Apologia da História - Cap. 1 e 2

Marc Bloch foi um dos grandes fundadores da escola dos Annales. Seu livro, Apologia da História, não só tinha o princípio de se contrapor aos positivistas, como também é o reflexo de um olhar preocupado com o futuro do mundo, devido aos males da Segunda Grande Guerra, período o qual foi escrito a sua obra. Este livro é o ato de um homem de ação que observou e viveu as enfermidades da Segunda Grande Guerra, a ponto de ter sido vítima dos nazistas, sendo fuzilado por ordem de Klaus Barbie no dia 16 de junho de 1944.

Um dos pontos analisados em Apologia da História é o tempo histórico, e sendo a história a “ciência dos homens no tempo”, este não pode ser apenas uma cronologia, mas sim um período onde a sociedade e/ou os indivíduos expressam suas vicissitudes. O tempo na ciência história é a antítese entre o contínuo (a cronologia) e a constante mudança (a ação humana), não é importante para um historiador saber, por exemplo, quanto tempo César levou pra conquistar a Gália ou Lutero levou para de um ortodoxo católico se transformasse no reformador religioso, mas sim qual a importância disto para as sociedades européias nestas épocas. Mas a grande questão sobre o tempo é: até que ponto o tempo antigo pode ser considerado importante ou supérfluo para a compreensão do mais recente?

Durante anos se perpetuou o equívoco de que o passado era o objeto de estudo do historiador, e isto nada mais foi do que uma obsceção pelas origens. Este gosto surgiu da herança do romantismo alemão que glorificava o primitivo, ornamentando-o com uma carga ideológica que inclinava as gerações a atribuir, no caminhar da humanidade, uma importância extrema aos fatos do início. Mas a referência para esta obsceção veio da religião cristã. A principal característica do cristianismo é ser uma religião histórica, seus próprios dogmas, assim como demonstra Bloch, são baseados em fatos históricos: “Creio em Jesus Cristo... que foi crucificado sobre Pôncio Pilatos... e ressuscitou dentre os mortos no terceiro dia”. Bloch também afirma que, de um ponto de vista religioso, isto é uma forma de inquietar a “consciência que busca uma regra para si”, mas para o historiador, conhecer as origens não basta para explicar os fenômenos, pois a questão não é se Cristo foi crucificado e ressuscitou ou não, o que, no primeiro caso, justificaria a origem dos dogmas cristãos, mas sim como se manifestou e se perpetuou a fidelidade a esta crença, ou seja, qual a relação entre passado e presente na perpetuação desta crença.

Presente e passado são duas forças temporais que se interpenetram quando levado em consideração a ação humana, portanto, a compreensão de um está estritamente ligada à do outro. Principalmente se levarmos em consideração que o presente é algo bastante veloz e o que chamamos de presente nada mais é do que um passado recente. Por muitas vezes, os fatos deste “passado recente”, ou seja, o presente, foi renegado pelos historiadores por ser visto como algo não suscetível de conhecimento científico, ficando este campo destinado aos sociólogos, economistas e jornalistas, porém sem levarem em consideração o passado como algo significativo em seus trabalhos.

O homem não pode ser compreendido apenas por um instante do tempo, a ignorância do passado não só compromete a compreensão do presente como também a sua própria ação. Portanto, as ciências humanas não podem deixar de levar em consideração as heranças do passado, ou seja, as tradições. Elas é que constituem, também, as características sociais de um povo. Se fossem transmitidas apenas do mais novo para o mais recente, ou seja, do pai para o filho, teríamos uma sociedade extremamente maleável, desconexa, em grande parte, do passado. Não que as sociedades tenham que existir como algo rígido, o que na prática, obviamente, não presenciamos, mas para toda diversidade existe uma base tradicional que constitui uma identidade.

O exemplo dado por Bloch são as comunidades camponesas. Muitas aldeias, devido às condições de trabalho, mantenhem as suas famílias na mesma localidade. O deslocamento dos pais para uma região próxima à sua moradia, para poder trabalhar, faz com que os filhos sejam criados pelos avôs, ou seja, as gerações mais maleáveis ligam-se às mais cristalizadas, caracterizando, assim, uma transmissão identitária oral. Não se pode esquecer que este mesmo fenômeno da reciprocidade entre o mais antigo para com o mais novo se dá também através dos escritos. E esta transmição de pensamento, tanto na oralidade quanto na escrita, é que da continuidade ao que se chama civilização.

Mas o conhecimento do presente também influência diretamente na relação do historiador com o passado, pois aquele que lida com a história não deve apenas ter a erudição de conhecer o passado, mas também deve ter a sensibilidade de está atento a tudo que é vivo. Baseado nisso é que Bloch afirma: “Li mutas vezes, narrei frequentimente, relatos de guerras e de batalhas. Conhecia, eu, verdadeiramente (...), antes de ter eu mesmo experimentado a atroz náusea, o que são, para um exército, o cerco, para um povo, a derrota? Antes de ter eu mesmo, durante o verão e o outono de 1918, respirado a alegria da vitoria (...)? Na verdade, conscientemente ou não, são sempre as nossas experiências (...) que nos servem para reconstituir o passado.” Assim, é possível concluir, em relação ao intercânbio passado-futuro, que a ordem para se iniciar uma pesquisa é do mais conhecido, o presente, para mais brumo, o passado. Mas a cada momento que nos afastamos ou nos aproximamos do presente a forma de investigação irá variar, e isto é o que Bloch chama de “observação histórica”.

Observar a história é estar ciente de que os fenômenos não poderão ser reproduzidos ao belo prazer do historiador. Nenhum especialista em revolução francesa viu a tomada da Bastilha, tão pouco um especialista em Cruzadas viu os peregrinos tomarem Jerusalém, por isso diz-se que o conhecimento do passado é necessariamente “indireto”. Até mesmo quando um fato possue uma testemunha que resolva redigir um relato sobre este fato, sua relação com o ocorrido torna-se indireta, pois um olhar, apenas, não consege expor todos os detalhes a ponto de se construir uma rica análise. Faz-se necessário recorrer a diversos outros olhares, pois “Toda coletânea de coisas vivas é, em boa parte, de coisas vistas por outro”.

Mas toda coletânea de coisas vivas, os escritos, e os rastros deixados por essas vicicitudes, os artefatos, também exercem uma função “direta”, pois estes nada mais são do que vestígios do passado que, ao serem analisados, darão margem a analogias intuitivas, pessoais. Daí, pode-se concluir que a relação do historiador com o documento, escrito ou não, é uma relação ambivalente, pois a relação é “indireta” por ser o fenômeno do passado impossível de ser reproduzido e “direto” por ser os seus vestígios objeto de múltiplas interpretações. O dado do passado não se modifica, mas o conhecimento construido em tornoo dele está em constante aperfeiçoamento.

Apesar de o presente exercer sua influência, o passado, para o historiador, é uma ninfa que o seduz com olhares de mistérios, estigando-o a desvendar, a cada momento, como agiam os homens em seus tempos remotos. Em contra partida, ele também é um tirano que permite demostrar apenas aquilo que pode ser fornecido. Talvez esta tirania seja até benéfica, pois, sem ela, estariam os historiadores fadados a algo rígido, não propício ao enriqueimento do imaginativo em seu trabalho. Sem falar que, após ter recorrido energicamente a diversas fontes, o historiador não tenha desvendado sua charada por completo, é um bom exercício de humildade dizer as sábias palavras de Marc Bloch sobre este dilema: “Não sei, não posso saber”.

Daniel S Gomes
Enviado por Daniel S Gomes em 23/11/2009
Reeditado em 24/11/2009
Código do texto: T1939147
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