O NEGRO, REINO DESTE MUNDO NOS PALMARES DO BRASIL
Ti Noel é o Zumbi no reino deste mundo. Está nele a experiência de ter nascido, em seus antepassados, no Continente da África e depois lançado como que ignoto sob as armas negras dos brancos no mundo da América. É nele a experiência somada de toda uma gente que não se submete, ou por outra, aprende na carne o destino que a submissão lhe reserva. Por conseguinte, Zumbi está em toda parte. Zumbi “vinha desde o planalto de Garanhuns, no sertão de Pernambuco, atravessando várias ramificações dos sistemas orográficos central e oriental, até as Serras dos Dois Irmãos e do Bananal, no Município de Viçosa (Alagoas), compreendendo, entre outras, as Serras do Cafuxi, da Juçara, da Pesqueira, do Comonati e do Barriga – o Outeiro do Barriga, onde se travou a maior parte dos combates pela destruição final dos Palmares.” E desde Cristo nas mãos dos romanos, Zumbi continuou no Nordeste e além, nas terras do Haiti, na revolução cubana, na costa leste da América, nos porões dos navios negreiros, nas tentativas contra os tiranos, nas estrias de carne deixadas pela ponta do chicote do carrasco, no peito de Pancho Vila, na geografia, na antropologia, na sociologia, no teatro, na literatura, no cinema, nos poemas de Maiakovski, na angústia de Graciliano, na boca que expirou o hálito mortal do “santo guerreiro” abatido no âmago do continente centro-sul, no canibalismo ideológico dos índios, de todos os índios, daqui e dos Estados Unidos. Zumbi é a alma do Vietnam, a voz de Castro Alves, a pena de Carpentier, a História de Edison Carneiro, os bolcheviques, os antinazistas, a canção dos homens sem face, a palavra do “mouro” do século passado, a miséria do terceiro mundo. Zumbi é a voz do homem na luta pela sua libertação. Por isto Zumbi está em toda parte e, assim como nos sertões de Pernambuco, em 1817 outrora, outrora ainda esteve “atrás de portas fechadas e à luz de velas acesas” conspirando a Inconfidência. Zumbi está onde estiver um libertário. Zumbi, em suma, é a luta contra a opressão. E se levamos armas ou graças a Ogum-Xangõ, Ogum-Kankanikã, Ho-Chi-Minh, Espártacos, rei do Congo ou Angola, rendemos à Zumbi, porque Zumbi é sempre a voz do peito humano que há no homem.
Ogum Badagri
General sanglant
Saizi z’orage
Ou scell’orage
Ou fait Katsoun z’eclait!
O maneta Mackandal, inútil agora porque maneta, fugira para as selvas e de lá conspirava contra os colonizadores, contra as fazendas, contra os tiranos. Seu canto de guerra guerreiros ouvi... Os filhos das selvas, nos Palmares do Brasil também cantavam assim:
Folga, nêgo!
Branco não vem cá
Se vier,
O diabo há de levá!
A aproximação que intentamos realizar dos livros “O Reino deste Mundo”, de Alejo Carpentier com o trabalho de Edison Carneiro, “O Quilombo dos Palmares”, procura localizar o elo fundamental que caracteriza a identidade de tantas revoltas no reino da opressão dos homens. Este elo é, sem dúvida, o “paládio” das liberdades de Castro Alves:
Nos altos cerros erguido
Ninho de águias atrevido
Salve! – país do bandido!
Salve! – pátria do jaguar!
Verde serra, onde os palmares
- como os indianos cocares -
No azul dos Colúmbios ares,
Desfraldam-se em mole arfar!
Em “O Quilombo dos Palmares”, Edison Carneiro destrói aquela falsa lenda de que Zumbi, chefe dos negros revoltosos, guerrilheiro habitante do mocambo dos Macacos, morrera covardemente, atirando-se por um abismo num suicídio teatral, ou num gesto de trégua tal como o de seu predecessor Ganga-Zumba. Em “O Quilombo dos Palmares” fica desfeita esta mentirosa fantasia desencadeada por Sebastião da Rocha Pita. E seu autor afirma que Zumbi é: “Não o que se atirou do rochedo, num grande gesto teatral, mas o que continuou vivo, reagrupando os seus homens, organizando novamente as forças de resistência do quilombo – a mais prolongada tentativa de autogoverno dos povos negros no Brasil.”
Em “O Reino deste Mundo”, Alejo Carpentier mostra claramente como o fideísmo religioso dos negros, em Haiti, tinha muito mais a ver com a realidade presente em que viviam, tinha muito mais com o social concreto, do que o fideísmo religioso dos colonizadores tinha com a realidade deles, tiranos. Carpentier consegue, em seu romance-poema, perseguir o rastro material e dialético da tomada de consciência de seu personagem – Ti Noel – através de três sucessivas dominações: antes os feitores de Lenormand de Mezy, depois pelos guardas (negros agora utilizados contra os próprios negros) de Christophe e finalmente, os mulatos agrimensores republicanos. O autor consegue inserir, em único capítulo a que intitula “Crônica do Dia 15 de Agosto”, o misticismo da religião importada. O típico de tal fato, inserido em meio à mística dos negros, os leva também inevitavelmente a reivindicar sua liberdade. Enquanto aquela crônica mostra como os tiranos se autopunem, junto corre a alegoria negra da tomada de consciência, senão da tomada do destino:
São Tiago, sou filho da guerra:
São Tiago,
Não vês que sou filho da guerra?
Assim, enquanto aqueles conservam dedos e pés em suas capelas, lembrando-nos a Circular de Guerra Junqueiro noticiando as relíquias num mercado de ossos e crânios, os negros caminhavam por distinguir uma diferença fundamental:
“No Reino dos Céus não há grandeza a conquistar, pois lá toda a hierarquia já está estabelecida, a incógnita solucionada, o viver sem fim, a impossibilidade do sacrifício, do repouso, do deleite. Por isso, esmagado pelos sofrimentos e pelas Tarefas, belo na sua miséria, capaz de amar em meio às calamidades, o homem poderá encontrar sua grandeza, sua máxima medida, no Reino deste Mundo.”
Nota: Primeira Publicação: JORNAL SETE, Ano 1, nº 9, 25/31 de Julho de 1970
BIBLIOGRAFIA
CARPENTIER, Alejo. “O Reino Deste Mundo” – Ed. Civilização Brasileira S.A. Rio de Janeiro.
CARNEIRO, Edison. “O Quilombo dos Palmares” – Ed. Civilização Brasileira S.A. Rio de Janeiro.