O Poeta Unindo as Duas Extremidades da Vida
Fagner Roberto Sitta da Silva
“... o real não está na saída nem na chegada:
Ele se dispõe para a gente é no meio da travessia”.
Guimarães Rosa (1908 -1967) escritor brasileiro.
No dia 20 de outubro de 2007 fui presenteado com o livro Travessia – década de 70 – e seu autor, Letterio Santoro, “intimo-me” para que depois de lido fizesse alguns comentários sobre a obra. Depois de conversas com o autor onde comentei o livro, pago novamente o presente com um humilde escrito.
Travessia, assim como todos os livros que Letterio Santoro está publicando por conta própria, sem editoras e em pouca quantidade, é o modo que o autor encontrou para que sua poesia não ficasse restrita aos poucos que têm acesso aos seus arquivos, mas que pudesse ser lida e compreendida por um maior número de pessoas. Especialmente os moradores de nossa cidade de Garça, cidade que é tema de seu primeiro livro: o ‘Romanceiro de Garça’.
Mesmo que as edições feitas por Letterio sejam humildes, com cópias que não chegam a duas dezenas de exemplares, há de se ver que grandes poetas começaram desta forma, como o caso de Carlos Drummond de Andrade e da não tão conhecida, porém não menos importante, poetisa paranaense Helena Kolody, da qual o poeta e eu nutrimos grande admiração.
Como em sua minibiografia publicada ao final do livro, Travessia pretende ser o nome de sua obra completa, porém dividida em décadas e mostrando as muitas casas do poeta, suas andanças, venturas e desventuras juntamente com as várias pessoas que fizeram parte de sua vida. Somente quando o poeta publicar toda sua obra poética é que a travessia estará completa. Será o próprio poeta ligando a ponta onde está o menino que nasceu na medieval cidade de Fuscaldo (Itália); que veio para o Brasil; que morou em Entre Folhas (MG), onde escreveu seu primeiro poema; na cidade de São Paulo; até unir a outra ponta, segurada pelo hoje bardo senhor que escolheu completar sua passagem em Garça.
A “travessia” da década de 70 tem início com o soneto “Peregrinação”, uma homenagem ao poeta italiano Dante Alighieri onde é citado um de seus mais famosos versos: Nel mezzo del cammin di nostra vita... Depois segue com mais outros cinco sonetos, uma homenagem à irmã, outro sobre o destino, seguido por um em homenagem a terra natal, um sobre Dom Quixote e Martin Fierro e o último soneto sobre o álbum de família. Os outros poemas que seguem são o relato histórico da passagem do poeta e dos acontecimentos coletivos daquela década, tais como no poema “Imperativo Categórico” onde Letterio fala da silenciosa colega de trabalho ou em “Sputnik”, por ocasião dos vinte anos do satélite russo lançado em 1957.
Conforme a leitura avança pela trilha da floresta poética de Letterio, podem ser vistas as clareiras familiares compostas para os seus, seja festejando um nascimento, um aniversário, celebrando o amor pela sua esposa Judite, ou falando da morte de um vizinho. A vida rebenta de cada uma das páginas do livro.
Dos poemas recolhidos do livro, vale citar os sonetos que iniciam a obra; e os poemas “Sputnik”; “Assis”, em homenagem a São Francisco; “Problemas”, onde o poeta compara os problemas da vida com uma irritante mosca que sempre volta a incomodar; “Traça”, que fala sobre a morte; “Poesia”, sobre a necessidade de escrever; a série “Interlúdios”, sobre uma viagem feita com a esposa a Águas de São Pedro; “Elegia”, sobre o vizinho morto; e outros mais.
Mas há um que vale um parágrafo à parte, chama-se “Greta Garbo”, é sobre a grande atriz de cinema que preferiu passar as últimas cinco décadas de sua vida longe das câmeras. No poema o poeta lembra da diva comparando sua beleza à suave e fresca beleza de uma camélia, fazendo referência a um filme interpretado por Garbo: A Dama das Camélias. O poema é entorno de um acontecimento, alguém foi capaz de publicar uma foto de Garbo já senhora, sem a beleza da juventude, reclusa em uma ilha e ainda dizer que esta era Greta Garbo, ou o que restou dela. O poeta não aceita e prefere guardar em sua lembrança o perfil da atriz quando jovem, este sim – mesmo que distante no tempo – o seu perfil verdadeiro.
Entretanto, os poemas citados perfazem somente a metade da obra. Mas nos outros poemas da outra metade quanto os da primeira não citados se constata que existem muitos falando sobre liberdade, sobre alçar vôo, transpor limites. E isso é algo interessante de se falar, pois foram escritos ainda durante a Ditadura Militar, e naquela época a ordem era silêncio. É o caso de “Direito”, escrito em setembro de 1977, onde o poeta diz:
Que vontade incontida
de fazer
agora e sempre
o que dentro
eu sinto e penso!
que vontade doida
de gritar NÃO!
a tanta coisa,
e BASTA! A tanta gente.
Mesmo que ainda haja proibição o poeta sempre cantará, mesmo que o assunto seja a própria proibição. Ao fim do poema o poeta clama pelo seu direito de ser feliz, que é um direito não só de um, de alguns, mas de todos.
Em “Liberdade” o poeta diz:
Comer com gosto e fome
à hora mais aprazada
o pão de meu trabalho
sem nunca pedir nada!
Nesta pequena quadra de seis sílabas poéticas está contido o próprio sentido de viver dignamente.
Antes de seu final estão publicados dois poemas onde a Pintura é motivo para inspiração. Em “Painel” o poeta volta ao tema da liberdade ao contemplar um mural de nosso maior pintor, Cândido Portinari. Em “Sonho (Im)possível” as cenas das pessoas simples representadas por Djanira viram versos.
E o livro termina com “Meus Velhos”, falando da distância dos falecidos pais e com “Fecundidade”, porém este poema seria sobre o fim do sofrimento depois de desenganos, ou sobre a chegada dos filhos que acontece no fim da década? Somente o poeta para responder...
Entretanto a travessia de Letterio Santoro ainda continua sendo escrita, e é nesse espaço entre princípio e fim que se encontra todo o itinerário da viagem do poeta. E assim como todos nós, o poeta continua seu trabalho no desejo de unir as duas extremidades da vida.
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Crônica publicada no Jornal Comarca de Garça no dia 31 de outubro de 2008