpente que se eleva (...) (5)
Assim, podemos dizer que os cultos ofitas estão relacionados com o inconsciente humano e representam a fase do réptil, que segundo reconhece a moderna antropologia psicológica, foi a primeira fase da mente humana a se desenvolver na terra.
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Notas
(1) Gênesis 1:5
(2) Arthur Verluis- Os Mistérios Egipcios, Círculo do Livro, S.Paulo, 1978
(3) Helena P. Blavastsky- Síntese da Doutrina Secreta, Ed. Pensamento, S.Paulo, 2002
- Teilhard de Chardin- O Fenômeno Humano, Ed.Cultrix- S.Paulo, 1985
4- Sarane Alexandrian- História da Filosofia Oculta, Ed. Pensamento, S. Paulo, 1987
5- Helena P. Blavastsky ,op citado.
´RESENHA DO CAPÍTULO XX DO LIVRO "CONSTRUTORES DO UNIVERSO, NO PRELO.