Um tempo que escorre aos olhos

Em À medida dos Tempos, livro de estréia de Clebber Bianchi, percebe-se que no decorrer da obra o poeta amadurece seu canto, amplia suas impressões e expressões, suas visões e percepções de um tempo impossível de se aprisionar, mesmo depois de capturado pelo retrato fotográfico, restando ao olhar lírico apenas a nostalgia de um tempo tardio, mesmo que recente:

Do peito,

escorre a chama suja dos tempos.

O olhar é simples, singelo,

apenas os tempos são capazes de testemunhá-lo.

O sorriso amarelou no retrato

e a fala muda enalteceu a lembrança.

Somente o sonho sobreviveu.

E a saudade vive nas tardes,

sob as folhas das mangueiras,

a cada lágrima que cai.

Clebber nos dá mosta do labor poético que preza a fenomenologia do olhar, olhar este que se volta para as coisas sem importância, coisas à toa e, por isso mesmo, são de grande valia e merecem ser recordadas:

Haverá um tempo

em que o passado estará exposto

no reflexo das cores orvalhadas

das flores do jardim da janela dos fundos.

As goteiras farão as rimas dos versos

que contarão a história.

O silêncio que havia na casa grande

havia entre os odores do curral.

O galo que há pouco cantou

propiciou reminiscências,

que os roncos dos motores e buzinas,

além do apitar cotidiano da fábrica, apagaram.

RETRATOS

A observação subjetiva das coisas simples, singelas, ganha um forte aliado, sua sintaxe também simples, sem afetações linguísticas de um discurso meramente formalista, que pouco comunica. O discurso poético de Clebber comunica bastante, para isso o campo léxico de À medida dos tempos é cotidiano, comum, no entanto é nessa simplicidade de dizer que é dito muito sobre a solidão, os sonhos infantis e até sobre o fato de se perder as palavras, restando apenas a contemplação sensorial do momento:

Daqui de cima tudo é solitário.

Viver acima

é encontrar-se surdamente

falando para si mesmo.

Esta é a minha casa da árvore (sonho de criança)

financiada em duzentos e quarenta meses, além de alienada.

Quando enlouqueço e grito lá para baixo,

somente as buzinas respondem.

Em seguida, as palavras não me vêm.

Apenas o pio da andorinha,

um pio, um só.

Apenas uma andorinha,

uma andorinha apenas.

UMA ANDORINHA

Cleber vale-se de alguns recursos poéticos, apesar de sua linguagem acessível, como por exemplo, paradoxos e antíteses:

O tempo é permissivo

aos contentamentos descontentes.

Vejo que tudo acontece ao mesmo tempo agora

no cenário dos dias na cidade...

PESARES DO TEMPO

Hoje, o tempo me veio solteiro,

em uma noite daquelas em que a melhor companhia era a

solidão.

EU INTRA

além disso, em alguns poemas vê-se um jogo com os diferentes valores semânticos de uma mesma palavra, como em MÁSCARA:

Um ser sem sentir-se

um sentir-se sem ser.

porém é nas belíssimas imagens poéticas que Clebber Bianchi se mostra mais criativo:

Enquanto os sapos coaxam de sede,

O sol atravessa a pele da terra,

e meus ombros são minha camada de ozônio.

DESALINHO

Cansei de respirar uma felicidade esbaforida,

cansada de se engasgar no soluço sórdido,

numa exatidão sem nexo e triste de alma.

(...)

Bastou-me um santo

e ajoelhei-me sobre as cinzas carbonizadas do meu consciente.

DILATEM, PUPILAS!

O poeta também se utiliza de alguns recursos sonoros que fazem com que os seus poemas ganhem em musicalidade e ecoem em nossos ouvidos. Um desses recursos, é o eco fonético, ou seja, aproximação de palavras semelhantes sonoramente:

Eu era um descaso do acaso,

angariado na contramão de uma grande avenida

Os brilhos dos olhos lagrimantes de saudade

de um tempo escorrido nos relógios

refletiam a esperança do passado,

apagada na realidade de um presente sério.

TEMPO DE REZA

Outro recurso utilizado pelo poeta é a onomatopéia:

O relógio tinha que tá, tinha que tá

mas não tá.

(esta foi a única coisa que o tempo parou!)

MANTO NEGRO

Clebber mostra em seus versos, não raro, a influência de Tonho França, e faz uma homenagem à altura do poeta de Guaratinguetá em CHARUTO CUBANO:

Uma lágrima seca escorreu-me de canto

e o canto do pintassilgo emudeceu na gaiola.

Minha cachaça perdeu o gosto quente,

exposta ao sol dos dias.

Mesmo uma pimenta aberta no prato

caçoava minha coragem.

Senti desconforto

e, sob meus pés,

o vácuo das manhãs sem sal provocava saudades.

É contínua a direção dos ventos,

segundo os sonhos,

seguindo sempre somente e só...

Os apoios que me sustentam

são espinhos tristes, sanções expressionistas,

cenários de Van Gogh.

Meu peito dilatado

ressalva as atitudes corriqueiras nas janelas

temperadas de línguas.

E sobre a rede ...

... e sobre a rede,

somente um legítimo charuto cubano

fazia-me companhia,

e entre um trago e outro

trago saudades.

Ao fundo,

solos de blues...

Solos de blues,

à tarde.

As acácias choravam suas perdas,

e as folhas caíam como eu,

solitariamente...

Outro destaque do livro é OLHOS FECHADOS, poema com uma vertente ecológica e, dado aos problemas ambientais, quem sabe, profético:

A culpa é nossa!

Uma culpa com a imensidão do verso,

do céu-fumaça, estradas-pet, sertão-papel. Culpa tamanha!

O sonho é esperança contida no escorrer das águas nas sarje¬tas,

nas mãos atadas dos pobres de espírito,

no papel de bala que perfurou o vento

e não pesou sobre a mente poluída.

É o início do fim. (...)

Le Goff em História e Memória diz:

“a memória é um elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na angústia”.

Com base nessa afirmação, só resta encerrar a resenha com os belíssimos versos de SEXO DOS TEMPOS, sem antes render as devidas congratulações ao poeta que surge à tempo:

Sou atemporal.

Minhas memórias não morrerão minhas