"Rapariga com Brinco de Pérola"
Este romance de 1999 veio na fiada do género de literatura que vai buscar à arte, neste caso à do mestre barroco holandês, a sua inspiração. É a versão ficcionada sobre a génese de uma das peças mais famosas de Johannes Vermeer, bem como uma exploração visceralmente humana da vida familiar deste pintor vivido na Holanda do Século XVII.
Escrito num estilo subtil, brando e preciso, contudo vívido, com uma caracterização de texturas profundas e uma voz narrativa cheia de habilidade emocional, o livro reveza-se entre o detalhar das tarefas mundanas duma jovem e pacata criada num lar conturbado de Delft e as complicadas disputas familiares, sempre pintado com os traços hábeis das subtilezas mais inspiradoras da arte. Da mesma forma que as personagens de Chevalier misturam apaixonadamente os pigmentos que serão usados nas obras do pintor, a autora mistura verdade com fantasia nesta sua explicação da origem do quadro de Vermeer.
A pérola do livro é a personagem de Griet. A ordeira rapariga ocupa o seu lugar como a nova criada na casa dos Vermeer após um surto de infelicidade afligir a sua própria família. Enviada para trabalhar do lado católico da cidade seis dias por semana, a moça protestante, sem querer, torna-se na figura central duma surda batalha por relevância travada pelas mulheres da casa.
Catharina, a esposa do pintor, uma mulher beligerante obstinada na sua função de dar à luz tantas crianças quantas lhe for possível, assim que repara no interesse imediato do marido na nova criadita, toma-a de ponta. Acrescentando aos ataques de irritabilidade da mãe, a pequena Cornelia, uma das crianças mais difíceis do casal, faz tudo o que pode para acirrar os ventos contrários à presença de Griet. A vida de Griet no seio de tal ambiente familiar sofre ainda com as dificuldades impostas pelo feitio instável da outra criada, Tanneke, que outrora posara para o mestre e que agora tudo faz para acautelar o seu posto de criada principal naquela casa.
Ao mesmo tempo puxada de várias direcções, Griet encontra uma aliada ocasional em Maria Thins, a sogra de Vermeer, cujas acções ilustram a sabedoria própria da idade. É ela quem impulsiona os caprichos do artista na direcção das peças mais lucrativas e facilita a ascensão de Griet como musa de Johannes. A atracção pela arte acaba por causar a aproximação inevitável entre o mestre e a criada, e de ambos para o escândalo.
As cenas mais apelativas no romance passam-se no estúdio de Vermeer, no segundo andar da casa da Oude Langendijk. É um mundo à parte para o pintor, livre da claustrofobia dos problemas domésticos, como por exemplo a eterna expansão da sua prole e os custos que as novas bocas acarretam. A divisão é mantida quase num estado de sonho parado no tempo, como se fosse ela mesma uma gravura, composta com tanta atenção para cada elegante detalhe quanto é visível ainda hoje na obra de Vermeer.
Griet, a voz do livro, nunca chega realmente a vocalizar o seu amor pelo mestre e patrão, no que é uma pincelada de génio da autora. As personagens escondem mais do que mostram, e Griet principalmente. Sabedora do seu lugar numa sociedade demasiado harmonizada na dinâmica patrão-criado, no que toca aos seus sentimentos secretos por Vermeer, Griet opta por se expressar através de palavras cuidadosas, mas emocionais, enquanto se sacrifica irrevogavelmente à arte do pintor.