O Anticristo de Friedrich Nietzsche - parte I

Nessa obra, Nietzsche tece uma crítica ferrenha ao cristianismo ao mesmo tempo que põe em questão os valores morais que por tanto tempo regem a sociedade.

Como sabemos, o pensamento de Nietzsche visa eliminar tudo que é ideal, tudo que está para além da realidade, em outras palavras, quer eliminar uma concepção platônica, que despreza o mundo e põe os valores em tudo que está além, nas idéias, num mundo ideal. Por esse motivo, ele critica fortemente o cristianismo,” platonismo para o povo”, segundo ele, que visa manter essa crença num mundo ideal, norteado por conceitos como: bem, belo e verdade.

“O Evangelho morreu na cruz”, é o que nos fala esse pensador. Filólogo, não se deixa enganar pelas palavras da Sagrada Escritura, lê o evangelho minuciosamente, recomenda até que se calcem luvas para ler os evangelhos, tamanha é a sujeira que lá se encontra. Para ele, o cristianismo é continuação do judaísmo, de uma forma disfarçada, adaptada. Tanto é que a concepção de Deus sequer muda. Ele faz uma trajetória pela história do povo de Israel e sua concepção de Deus até chegar à concepção cristã. Primeiramente Deus era o todo poderoso, aquele que estava do lado do povo, batalhando, presença divina entre o povo, sendo sua força. No decorrer do tempo, com as invasões e provações pelas quais o povo foi passando, houve a necessidade de mudar também a concepção que tinham de Deus, pois este parecia não mais ajudá-los. Criaram então a idéia de um Deus juíz, não mais um Deus guerreiro, que julga conforme a obediência à sua palavra. Surge a idéia de recompensa, para os obedientes, e castigo, para os indisciplinados. Segundo Nietzsche este é um “estúpido mecanismo de salvação”. A idéia de uma vontade divina começa a predominar.

O povo de Israel se dizia “escolhido” por Deus, mas diante dos fatos, parecia que essa idéia não se confirmava, então mudou-se a característica de Deus. Com isso, os judeus começam a negar a vida, entrando num estado que Nietzsche denomina “decadência”, com a intenção de manterem-se desligados do mundo, salvando sua nobre posição. Pura ilusão, falsidade para Nietzsche. “A história de Israel é inestimável como história típica da desfiguração de todos os valores naturais”. p. 59. Para Nietzsche, quando um povo acredita em si mesmo, tem um Deus. Quando este povo perece e a concepção de Deus muda, ele torna-se hipócrita: Deus é uma figura moralizante. Com o Cristianismo, porém, há outra alteração: “Ele representava um povo, a força de um povo (...) a partir de agora Ele nada mais será que o bom Deus”.O Deus bom é o Deus dos fracos, um Deus fraco.

Talvez Nietzsche tenha compreendido verdadeiramente os ensinamentos de Jesus, ao contrário da tradição cristã, que parece por vezes até negar o Cristo. O cristianismo, que muitos de nós seguimos, pouco ou nada tem a ver com os ensinamentos de Jesus. Nosso modo de viver e de pensar destoa muito do modo de viver do galileu. Fenômenos impressionantes envolvendo a figura de Jesus nos são relatados pelos evangelistas, mas pouco nos concentramos no Jesus histórico, o Galileu, que viveu neste mundo, sofrendo influência da cultura da época, fazendo parte da realidade sócio-político-econômica. Foi ele uma figura questionadora da moral vigente. Colocaram na boca de Jesus palavras sobre um outro reino, um outro mundo, porém seus gestos não demonstram tal preocupação. Certamente queria e acreditava numa transformação no agora, começando pelos indivíduos. Não é uma dependência infantilizante que Jesus quer criar, quer sim mostrar ao homem a capacidade de superar-se, não deixando-se abater pela dor, nem alienado-se pelos ideais. Tanto os pobres quanto os fariseus estão vivendo alienadamente: os primeiros por coerção, os segundos por ideal. Jesus quer mostrar que não são as leis que salvam, e que não são fatores externos os responsáveis pela nossa forma de encarar a vida. Mas o povo fez dele seu Salvador. Sua vida pouco lhes ensinou, mas sua morte e ressurreição tornaram-se os pilares da nova religião: o cristianismo. Viveu tentando instaurar uma nova vida, e por sua morte nasceu uma nova religião fundada no sentimento de vingança, segundo Nietzsche, pois os cristãos não aceitam que tenham matado seu Salvador. O Cristianismo nasce a partir da morte de Jesus, e assim se desenrola num processo de muitas contradições. Nietzsche não exalta Jesus, mas critica o cristianismo que se desenvolveu a partir das desfigurações do mestre.

Quando Deus é tomado como “coisa em si”, conforme a concepção cristã aceita, acontece, segundo Nietzsche, “a ruína de um Deus”. “ A concepção cristã de Deus é uma das mais corruptas (...) Deus degenerado em contradição da vida em vez de ser sua glorificação, e a sua eterna afirmação (...) essa fórmula para todas as calúnias contra o ‘aqui e agora’ e para todas as mentiras do além! O nada divinizado em Deus, a vontade do nada santificada”. p.52. Deus aparece em contradição com a natureza,por conta disso cria-se um “mundo de ficções”, resultado da negação da natureza, que é o cristianismo, no qual tudo é imaginário, segundo Nietzsche, desde a concepção de Deus até a idéia de pecado, “causas imaginárias(...)efeitos imaginários(...) seres imaginários(...) ciência natural imaginária(...) psicologia imaginária”. p.48.O cristianismo “distingue-se do mundo dos sonhos, que pelo menos reflete a realidade”. p. 49. Nesse sentido o sacerdote aparece como arauto dessa farsa. Com a idéia de vontade de Deus faz valer sua vontade, ditando suas regras. Domina, torna-se necessário em cada momento, por ser dotado de poderes, também imaginários. Por sua ação, des-sacraliza a natureza, torna-se responsável direto pela salvação dos homens, e precisa que os homens pequem, senão perderá sua função, seu cargo, sua posição. O cristianismo torna os homens fracos para poder dominá-los.

Nietzsche também apresenta uma comparação entre o cristianismo e o budismo, ambas religiões niilistas, mas que diferem de maneira simples: o cristianismo nega a realidade e cria, imagina uma outra; o budismo é realista. Talvez a principal diferença esteja em torno do sofrimento. O cristão, por sofrer com a realidade, cria uma outra. O budista, pelo contrário, não nega o sofrimento, simplesmente o aceita como parte da vida. No cristianismo até se criou o conceito de Diabo para dar razão ao sofrimento, ou seja: para o cristão, sofrer em si não tem sentido. Sofrer é enfrentar um inimigo forte, do contrário, seria vergonhoso sofrer. Outra distinção se dá quando se fala em pecado: no budismo não há luta contra o pecado, como no cristianismo. A “luta” do budismo é contra o sofrimento, contra as inquietações. Não há no budismo rejeição a pontos de vista diferentes, somente se condenam o desejo de vingança e ressentimentos. Não há Deus no budismo. Assim, em comparação com o cristianismo, o budismo aparece como portador de uma liberdade muito grande, e de uma positividade de igual tamanho. O cristianismo não admite pensamentos diferentes, e o indivíduo deve se colocar numa posição de constante auto-crítica, auto-condenação.

Outra característica totalmente condenada por Nietzsche é a incapacidade que o cristianismo tem de buscar a verdade. Ele diferencia claramente duas posições: a verdade, ou sua busca, e a crença de que algo seja verdadeiro. E é nessa segunda posição que o cristianismo se encontra e, segundo o filósofo, onde há crença, não há porque fazer uso da razão, não há porque questionar, não há porque buscar a verdade. O conhecimento é uma ameaça nesse caso. “O caminho da verdade torna-se um caminho proibido”. E por basear-se na crença, fundamenta-se na esperança, pois nega o agora, e tal esperança só serve para “entreter os desgraçados”.