"Elza, a Garota"
Com “Elza, a Garota”, o escritor e jornalista brasileiro Sérgio Rodrigues esforça-se por remexer no armário poeirento da convoluta história brasileira dos anos trinta e agitar na nossa cara as ossadas duma rapariga ingénua que foi assassinada pelo Partido Comunista Brasileiro nos dias que se seguiram à infame “Intentona”. Enquanto a Esquerda brasileira fazia por esquecer Elza Fernandes (pseudónimo usado pela amante adolescente do líder do PCB), esperando que assim também o povo a esquecesse, e a Direita abusava da sua figura trágica como estrela maior da sua propaganda anti-comunista, a verdadeira história da “Garota” desapareceu sob um torrencial de desinformação que se estende até aos dias de hoje. Os factos sobre a vida de Elza estão perdidos no labiríntico passado pré e pós-Intentona comunista de 1936. As figuras de ambos os lados da barricada que lhe sobreviveram, conseguiram de tal forma baralhar os historiadores que, actualmente, ninguém poderá afirmar com toda a certeza “isto aconteceu” ou “aquilo não aconteceu”. Toda a pesquisa diligenciada esbarrará em muros de silêncio e becos escuros. Aquele que, por querer iluminar os últimos momentos da curta vida de Elza, tentar investigar esta história muito mal contada não poderá no fim mais do que ver-se na posição de defender apenas suposições baseadas, no melhor das hipóteses, em meias-verdades.
Por esta razão, a opção do autor em apresentar a sua história como um romance policial provou ser uma excelente ideia. Desta maneira, desmarcando-se da pura pesquisa histórica, não só Sérgio Rodrigues evita a imposição empírica da convicção absoluta em relação à sua versão da vida e morte da “Garota”, como ainda goza da liberdade que o género ficcional lhe propicia para desenvolver uma narrativa paralela. São, na verdade, três histórias num só livro. Todas elas bem conseguidas.
“Elza, a Garota” conta-nos sobre Molina, um jornalista de pequenas cachas que, aos quarenta e três anos, pretende dar o salto para a literatura séria. Como escritor freelancer na penúria é contratado por um estranho velho endinheirado, de seu nome Xerxes, que às portas da morte, deseja ver a contada história da sua vida. Especialmente a sua vivência daqueles dias loucos dos anos trinta no Brasil, imerso no secretismo cerrado da clandestinidade, confusão de pseudónimos ou memórias de contra-informação. Xerxes viveu tudo isso. Em jovem, cruzara a sua vida com a do PCB, envolvendo-se não só com a ideologia como também com uma menina chamada “Elza”, que ele sabia ser a namoradinha de “Miranda”, então o secretário-geral do partido.
Enquanto Xerxes e o seu interlocutor, Molina, são personagens completamente fictícias, “Elza” não é. “Elza”, porém, é uma não-personagem que viveu realmente no meio dum dos períodos mais conturbados da história do Brasil. Viveu-os involuntariamente, talvez por amor, talvez por ingenuidade, e morreu vítima do cinismo dos tempos e da paranóia dos seus intervenientes. Sérgio Rodrigues dispõe a versão ficcionada desses acontecimentos, que Xerxes confia a Molina, a par com os poucos relatos recolhidos dos jornais e dos documentos oficiais da altura. Uns e outros, há que dizer, e quanto a isso o autor não deixa dúvidas, igualmente manipulados e de comprometida veracidade.
Como leitor, o livro agradou-me a todos os níveis. O estilo narrativo alterna entre a ficção genuína, onde Rodrigues exibe um à-vontade no género do thriller de investigação e uma capacidade incomum de nos prender às páginas, e o mais documental relato jornalístico, exemplificado no corpo do livro em itálico e mostrando que o autor fez a pesquisa possível sobre a morte de “Elza”. O que ficou por descobrir provavelmente assim permanecerá até ao fim dos tempos. À falta da verdade, na voz eloquente e fascinante da personagem Xerxes, Sérgio Rodrigues une os pontos delineando uma história verosímil em que os muitos espaços em branco se ultrapassam com bem imaginados saltos no vazio.
Deste modo, “Elza, a Garota” é uma história cheia de truques de luz e fumo onde o que não é, pelo menos parece, e as personagens dançam umas à volta das outras, repetindo a história umas das outras, num enroscado de traições, mentiras e paranóia que num ambiente assim pode crescer e prosperar.