O Anticristo de Friedrich Nietzsche - parte II
Para Nietzsche, é uma vergonha para o homem moderno admitir ser cristão. É preciso fugir da enganação que é o cristianismo. Muitas foram as mentes, brilhantes até, que caíram, literalmente, no “conto do vigário”, deixaram-se entorpecer pela doutrina cristã, ou seja, a maior falsidade da história os dominou. Cabe ao homem da modernidade, livre de moralismos, questionar os valores estabelecidos pelo cristianismo, reconhecendo a farsa que este é. Para Nietzsche, o próprio termo cristianismo é errado, porque não houve cristãos na história, , pois o único cristão morreu na cruz, juntamente com o Evangelho. Ser Cristão é viver como Jesus, viver seus ensinamentos, e não houve quem tenha feito isso. Os Evangelhos, o cristianismo como se desenvolveu, não são outra coisa senão distorções sobre Jesus, uma “má-nova” para a humanidade. Isso porque as concepções pregadas pelos cristãos nada tinham a ver com a vida de Jesus. Os cristãos fizeram de Jesus o único filho de Deus, afastando-o deles, assim como fizeram os Judeus com Deus. Continuaram negando a realidade, a possibilidade de uma nova vida, e insistiram numa nova fé, baseada na mentira, simplesmente por não entenderem o que lhes ensinava Jesus. “estavam escandalosamente preocupados consigo próprios; o que a todo momento pretendiam era procurar o seu interesse e construíram a Igreja opondo-se ao Evangelho...” p.71. Concepções e doutrinas foram criadas para atender necessidades pessoais. “A história do cristianismo(...) é a história da incompreensão, cada vez mais grosseira, do simbolismo original”. p.71. Para Jesus não havia concepção de mundo. Tudo que era material era somente motivo de simbolismo e parábolas. Não negava o mundo porque não tinha essa idéia. Os valores por ele pregados estavam no interior do homem e se traduzem em concepções como luz, verdade. Para ele, o homem deveria viver como se estivesse no céu, viver de forma que se sentisse eterno. Não há promessa de um mundo futuro, de uma outra vida. Mas os cristãos desfiguraram seu mestre, colocaram muitas palavras em sua boca, e construíram uma fé a partir de idéias por eles mesmos criadas, e hoje “A humanidade ajoelha-se perante o contrário do que era a origem, o sentido, o direito do Evangelho; santificou na idéia de ‘Igreja’ o que o ‘alegre mensageiro’ considerava precisamente como abaixo de si, atrás de si – em vão se procuraria um exemplo melhor de ironia histórica...” p. 71.
Jesus, pela sua boa nova, havia suprimido a idéia de pecado, de distanciamento do homem com relação a Deus. No entanto, o cristianismo instaura novamente essa distância através dum instinto sacerdotal herdado dos judeus, disseminando idéias sobre pecado, juízo final, prêmio e castigo. Tais idéias amedrontam o homem, tornando-o fraco, e o cristianismo pode então dominar. Aliás, é isso que o cristianismo faz de melhor: enfraquecer os homens para poder dominá-los. O cristianismo se torna fraco desde a origem, e por essa fraqueza conquista. Surge como um sentimento de vingança: quem teria matado o Mestre? Todos devem ouvir a boa-nova e arrepender-se dos pecados cometidos. Com desejo de dominar, o cristianismo absorveu diversas culturas, alastrando-se pelo mundo, tornado-se vulgar, perdendo as raízes. Não divulgou um novo jeito de viver, mas uma nova fé baseada em interesses e mentiras.
“O cristianismo é uma insurreição de tudo que rasteja contra tudo quanto está elevado: o Evangelho dos ‘pequenos’ torna-se ainda menor”. p. 79. Nietzsche trata do assunto da moral nessa sua obra. Antecipa o que esclarecerá em sua obra Genealogia da Moral, falando sobre a diferenciação entre uma moral nobre e uma moral do ressentimento, esta última como destrutiva. No cristianismo impera essa moral do ressentimento, uma moral que se levanta contra tudo que é elevado, nobre, belo, para instituir os pobres, os comuns, os baixos, como os únicos “bons” verdadeiramente. É uma moral que luta contra algo que lhe é exterior, não nasce nem se fundamenta, como a moral da nobreza, em si mesma, a partir do indivíduo. Por isso se dá a necessidade de negar o mundo, a realidade, vivendo na mentira, a fim de poder manter sua posição de privilégio em relação aos nobres. Segundo Nietzsche, nessa moral de ressentimento não pode haver o “amor aos inimigos”, tão pregado pelo cristianismo, pois ela se baseia no ódio, na inveja, no querer eliminar.
“Deus, qualem Paulus creavit, Dei negatio”. Com Paulo, se distorce ainda mais a concepção de Deus. “Esse Deus que Paulo inventou, um Deus que ‘reduz a nada’, a ‘sabedoria do mundo’(...) não é uma realidade, senão uma decisão atrevida de Paulo em chamar ‘Deus’ à sua própria vontade, thora (...) o que é essencialmente judaico”. p. 85. Aqui nega-se a ciência, ela torna-se pecado, uma transgressão. O homem é expulso do paraíso após comer do fruto da árvore proibida. Tal fruto é a ciência, a capacidade de conhecimento. Lhe era proibido, mas o homem quis conhecer. Osho escreve sobre o argumento usado pelo demônio sobre a proibição em comer o fruto da árvore: “Não consigo perceber nenhuma falha no argumento do demônio. Ele está absolutamente certo. Na verdade, ele é o primeiro benfeitor da humanidade. Sem ele, talvez não houvesse nenhuma humanidade – nenhum Gautama Buda, nenhum Kabir, nenhum Cristo, nenhum Zaratustra, nenhum Lao-Tsé... apenas búfalos e jumentos, todos pastando e ruminando com satisfação. E Deus teria ficado muito feliz por seus filhos serem muito obedientes!”.(Inteligência: A resposta Criativa ao Agora,p.49). Nietzsche vê um impedimento do conhecimento, no qual o homem é proibido de olhar para o exterior, tentar compreender a realidade, o mundo, “ o homem não deve olhar para o exterior (...) não deve ser absolutamente nada: deve sofrer...” p.87. A única coisa que importa é a fé, ou seja, como já foi dito, crer que algo seja verdadeiro, sem se importar em conhecê-lo.
A fé do cristianismo exalta tudo que for sofrimento. Se Deus foi crucificado, o sofrimento é bom: “Tudo que sofre, tudo o que está suspenso na cruz é divino”. p.91. Tudo quanto torna o homem doente é bom. Há uma “tresvaloração” dos valores, como diz Nietzsche na Genealogia da Moral, ou seja, tudo que é baixo, vil, torna-se “bom”, e tudo que é bom, nobre, que representa força, torna-se mau. Pela fé, nega-se a vida: muitos mártires, de maneira descabida, perderam suas vidas pela fé, como se o sangue deles, derramado ao chão, atestassem a verdade de sua fé. Como pode uma fé basear-se no derramamento de sangue? Tal fato é causa, e não conseqüência de uma doutrina. As convicções levam a tais absurdos, levam à incapacidade do conhecimento entre o “verdadeiro” e o “falso”. “As convicções são talvez inimigas mais perigosas da verdade que as mentiras”.p. 94. A fé oculta a verdade, ter fé é negar-se a ver as coisas como elas são. Se o homem não pode conhecer a verdade e por isso mesmo sequer chegar ao conhecimento do que é falso, o sacerdote, portador do entendimento da vontade de Deus, dita as regras: ele torna-se necessário em todos os momentos da vida. Diante desse contexto, é preciso ser cético, aberto à novas possibilidades, não preso a convicções caducas. “Os intelectuais, sendo mais fortes, encontram a sua felicidade onde outros pereceriam: no labirinto (...) na tentação”.
Para terminar, citemos Nietzsche na conclusão da presente obra: “Termino aqui e pronuncio a minha sentença: eu condeno o cristianismo, lanço contra a Igreja cristã a mais terrível acusação que jamais acusador algum pronunciou: para mim ela é a maior corrupção imaginável. A Igreja cristã nada poupou à sua corrupção: de cada valor fez um não-valor, de cada verdade uma mentira, de cada integridade uma baixeza de alma. Que se atrevam a falar-me ainda dos seus ‘humanitários’ benefícios! Suprimir qualquer angústia seria contrário ao seu mais profundo interesse: ela viveu de angústias, inventou angustias para se eternizar...(...) E conta-se o tempo a partir desse dies nefastus que foi o começo desse destino – a partir do primeiro dia do cristianismo! E por que não contá-lo a partir do seu último dia? – A partir de hoje? – Transmutação de todos os valores!...”.