O burro de Nietzsche, eu e os hippies
Não li o best seller "Quando Nietzsche chorou": quem conhece as secas impressões do velho filósofo alemão Friedrich Nietzsche, contudo, registradas em seus livros inquietantes, não acredita mesmo que tal neófito “anticristo” tenha mesmo chorado.
Como dizia, não li o livro, mas, ao contrário da maioria de seus leitores, conheci algumas obras do filósofo escritor entre os livros da biblioteca de meu pai, ainda quando estava na adolescência. Entre algumas de suas obras, seu livro de aforismos "Humano, demasiado humano", a despeito da fama de fomentador do “anticristo” de seu autor, me faz crer Nietzsche de fato humano o bastante para ter mesmo algum dia se derramado em lágrimas.
Relendo o livro agora, entendo melhor porque às vezes fico refém da angústia. Como escreveu no prólogo de seu texto, “dizem que um leitor emerge de meus livros não sem alguma reticência e até desconfiança frente à moral, e mesmo um tanto disposto e encorajado a fazer-se defensor das piores coisas”. Estando “além do Bem e do mal”, contudo, com sua auto-reconhecida inteligência, entre as piores coisas existentes apontadas por Nietzsche estão alguns dos mais amargos fatos da vida, ainda muito presentes entre nós de 1878 pra cá! E mesmo que já tenhamos chegado a um tanto do futuro idealizado por Nietzsche, a uma civilização que, como ele previu, embora não tenhamos ainda estabelecido o Inglês como “a língua universal”, tem já suas navegações e congestionamentos aéreos.
Com seu apurado senso de análise, mesmo com todo caos promovido entre séculos pelos homens (sic) – tendo mesmo o filósofo sido apontado como influente as idéias de Adolf Hitler – Nietzsche os reconheceu isentos da responsabilidade a eles conferida pela feitura dos males, do peso da responsabilidade que certo “senso moral” os faz atribuir a si mesmos, isentos do "fardo da cultura”, uma vez que constantemente o homem (sic) se encontra em estado de mutação, compulsoriamente submetido a intempéries naturais da vida, entre outras. A despeito disso, dos possíveis choques entre planetas a convivências pessoais com a velhice e com a morte, para ele as invencionices artísticas dos “homens” e seu fanatismo religioso o fazem parecer capazes de sobreviver a tudo isso “para sempre”.
Amante, produtor e defensor ferrenho do valor das artes e dos artistas, como de filósofos e “santos”, numa recente festa de aniversário em família, ouvindo as conversas entre os convidados, lembrei das verdades friamente atiradas por Nietzsche em minhas certezas artísticas tais quais duchas de água gelada sobre palítos de fósforo acesos. E então, depois de algumas cervejas entre bem-sucedidos profissionais liberais presentes, demonstrei minha revolta para comigo mesmo, reconhecendo a enorme perda de tempo que provoquei em minha vida com minha insistência em defender e cultuar como “importante” tudo aquilo que, equivocado como só um artista poderia estar, valorizei da Vida.
Mas, enfim, não é apenas isso o que fazem todos a justificar a validade de suas vidas no mundo?
Entre todos os bens de consumo a possuir, dentre os mais desejados dos muitos a considerar “necessários”, sinto que mesmo que usufrua de certos confortos da vida moderna no apartamento onde moro e no de amigos, sei que, como eu, ninguém pode mesmo possuir coisa alguma, ninguém. Entretanto, como nos advertiu Nietzsche, “quem advinha ao menos em parte as conseqüências de toda profunda suspeita, os calafrios e angústias do isolamento a que toda incondicional diferença do olhar condena quem dela sofre”, “... que sabem vocês disso, das astúcias de autoconservação, da racionalidade e superior proteção que existe em tal engano de si – e da falsidade que me é necessária para que continue a me permitir o luxo de minha veracidade”?
Entre bem-sucedidos profissionais liberais, então, considerando ainda o valor de artistas e escritores, vi-me entre supostos amigos na condição daquele camundongo de Dostoievski, personagem do escritor de "Notas do subsolo": no meio de tudo aquilo, me senti de repente impulsionado a fazer apologia à preservação de meu vício expressando minhas opiniões sobre o valor da Fantasia como instrumento primeiro da criação da(s) chamada(s) realidade(s) histórica(s), que todos tanto cultuam como expressões da “Realidade”. E aí, como “artista-filósofo”, estive outra vez entre aqueles alvos de Nietzsche, exatamente no ponto onde, no tópico 159 de seu "Humano, demasiado humano", ele expressa suas opiniões sobre “a alma dos artistas e escritores”, reconhecendo “A arte sendo perigosa para o artista: Quando a arte arrebata fortemente um indivíduo leva-o de volta a concepções de épocas em que a arte florecia do ponto mais vigoroso, e tem então uma influência regressiva. Cada vez mais o artista venera emoções repentinas, acredita em deuses e demônios, põe alma na natureza, odeia a ciência, adquire um ânimo instável como os indivíduos na Antiguidade, requer uma subversão de todas as relações que não sejam favoráveis à arte, e isso com a veemência e a insensatez de uma criança. Ora, em si o artista já é um ser retardado, pois permanece no jogo que é próprio da juventude e da infância: a isso se junta o fato de ele aos poucos ser ‘regredido’ a outros tempos. Desse modo acontece, afinal, um violento antagonismo entre ele e os homens da mesma idade do seu tempo, e um triste fim; assim, segundo os relatos dos antigos, Homero e Ésquilo acabaram vivendo e morrendo na melancolia”.
É. Infelizmente, dos gregos até aqui, esse também foi o retrato da vida de muitos artistas de anos recentes – como a de meu pai, cujo último precoce fúnebre “auto-retrato” ainda vejo estampado em minha memória persistente a me fazer pensar num possível “bem de Alzheimer” e da Morte, uma vez que, cada um a seu modo, nos fazem esquecer certas coisas.
Mas, a despeito de admirar as obras de Bach – entre outros compositores e artistas – as fugas da Realidade que nos promovem as artes não são o que de melhor Nietzsche nos sugere cultuar: estando já quase tão sem “alma” como ele nega haver na natureza, o filósofo eleva a última potência o desprezo por aqueles que, iludidos ilusionistas, enxergam algum valor positivo à presença de qualquer forma de vida no vazio. “Toda crença no valor e na dignidade da vida”, escreveu ele, “se baseia num pensar inexato; é possível somente porque a empatia com a vida e o sofrimento universais da humanidade é pouco desenvolvida no indivíduo. Mesmo os homens raros, cujo pensamento vai além de si mesmos, não lançam os olhos a essa vida universal, mas somente a partes limitadas dela” – penso eu, um recurso de preservação e defesa contra a angústia extrema causada pela consciência de nossas impotências e contra o suicídio.
Mas, ao reconhecer a possibilidade de existência de “homens raros”, cujo pensamento “vai além de si mesmos”, Nietzsche parece se esquecer que esses devem nascer justamente entre aqueles artistas cujo valor do que são e produzem ele questionou. Porque o fundamento daquele que queremos reconhecer “Homem”, ou mesmo um “Super-homem”, para muito além daquilo que nos constitui a Natureza, aqueles “homens raros”, pois, surgem com e da sensibilidade e imaginação de artistas. Pois, muito além da pele e do esqueleto, das carnes e dos ossos que nos ajudam a por de pé o corpo que usamos e que nos faz pensar sermos sobre este mundo, fora o que a Natureza nos deu, tudo o que constituiu as civilizações e outros sentidos da Vida, Seus deuses e demônios, tudo são mesmo apenas produtos das artes, frutos da imaginação e do desejo.
Depois das muitas tapas que Nietzsche deu em minha vaidade artística, entretanto, no tópico 34 de seu "Humano, demasiado humano", intitulado “Para tranqüilizar” (minha decepção e desamparo), ele escreveu: “Creio que o temperamento de um homem decidirá quanto ao efeito posterior do conhecimento”. No caso de Nietzsche, que pensava bom “viver entre os homens e consigo tal como na natureza, sem louvor, censura ou exaltação, deleitando-se com muitas coisas, como um espetáculo do qual até então se tinha apenas medo”, a melhor opção seria então uma volta àquilo que aprendemos ser expressões da barbárie! – embora agora talvez sem as conseqüências de uma “natural imoralidade”, mas sob os auspícios e gozo de uma liberdade fundamentada em uma moral mais elevada.
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É difícil dizer exatamente como viverão as gerações que nos sucederão, assim como é difícil dizer como viveram os que estiveram antes de nós sobre este planeta, sendo já comprovadas ficções muito do que se conta da História de sua inconclusa Humanidade. Entretanto, entre acreditados fatos, não duvido do que dizem sobre como Nietzsche terminou. Depois de tudo o que viveu e pensou sobre a vida entre os “homens” e sociedades, não me espanta que, como se acredita, ele tenha mesmo findado seus dias “completamente louco, abraçado a um burro e chamando-o de ‘meu irmão’”. Mas, graças a certas convivências – e graças ao seu temperamento irritadiço, misturado a sua grande reconhecida inteligência – ele não foi o primeiro filósofo escritor a isolar-se do burburinho do mundo, preferindo a companhia e a irmandade das feras.
Contudo, diante de seus livros, que nos tornam sabedores sobre o que sentiu e pensou, é possível que Nietzsche não tenha terminado louco, como dizem – embora talvez alguém o tenha visto mesmo agarrado a um burro chamando-o de “meu irmão”. Para mim, nos anos finais de seu descontentamento, seu “louco” gesto foi apenas a expressão de uma performance vinda do ápice de sua vocação irônica, uma moganga representativa de sua insatisfação frente àquilo que antevia do mundo administrado pelos “homens” do futuro. Porque, num século seguinte ao que lhe foi permitido à expectação da Vida e suas ilusões, como se para corroborar com sua "loucura", haveria a cultura daqueles que, chamados “hippies” – como desejava Nietzsche, amantes da natureza e cultivadores de um “espírito livre” - se reconheceriam ainda apenas enquanto um bando de “bichos”.