Quando o Mar chamou Alayda

     
     Em sua casa, na praia ao sul de Maremontes, Alayda cantava, tocando seu piano de forma exuberante. Como cantora e pianista, era soberba, magistral.

     
Era poetisa, também.  E pintora.  E amante dos prazeres proibidos do sexo.  Vivia para a arte e para a volúpia.

     No auge de sua loucura erótica, levou um pobre poeta do interior de Maremontes, Rúbio Perez, a ficar escravo de seus beijos ardentes.

     Mas a fome de prazeres pecaminosos levara Alayda a trair o ingênuo Rúbio com um rude e sensual pescador de nome Antero.  Foi uma
paixão efêmera como um temporal de verão.

     Não houvera amor, apenas desejos fortuitos de lascívia e lubricidade.

     Desgostoso ao saber da traição de Alayda, o tristonho Rúbio atirou-se dos rochedos, precipitando-se ao mar furioso e profundo de Maremontes. Morreu no mar, como convém aos poetas fracassados nas lides do amor.

     Alayda, ao saber do acontecido, ficou deprimida. Passou a beber. Lia os versos de Rúbio todas as noites, em voz alta, sob o olhar desconfiado da criadagem. Olhava para o mar bravio, cintilando com as luzes da grande lua cheia refletida em sua superfície rugosa.

     Pouco a pouco ela foi enlouquecendo, madrugadas inteiras musicando ao piano os sonetos de amor de Rúbio, com intervalos onde bebia vinho para esquecer seu remorso atroz e contumaz.

     O arrependimento por ter magoado e traído o pobre Rúbio era como um punhal de fogo em seu peito. Ela queria morrer, morrer e mais nada.

     Até que, com as dores da alma, vieram os primeiros lampejos negros de loucura. A dor do pecado a consumia como uma chama selvagem, queimando-lhe a alma toda. E essa dor refletira-se em seu corpo; outrora ela fora bela e formosa, mas agora as olheiras, as rugas, a vida desregrada em loucuras de sexo pecaminoso com outros pescadores, tudo a tornava feia e repulsiva como uma rameira de pior jaez.

     Numa madrugada fria e cinzenta como uma tumba negra do Inferno, ela ouviu aquele chamado distante, parecendo vindo do mar, parecendo ser o próprio mar ou uma entidade humana acrescentada ao mesmo...

     - Alayda!... Alayda!... Alayda, querida!... Meu amor!...

     E foram noites e noites frias onde o mar parecia chamar Alayda, enlouquecida, bêbada, arrependida.  Ela não mais dormia, a vida tornara-se um fardo insuportável, uma prisão irremediável, um veneno lento de efeitos pungentes.

     Certa noite em que as brumas densas envolviam a praia como que fantasmas oriundos das fossas negras do Inferno, Alayda buscou aquela voz gutural e profunda, proveniente do mar revoltoso da cidade costeira de Maremontes.

     Deixando marcas de seus pés na areia branca, Alayda, com seu longo e sensual vestido branco e seus cabelos dourados e desgrenhados balançando ao sabor da pequena brisa que também fazia rodopiar lentamente as névoas, foi caminhando, como que indo ao encontro da estranha voz que vinha do mar, a voz que, agora, ela percebia, tinha um timbre familiar, fúnebre; lembrava, vagamente, a doce voz de Rúbio, o poeta fracassado na vida e no amor.

     - Alayda!... Alayda!... Alayda, meu amor!... Venha!
Venha, Alaydaaaaa! Venha morrercomigo, Alaydaaaa!...

     E Alayda, tremendo defrio, o juízo perdido para sempre, caminhou lentamente entre as sombras da noite, caminhou para o mar, adentrando-o e desaparecendo em suas águas gélidas e turbulentas.

     E foi assim que Alayda sumiu nas águas do mar de Maremontes, naquela noite sombria, onde as névoas bailavam ao luar. O mar chamara Alayda para a morte

 
                                   * * *

     Pela manhã, a criadagem da casa sentiu a falta de Alayda. Ela costumava tocar piano todas as manhãs. Num instante todos sabiam do desaparecimento de Alayda.

     Os pescadores, entre eles o rude Antero, ex-amante de Alayda, viram as pegadas na areia. Antero sabia: aquelas marcas delicadas de um pequeno pé, só podiam ser de Alayda; além disso, ainda pairava no ar aquele perfume que só ela usava, um perfume de amor selvagem e libidinoso.

     Não havia dúvida para o povo de Maremontes, ela morrera no mar. Suicidara-se. Morrera. Como morrem todos aqueles que amam a poesia tristonha do amor e os poetas fracassados nesta vida estranha e ruim. 
 
                                     &&&   Fim   &&&


 
     Peculiaridades negativas:
     (ocorrências verificadas na superfície do texto)
a) 
substantivo próprio Alayda:
    23 vezes
  
b) verbo ser:
Como cantora e pianista, era soberba, magistral.
Era poetisa, também.
Foi uma paixão efêmera como um temporal de verão.
Pouco a pouco ela foi enlouquecendo
era como um punhal de fogo em seu peito
outrora ela fora bela e formosa
E foram noites e noites frias
foi caminhando
E foi assim que Alayda sumiu nas águas do mar
  
c) adjetivo estranha:
estranha
estranha
  
d) adjetivo sombria:
sombria
sombrias
  
e) substantivo piano:
tocando seu piano de forma exuberante
Como cantora e pianista, era soberba, magistral.
musicando ao piano os sonetos de amor de Rúbio
Ela costumava tocar piano todas as manhãs.
  
f) substantivo prazer:
E amante dos prazeres proibidos do sexo.
Mas a fome de prazeres pecaminosos levara Alayda a trair o ingênuo Rúbio.
  
g) substantivo mar:
    13 vezes
 
h) verbo morrer:
     8 vezes
 
i) lugares-comuns:
beijos ardentes
fardo insuportável
madrugada fria e cinzenta
voz gutural
noites e noites frias

paixão efêmera
tremendo de frio

j) dois sinônimos contíguos e semelhante valor semântico:
lascívia
lubricidade

k) estruturas sintáticas redundantes:
Morreu no mar, como convém aos poetas fracassados nas lides do amor.
Rúbio, o poeta fracassado na vida e no amor.
os poetas fracassados nesta vida  


 
                     Virtudes do texto
a) comparação original ("punhal de fogo"):
era como um punhal de fogo em seu peito

b) assonância (repetição cíclica de sons vocálicos semelhantes):
     Já no título (
"Quando o Mar chamou Alayda" ), constatamos a presença contínua do fonema "a", que possibilita a percepção de uma beleza extra.

c) aliteração (figura de linguagem que privilegia a reprodução de idênticos sons consonantais) - ocorre ainda aí uma discreta (porém melíflua) aliteração
- no caso, a letra "m": Mar chamou.
     
d) regência de precipitar(-se):
“Rúbio atirou-se dos rochedos, precipitando-se ao mar.”
 
     Não existe a regência “precipitar-se a”, conforme verificamos no Aurélio e no Houaiss.  A regência desse verbo abrange, segundo eles, as seguintes preposições:
De:  
Precipitou-se do telhado, fugindo dos ratos furiosos.
Em: Precipitou-se nas águas revoltas.
         “Precipitou-se ela mesma na miséria.” (sentido figurado) (Houaiss)
Com: “Os acontecimentos precipitaram-se, com as ocorrências políticas.” (Aurélio)
Contra: O boi precipitou-se contra a cerca de arame farpado.
Para: Precipitou-se para fora da sala em chamas. 
 
     Atuando como transitivo direto, citamos:  
Aquele gesto precipitou os acontecimentos.
 
     E atuando como intransitivo e em sentido figurado:
Precipitou-se e não foi feliz.
Os corredores precipitaram-se uns após os outros.
 
     Todavia, não vemos a menor oposição gramatical quanto ao encaixe (bem oportuno, aliás) da preposição “a” na oração citada e, em consequência, no corpus da própria Língua Portuguesa.  (Isto numa perspectiva sincrônica, e partindo da lógica do léxico, perpetuamente auto-renovante.)   
  

e) Narrador.  Personagens
     O narrador pode ser, segundo Santos & Gomes (1):
"– Implícito (pressuposto pelo texto, em terceira pessoa)
– Explícito (diz eu, em primeira pessoa)
– Participante da história (como personagem, ser o protagonista, adjuvante ou testemunha)
– Não participante da história (não toma parte dos acontecimentos, apenas narra a história)."

     No caso, o narrador é implícito, onisciente (sabe de tudo e tudo conta - um tudo evidentemente limitado, porque dentro das fronteiras formais do gênero narrativo "conto", que não comporta digressões, estudos de caracteres, reflexões genéricas...).
      
     Os personagens injustiçados pelos homens ou perseguidos pelo destino (ou ambas as coisas) conseguem a nossa imediata simpatia.  Essa identificação instintiva ocorre nos livros, de onde saltam envoltos pelo nosso prazer, nosso ódio, nossa dor ou nossa alegria.
     A existência de alguns personagens bons no leito narrativo ameniza a secura, o sarcasmo, o desprezo e os maus tratos da habitual legião de seres vis. 
      
  
     “Ela queria morrer, morrer e mais nada.”
     Frase de efeito catalisante, enfático, transmitindo com certeza a decisão da personagem.  A reiteração do verbo, o impacto final e o efeito real são auxiliados pelo ritmo trabalhado, bem distribuído:  riarerrer na.
 
  
 
                              Conclusões
a) Falando dos esforços literários para atingir um patamar de qualidade, Calvino (7) assim se expressa: 
     
"O êxito do escritor, tanto em prosa quanto em verso, está na felicidade da expressão verbal, que em alguns casos pode realizar-se por meio de uma fulguração repentina, mas que em regra geral implica uma paciente procura da frase em que todos os elementos são insubstituíveis, do encontro de sons e conceitos que sejam os mais eficazes e densos de significado. 
     Estou convencido de que escrever prosa em nada difere de escrever poesia; em ambos os casos, trata-se da busca de uma expressão necessária, única, densa, concisa, memorável." (pág. 61)

     E Santos (5) revela as latentes sutilezas da linguagem artística, afetas à Teoria do Texto, quando faz o elogio da profª Ingedore:
    
 "Com Ingedore Koch, passamos a entender a trajetória e os grandes temas da Linguística Textual, descobrimos que linguagem é interação e texto é tecido, teia, iceberg cujos segredos devem ser desvendados."

    Já Platão & Fiorin (6) assim se referem à intertextualidade, esse fenômeno às vezes quase imperceptível, porém sempre presente num enunciado: 
     “Os textos têm a propriedade intrínseca de se constituir a partir de outros textos.  Por isso, todos eles são atravessados, ocupados, habitados pelo discurso do outro.  Por conseguinte, a linguagem é fundamentalmente heterogênea." (pág. 29)


b) Título.  Antropônimos.  Finalizando
     Do Título
     O chamamento, o apelo, o estímulo, a força sísmica que advém desse título nos conduz prisioneiros ao conto:
"O que ocorrerá em seguida?!" 
perguntamo-nos inconscientemente.
  
     E as respostas se mostram na narrativa, 
administrada com a habitual tensão e lirismo pelo escritor -  soluções que descobrimos e das quais nos apropriamos com mais sofreguidão, mais ânsia, angústia e serenidade, pois que apresentadas por um título que já introduz a trama, o enredo, a história.

 

     
Dos antropônimos
     E o nome “Alayda” passa-nos a ideia de uma personagem meio nobre (
lady), meio musical (alaúde).   Ou ainda: alada.  Polimorfa, múltipla, plural.
     De
Grande Sertão: Veredas lembramos um nome celebrizado em estudos de grossos tomos e magros artigos de crítica literária: Diadorim.  Lembra este nome: adorar, dia, ouro, dourar.
     Nota curiosa:
     24 horas depois de escritas as palavras acima, lembrou-me a seguinte expressão de GSV:
"Diadorim.  Meu amor de prata e meu amor de ouro..." 
 

     
Finalizando...
     
“Quando o Mar chamou Alayda” equivale, em expectativa narrante, ao clássico “Era uma vez, há muitos e muitos anos...”

     Convivem enfim no conto a piedade, a esperança, a saudade, o sonho e a inocência, lado a lado com a indiferença, a vaidade, o drama, a tragédia, a miséria e a opulência...
 
 
       
  
                 Bibliografia:
1 - A Cena Escolar Brasileira
(Módulo V - Curso de Pós-Graduação).  Coord.: Leonor Werneck dos Santos e Regina Gomes.  2008.
 
2 - A personagem,
de Beth Brait.   8ª ed. SP, Ática, 2006. 

3 - A procura de Stevatas e outras histórias,
de 
Rogério Silvério de Farias. 

4 - Dicionário Aurélio, de Aurélio B. Holanda. 2ª ed. Nova Fronteira, RJ, 1996.
 
5 – Dicionário Houaiss Eletrônico,
de Antonio Houaiss. 
 
6 - Homenagem a Ingedore Villaça Koch,
deLeonor Werneck dos Santos (UFRJ). 
Fonte:
 www.filologia.org.br
 
7 - Lições de texto: leitura e redação de,
Francisco Platão Savioli e, José Luiz Fiorin. Editora Ática, SP, 2003. 
  
8 - 
Minigramática, de Ernani Terra (supervisão de José de Nicola).  Editora Scipione, SP, 2002.

9 - Seis propostas para o próximo milênio, de Ítalo Calvino. Tradução de Ivo Barroso. Companhia das Letras, RJ, 1990.


Tempo dispendido: 27:00h.
Jô do Recanto das Letras
Enviado por Jô do Recanto das Letras em 04/03/2010
Reeditado em 01/08/2010
Código do texto: T2118822
Classificação de conteúdo: seguro