Um trago sozinho à tarde
Ernest Fischer, em A necessidade da arte, afirma:
Em todo poeta existe certa nostalgia de uma linguagem “mágica”, original.
Em O Bebedor de Auroras, mais novo trabalho do premiadíssimo poeta Tonho França nos brinda com magia, lírica íntima e sintaxe peculiar para resgatar do mundo contemporâneo, a cada dia repleto de surpresas, armadilhas e contradições, a humanidade perdida.
A experiência individual do eu-poético, traz ao livro um tom de saudade e de desencanto, talvez contaminado pelo sentimento de desencaixe, como se pode notar em:
aprendi a ver através das margaridas, mas não entendo mais o
[olhar dos homens
(...)
(Tardes Artificiais)
ou:
A toda hora
A todo momento
Estou fora ou dentro?
(Muros)
A pena de Tonho corre sobre o fazer poético, em inúmeros poemas se encontram as palavras: versos, poesia e poeta, isto em consequência a reclusão no presente de eu-poético fragilizado pelas incertezas do futuro e as recordações do passado:
Meus olhos, embora cansados,
Pressentem o que não podem ver
Aprenderam com o meu silêncio
– rituais e rotinas de solidão –
Meus instintos guardam a memória dos amores
E de tudo o que me é caro e que meu coração...
Já não suportaria.
E de nada me adiantam, agora, lembranças,
Penitências, alegrias ou arrependimentos
¬Estou recluso nos versos –
E nas minhas dores, culpas
Nos enfrentamentos em calmos e intermináveis silêncios
Abertos, vulneráveis, extremamente íntimos
E despidos de profecias, santos e defesas,
Num encontro definitivo, conclusivo, coeso
Do qual nem poeta, nem poesia, saem ilesos.
(Autorretrato (Diálogo do último dia))
O sotaque poético de Tonho França permanece intacto, maneira singular de construção semântica, que aproveita fragmentos de versos anteriores para dar aos posteriores outras significações:
As ladeiras de pedra
Os homens a seguir o destino em procissão
As ladeiras de pedra e os homens a segui
As ladeiras de pedra tentam a remissão:
Os homens de pedra a seguir vão,
homens de pedra a seguir
os homens, em vão.
(...)
(Procissão)
Na construção sintática, menos recorrente nesta obra é verdade, Tonho França também é mestre, trabalha duas orações coordenadas, porém com o segundo elemento do paralelismo inusitado:
Meus olhos guardam o segredo da morte
Suas mãos enrijecidas em pétalas de mármore-rosa
Colhiam maças e notas musicais.
(Canto III)
Mares... destoa do resto do livro, o uso constante da mesma rima dá ao poema um ritmo arcaico, lembrando muito a poesia do século XIII e XIX:
Os barcos deixam o cais,
Aventuram-se e deixam o cais,
Nas ondas inseguras, deixam o cais,
Levando as desventuras, deixam o cais,
Nas noites tão escuras, deixam o cais,
Deslizam entre espumas e corais,
(...)
Ainda na linguagem que o poeta utiliza para suas auroras o destaque fica por conta de Metrópole:
Pivete no semáforo
(vida?)
Vende balas
(perdidas)
o uso dos parênteses dá ao poema outras possibilidades de interpretação, pode-se ler só os termos que estão fora deles, apenas os que estão dentro, ou ainda embaralhando-os.
Em Vida vista pela janela (cenas de um tempo sem sentido), um dos melhores poemas do livro, Tonho nos ensina:
É preciso nos lavar de nós mesmos (..)
Em uma sociedade que é regida pelo olhar mercadológico, o olhar sensorial do eu-poético recai sobre os homens desumanizados, então resta, apenas, concordar com as palavras do poeta:
Já aprendi a sobreviver nas esquinas definitivas
E sinto como é pesada a franqueza
Escrevo abaixo da “linha da pobreza”
Dentro dos olhos e com muita dor
Mas não me iludo, não me engano
Meus versos são pelos seres humanos
A poesia é para sermos humanos
(...)
(Dia a dia)
A voz auscultada das páginas traz a entonação do entardecer, apesar do título constar como auroras, a palavra tarde é recorrente em muitos de seus versos, assim como ecos de um homem, em uma metrópole, solitário à espera de alguém para, quem sabe, um trago de poesia.
O Bebedor de Auroras é um bálsamo contra a banalização do mundo contemporâneo que está cada vez mais e mais dezumano e alienante.